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Era a minha peregrinação anual a Fátima. Seis anos seguidos.
Seis anos de confissões para aliviar uma culpa que não diminuía.
Ajoelhei-me no chão de pedra fria, o cheiro a cera derretida e a incenso a encher-me os pulmões.
No meio da multidão de fiéis, vi-a.
Era eu.
Uma versão de mim mesma, translúcida, a flutuar perto do altar.
O seu rosto era o meu, mas marcado por um cansaço que eu ainda não conhecia.
Ela olhou diretamente para mim.
A sua voz ecoou na minha cabeça, não nos meus ouvidos.
"Sofia Almeida, ouve com atenção."
Fiquei paralisada.
"Fica longe do Diogo Vaz."
O nome atingiu-me. Um nome que eu tinha enterrado há seis anos.
Um nome que ainda doía.
Achei que era uma alucinação, o cansaço da vindima a chegar.
Levantei-me, pronta para ir embora, para esquecer esta loucura.
A voz dela voltou, mais forte, mais urgente.
"Hoje vais reencontrá-lo. Lembra-te, fica longe dele!"
Saí da basílica, o coração a bater descontroladamente.
O aviso ecoava.
De volta à Quinta, no Douro, o sol batia forte nas vinhas.
O meu pai olhava para as uvas, a testa franzida de preocupação.
O meu telemóvel vibrou. Era um email da associação de enólogos.
Li-o em voz alta para o meu pai.
"É com grande entusiasmo que anunciamos o regresso de um dos maiores talentos do Douro."
O meu pai resmungou qualquer coisa sobre talentos que abandonam a sua terra.
"Diogo Vaz, o premiado enólogo que conquistou Napa Valley, regressa a Portugal, contratado pela gigante comercial 'Vinhos do Atlântico'."
O meu pai olhou para mim. O seu rosto não mostrava surpresa, apenas uma tristeza antiga.
Eu não disse nada.
O fantasma de Fátima tinha razão.
Hoje.
A noite caiu sobre o vale do Douro.
O jantar da associação era num hotel de luxo no Porto.
Vesti um vestido simples, sentia-me deslocada no meio do luxo.
E então vi-o.
Diogo Vaz.
Não era o rapaz de calças de ganga e mãos sujas de terra que eu conhecia.
Usava um fato caro, o cabelo perfeitamente penteado, uns óculos de aros finos a dar-lhe um ar intelectual e frio.
Ele não me viu. Ou fingiu não ver.
O presidente da associação subiu ao palco.
"Temos aqui esta noite os nossos meninos de ouro do Douro! Sofia Almeida, a alma das nossas Quintas tradicionais, e Diogo Vaz, o nosso prodígio que regressa a casa!"
Todos aplaudiram. As pessoas olhavam de mim para ele, sorrindo, lembrando-se do passado.
Senti o meu rosto a corar.
O presidente continuou. "Quem sabe se não reacendemos uma velha chama esta noite?"
O riso encheu a sala.
Diogo pegou no microfone. A sua voz era calma, cortante.
"Agradeço as boas-vindas. Mas devo esclarecer que o meu coração já tem dona."
Ele fez uma pausa, o seu olhar varreu a sala e pousou numa mulher elegante sentada numa mesa da frente.
"A minha noiva, Inês Castro."
O silêncio caiu. Inês sorriu, um sorriso polido e vitorioso.
O meu coração parou. Depois afundou-se.
Era o fim. A confirmação final.
No dia seguinte, um estafeta entregou uma caixa na Quinta.
Não tinha remetente, mas eu sabia.
As minhas mãos tremiam ao abri-la.
Lá dentro, estavam todas as minhas coisas.
Um saca-rolhas que eu tinha feito para ele com um pedaço de videira.
Um caderno de capa de couro onde eu tinha escrito poemas e declarações de amor.
Cada objeto era uma memória. Cada memória era uma facada.
Ele estava a devolver-me o meu passado. A dizer-me que não queria nada dele.
Peguei no telemóvel. Abri o WhatsApp.
Procurei o nome dele. A sua fotografia de perfil tinha desaparecido.
Tentei enviar uma mensagem.
"Falha ao enviar."
Ele tinha-me apagado. Eliminado.
A memória veio sem ser chamada, nítida como se fosse ontem.
Seis anos atrás.
Uma carta de aceitação. A melhor escola de enologia de Bordéus, em França.
A oportunidade de uma vida para o Diogo.
Ele não queria ir. Queria ficar comigo, no Douro, a fazer o nosso vinho.
"O teu amor está a prendê-lo," disse-me o mentor dele. "Ele está a desperdiçar o seu talento por causa de um romance de verão."
As palavras doeram. Mas eu sabia que eram verdade.
Eu era a âncora que o impedia de navegar.
Fui ter com o professor responsável pela recomendação. Pedi-lhe que a retirasse.
Disse-lhe que o Diogo tinha mudado de ideias.
Quando o Diogo descobriu, a fúria dele foi assustadora.
"Tu não tinhas o direito! Era a minha vida! O meu futuro!"
"Eu amo-te," disse eu, a chorar. "Não podia ser a razão do teu fracasso."
"Não é amor," gritou ele. "É egoísmo. Acabaste com tudo."
Ele fez as malas nessa noite. E nunca mais o vi.
Até agora.
O alerta soou por todo o vale.
Incêndio florestal.
Nas encostas íngremes, perto da vinha do meu pai.
Uma vinha centenária, com videiras que sobreviveram à filoxera. Sem irrigação moderna. Pura tradição. Pura vulnerabilidade.
A associação convocou uma reunião de emergência.
Eu estava lá. O meu pai. Outros proprietários de Quintas.
E o Diogo, a representar a sua nova empresa.
"Temos de ir já," disse eu, a voz tensa. "Organizar voluntários, abrir um aceiro. Podemos salvar as vinhas velhas."
"É demasiado perigoso," disse o Diogo, a voz desprovida de emoção. "O vento está a mudar. A prioridade é a segurança das pessoas. Temos de esperar pelos bombeiros."
Todos na sala olharam para ele.
O filho pródigo que voltou sem coração.
O homem da grande empresa que não se importava com a pequena vinha centenária.
"Tu não percebes," disse eu, a raiva a subir. "Aquilo é a vida do meu pai! É a nossa história!"
"A história não vale uma vida humana," respondeu ele, frio como gelo.
Não aguentei. Saí da sala.
Ele seguiu-me.
No corredor, agarrei-lhe no braço.
E então vi.
Debaixo da sua camisa cara, pendurado ao pescoço.
O saca-rolhas de videira. O meu saca-rolhas.
O colar que ele usava sempre.
"Porque é que ainda tens isso?" a minha voz tremeu. "Se me odeias tanto, porque é que ainda o usas?"
Ele olhou para o colar, depois para mim.
O seu rosto era uma máscara de dor contida.
Sem uma palavra, ele agarrou na corrente.
Puxou com força.
O couro partiu-se.
Ele abriu a mão e olhou para o pequeno objeto.
Depois, virou-se e atirou-o pela janela aberta, para o vale escuro lá em baixo.
Vi-o desaparecer na escuridão.
Como nós.
Não esperei por ninguém.
Peguei na carrinha e conduzi em direção ao fogo.
Se o Diogo não ia ajudar, eu ia. Sozinha se fosse preciso.
O ar estava pesado com fumo, o céu laranja.
Quando cheguei perto da vinha velha, vi alguém.
Um homem sozinho, com um machado, a cortar mato desesperadamente, a tentar abrir um aceiro.
Era o Diogo.
Ele estava coberto de fuligem, a suar, a respirar com dificuldade.
Ele estava a fazer exatamente aquilo que disse que não se devia fazer.
Corri para o ajudar. Não trocámos uma palavra.
Apenas o som dos nossos machados e da nossa respiração ofegante.
O calor era intenso.
Ouvimos um barulho. Um estalo alto.
Um dos antigos socalcos de pedra, superaquecido pelo fogo, cedeu.
Um muro de pedras começou a desabar na nossa direção.
Eu congelei.
O Diogo não.
Ele empurrou-me com toda a sua força.
Caí no chão, longe do perigo.
Ele não teve a mesma sorte.
As pedras caíram sobre ele.
O som das pás do helicóptero era a única coisa que eu ouvia.
O Diogo estava numa maca, imóvel.
Eu estava sentada ao lado dele, a segurar-lhe a mão.
O vale em chamas ficava para trás.
De repente, o helicóptero abanou violentamente.
Um som metálico. Um grito do piloto.
O mundo virou-se ao contrário.
Escuridão.