O meu mundo acabou no silêncio de um quarto de hospital. O cheiro a antissético era a única coisa real.
Ainda ontem, eu tinha uma barriga redonda de oito meses, cheia de promessas e pequenos pontapés.
Agora, estava vazia.
A minha mãe dormia numa cadeira ao meu lado, o rosto cansado marcado pela preocupação.
Lá fora, a vida continuava. Na televisão da parede, um repórter falava do enorme engavetamento na autoestrada A1, causado por um nevoeiro súbito e denso. As imagens mostravam um caos de metal retorcido e luzes de emergência a piscar.
O meu telemóvel estava na mesinha de cabeceira, parecia pesado demais para levantar.
Mas eu precisava de o fazer. Precisava de ligar ao meu marido, Leo.
A chamada demorou a ser atendida. Quando ele finalmente falou, a sua voz era cortante e impaciente.
"Clara? Estou ocupado. O que queres?"
A voz de uma mulher soou ao fundo, fraca, mas clara.
"Leo, obrigada. Se não fosses tu, eu não sei o que teria acontecido."
Era a Sofia. A sua meia-irmã.
"Como está a Sofia?", perguntei, a minha própria voz soava estranha, como se viesse de longe.
"Partiu o pulso e está em choque, mas vai ficar bem. Acabei de a deixar no hospital. O pai já está a caminho."
Ele disse aquilo com um tom de heroísmo. O meu herói. Que não estava aqui.
Fiz uma pausa, respirei fundo o ar estéril do quarto.
"Leo, o nosso bebé morreu."
Silêncio do outro lado da linha. Não um silêncio de choque ou de dor. Era um silêncio vazio, desconfortável.
"O quê? Como assim? O que aconteceu?"
"Tive um acidente. O nevoeiro... um carro bateu-me por trás. Liguei-te."
"Eu sei que ligaste", ele respondeu, a irritação a voltar à sua voz. "Eu disse-te que estava a caminho do engavetamento na A1. Era uma emergência de categoria um, Clara. Dezenas de pessoas em risco. Tive de fazer uma escolha."
A escolha dele. Dezenas de estranhos e a sua meia-irmã contra a sua mulher grávida, sozinha num carro acidentado.
A matemática dele era simples. Eu não contava muito.
"Entendo", disse eu, e a clareza da minha decisão foi assustadora. "Então, vamos divorciar-nos."