Capítulo 4 O preço de conter

As paredes da caverna respiravam. Não com ar, mas com memórias. Cada superfície estava coberta por cinzas endurecidas que, à luz das lâmpadas vivas, pareciam se mover, como se as memórias do que ainda estava vibrassem sob a crosta cinzenta.

Asha não conseguia dormir.

Desde o ritual de contenção, Kael dormia profundamente, deitado sobre uma laje quente no centro do salão dos Guardiões Quebrados. Seu braço direito, completamente envolto em obsidiana, não se movia mais para a frente. Mas também não recuava.

A pedra pulsava.

Asha sentia isso cada vez que se aproximava. Um ritmo lento, idêntico ao do fragmento que ela guardava no peito. Uma sincronicidade que, segundo Ezkhar, não poderia ser quebrada.

"Eles estão ligados", dissera o velho. "Agora vocês compartilham não apenas a memória, mas o destino."

Ela não respondera. Apenas baixara o olhar. Às vezes, desejava nunca ter tocado o Coração do Templo. Não porque não entendesse sua importância. Mas porque o que ela havia conquistado a arrancava, dia após dia, de si mesma.

Esse pensamento a seguiu até o salão de treinamento.

Os Filhos do Fogo Quebrado não ensinavam com armas ou palavras. Suas lições eram silenciosas, esculpidas em pedra e fogo. Asha se ajoelhou diante de uma placa circular no chão, onde o símbolo de Aeolina se misturava a redemoinhos escuros: cinzas negras, concentradas, sólidas. Memória comprimida.

"Ela está esperando por você", disse Maeka atrás dela. "Mas ela não vai implorar."

Asha engoliu em seco. Ela sabia o que estava por vir. Ela tinha visto o que os Filhos faziam com as cinzas escuras: eles as tocavam, as continham... ou eram consumidos por elas.

"O que acontece se eu não as controlar?", perguntou ela sem se virar.

"Então você será mais uma rachadura na pedra. E a pedra não se lembra dos fracos."

A figura de Maeka desapareceu na escuridão.

Asha respirou fundo. Ela estendeu as mãos. Ela as colocou sobre a placa de cinzas negras.

A sensação foi imediata.

Um vazio. Frio. Como se uma maré estivesse entrando em seu peito, varrendo emoções, pensamentos e suas próprias memórias. A memória que continha não era estranha. Era selvagem. Não estava ordenada como nos templos, nem selada em fragmentos claros como chamas de âmbar. Essas cinzas vinham de conflitos sem nome, de traições seladas em sangue, de verdades sem narrador.

Vozes irromperam.

Gritos.

Um campo de batalha. Tempestades sem fogo. Guardiões gritando ordens em línguas esquecidas. Guerreiros cobertos de marcas negras. Fogo que não queimava, mas absorvia a luz.

E no meio de tudo isso, ela.

Não Asha. Outra.

Uma mulher de pele bronzeada, olhos sem pupilas, usando a mesma pulseira que Asha usava agora. Mas a dela queimava completamente. Ela não guardava memórias: ela as comandava.

"Aeolina..." Asha sussurrou.

A figura se virou. Olhou diretamente para ela, como se pudesse vê-la de dentro da memória.

E então, a dor.

Asha caiu para trás, ofegante. Suas mãos sangravam. Cinzas escuras haviam se incrustado em sua pele. Partículas brilhantes, como brasas amaldiçoadas.

Maeka apareceu novamente.

"Não basta olhar. Se você não selar a emoção, ela se funde com sua alma."

"Selar como?" Asha gemeu.

Maeka levantou a mão, revelando uma pequena cicatriz no pescoço.

"Abrindo mão de uma parte de si mesma."

Asha olhou para ela, atordoada.

"Você quer dizer... para conter as cinzas escuras, devo extinguir as emoções?"

"Não extinguir. Encerrar. Como quando você coloca uma chama em uma lâmpada de vidro. O fogo ainda está lá. Mas não queima."

Asha levou a mão ao peito. O fragmento de Coração batia mais rápido agora. Como se protestasse.

"E se eu me trancar demais?"

Maeka deu de ombros.

"Então você não será mais você. Mas será útil."

Ele a deixou sozinha.

Asha se ajoelhou novamente. Sua respiração estava irregular. Suas mãos ainda queimavam, e mesmo assim ela não parou. Ela sabia o que era esperado dela. Ela sabia que não poderia falhar.

Não apenas por Kael. Não apenas pelo fragmento.

Mas porque se ela não conseguisse conter as memórias, ela eventualmente se fundiria a elas. Como um espelho que reflete tanto, ele deixa de ter forma própria.

Ela fechou os olhos.

Ela colocou as palmas das mãos de volta nas cinzas.

Desta vez, ela não tentou resistir à memória.

Ela a deixou entrar.

O campo de batalha retornou, mas não tão violento. Ela podia ver a cena com mais clareza. Aeolina - a mulher da memória - estava conversando com outras três. Guerreiras. Sábias. Uma delas era claramente Ezkhar, jovem, com um olhar ainda intacto pela idade.

"O Império não foi construído. Foi roubado", disse Aeolina. "E se não nos lembrarmos disso, repetiremos."

"Tem certeza de que quer dividir o Coração?", perguntou Ezkhar, lembrando-se.

"Se não fizer isso, serei destruída. Não estou interessada em ser adorada. Estou interessada em manter o fogo aceso, mesmo que ninguém se lembre do meu nome."

Asha sentiu uma pontada no peito.

A visão se dissipou.

Quando abriu os olhos, as cinzas negras ainda estavam sob suas mãos. Elas não brilhavam. Não sussurravam. Elas haviam se rendido.

"Você conseguiu", disse uma voz à sua direita.

Era Lirien.

"Eu os selei", murmurou Asha. "Mas para fazer isso, eu tive que... trancar algo dentro de mim."

"O quê?"

Asha olhou para ela com tristeza.

"Medo."

Lirien a observou por um longo momento, como se avaliasse o quanto daquilo era verdade e o quanto era uma defesa.

"Trancar o medo não te torna corajosa. Só te torna mais eficiente. Mas é exatamente disso que precisamos agora."

"Uma ferramenta?"

"Uma relíquia viva", corrigiu Lirien. "A única capaz de conter o que está por vir."

Asha olhou para as mãos enegrecidas, ainda salpicadas de cinzas brilhando sob a pele. Lá dentro, ela sentiu uma porta se fechando.

"Não para sempre. Mas por enquanto."

Ela se sentou lentamente.

"Então me ensine a ser uma", disse ela.

Lirien assentiu.

"Amanhã, você irá para o Vale do Ruído. Há uma memória selada lá. Uma que até as Crianças temem. Se você conseguir contê-la, estará pronta para despertar o próximo nó."

"E se não conseguir?" "Então o vale te engolirá, como já fez com tantos outros."

Asha não tremeu. Não porque não estivesse com medo. Mas porque não a deixaria mais escapar.

A chama que lembra.

A relíquia viva.

O preço da contenção já havia começado a ser cobrado.

E ainda havia muitas memórias para selar.

            
            

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