A Neta Perdida: Vingança
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Capítulo 1

Joana me ofereceu outra bala de leite, sorrindo com aquele jeito doce que eu conhecia tão bem.

"Toma, Mariinha, come mais uma, a viagem é longa."

Eu peguei a bala, o papel branco com o coelhinho simpático me parecia familiar e seguro. Era a minha bala preferida desde criança. O carro balançava suavemente na estrada de terra, e eu olhava a paisagem verde passando pela janela, ansiosa. Um casamento no interior, Joana tinha dito, de uma prima dela. Seria uma aventura, uma folga dos estudos intensos para o vestibular.

"Tem certeza que seus pais não vão se preocupar?", Joana perguntou, enquanto desembrulhava uma bala para si.

"Eu avisei que ia passar o fim de semana com você, eles confiam em você mais do que em mim", respondi rindo.

Que ironia.

Comi a bala. O gosto era o mesmo, doce, leitoso. Mas depois de alguns minutos, minha cabeça começou a pesar. As árvores do lado de fora começaram a se misturar em um borrão verde e marrom. Minhas pálpebras ficaram pesadas, pesadas demais.

"Joana, eu tô com sono...", murmurei, minha voz saindo arrastada.

"Pode dormir, amiga", ela disse, a voz dela parecendo vir de muito longe. "Quando a gente chegar, eu te acordo."

Foi a última coisa que ouvi.

...

Acordei com um cheiro forte de mofo e poeira. Minha cabeça latejava e minha boca estava seca como o deserto. Tentei me sentar, mas meu corpo todo doía, como se eu tivesse sido espancada. Não estava no carro. Estava em um quarto pequeno, escuro, com uma única lâmpada amarela pendurada no teto, iluminando as paredes sujas e o chão de cimento batido.

Uma mulher velha, de rosto enrugado e olhos pequenos e maldosos, estava parada na minha frente, de braços cruzados. Ao lado dela, um homem mais novo, com cara de poucos amigos, me olhava de cima a baixo como se eu fosse um pedaço de carne.

"Onde eu estou? O que aconteceu? Cadê a Joana?", perguntei, a voz fraca e rouca.

A mulher soltou uma risada rascante, que fez meu estômago revirar.

"A Joana? Aquela sua amiguinha te vendeu pra nós. Agora você é a noiva do meu filho, Zé."

Ela apontou com o queixo para o homem ao lado dela. O tal do Zé sorriu, um sorriso banguela e nojento. O mundo girou. Vendeu? Noiva? Isso não podia ser real. Era um pesadelo.

"Não... não pode ser. Isso é um engano. A Joana é minha melhor amiga!"

"Melhor amiga?", a velha cuspiu no chão. "Ela pegou um bom dinheiro por você. Disse que você era órfã e não tinha pra onde ir. Uma boca a menos pra alimentar e um dinheirinho no bolso. Bom negócio pra ela."

O choque me paralisou por um segundo, mas logo o pânico tomou conta. Eu precisava sair dali. Com toda a força que consegui reunir, me joguei para fora da cama e corri em direção à porta.

Meu corpo estava fraco, minhas pernas tremiam. O Zé foi mais rápido. Ele me agarrou pelo braço com uma força brutal, me jogando de volta na cama como se eu fosse um saco de batatas. Minha cabeça bateu na parede de madeira e a dor explodiu na minha nuca.

"Fica quieta, sua vagabunda!", ele rosnou no meu ouvido, o hálito dele cheirava a cachaça e cigarro.

As lágrimas escorriam pelo meu rosto, misturando-se com a sujeira. Desespero. Era tudo o que eu sentia. Um desespero frio e profundo. A mulher velha se aproximou, o rosto dela a centímetros do meu.

"É melhor você se comportar", ela sibilou. "Aqui não é a cidade grande. Aqui, quem manda sou eu. Se você não for uma boa esposa pro meu Zé, eu mesma te ensino a ser."

Ela levantou a mão e me deu um tapa no rosto. A ardência me fez gritar mais de surpresa do que de dor. Ela me bateu de novo, e de novo.

"Cala a boca! Ninguém vai te ouvir!"

Eu me encolhi na cama, tentando proteger meu rosto. O Zé apenas observava, com aquele sorriso estúpido no rosto.

"Parem, por favor...", solucei. "Meus pais... eles pagam o que vocês quiserem. Eles têm dinheiro. O dobro do que a Joana pegou. O triplo!"

A velha parou, me olhando com desprezo.

"Dinheiro?", ela riu de novo, aquela risada horrível. "A gente não quer seu dinheiro. A gente comprou uma mulher pro Zé, e é isso que você vai ser. Uma mulher pra cozinhar, lavar e dar filho pra ele. Não tem dinheiro no mundo que pague isso."

Ela me agarrou pelos cabelos, forçando-me a olhar para ela.

"Entendeu agora, sua putinha da cidade? Você não tem mais nome, não tem mais família. Você é nossa agora."

Eles saíram do quarto, trancando a porta por fora. O som da chave girando na fechadura foi o som mais aterrorizante que eu já tinha ouvido. Fiquei ali, chorando em silêncio, o corpo dolorido, o coração em pedaços pela traição. Joana. Minha melhor amiga. Como ela pôde?

Horas se passaram. A luz amarela da lâmpada era a minha única companhia. A dor, a fome e o medo eram meus únicos sentimentos. Mas em meio ao desespero, algo começou a acontecer. Eu olhava pela pequena fresta na janela do quarto. O contorno de uma montanha ao longe... O som de um rio correndo não muito distante... Aquele cheiro de terra molhada misturado com o perfume de uma árvore específica...

Uma árvore de manga. Uma mangueira enorme, que eu conhecia.

Uma sensação estranha começou a se formar no fundo da minha mente. Uma familiaridade incômoda. Eu já tinha visto aquela montanha. Já tinha ouvido aquele rio. Já tinha sentido aquele cheiro.

Forcei minha mente a trabalhar, a atravessar a névoa da droga e do medo. Imagens da minha infância começaram a surgir. Férias de verão, correndo descalça por um quintal enorme. Meu avô, um homem alto e forte de voz grossa, me ensinando a pescar naquele mesmo rio. Minha avó, uma mulher de temperamento forte mas coração enorme, me dando bronca por sujar a roupa de manga.

A mangueira. O rio. A montanha.

Não podia ser.

Era impossível.

Mas era. Eu estava na vila onde meus avós moravam. A vila que eu não visitava há anos, desde que eles se mudaram para a casa principal e meus pais se concentraram na minha educação na cidade. A vila onde minha família era, basicamente, a lei.

Um arrepio percorreu meu corpo, mas desta vez não era de medo. Era algo diferente. Uma faísca. A mulher velha disse que eu não tinha família. Ela não podia estar mais enganada.

Eu não era uma órfã qualquer.

Eu era a neta de Sebastião e Clara.

Eles iriam pagar. Todos eles. A família do Zé. E principalmente, Joana. A raiva começou a queimar dentro de mim, mais quente e mais forte que o medo. Eles me venderam para o único lugar no mundo onde eu não era uma vítima. Eles me venderam para o meu próprio território.

O choro parou. Eu sequei meu rosto com as costas da mão suja. Respirei fundo. O jogo tinha virado. Eles só não sabiam ainda.

            
            

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