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Na manhã seguinte, observei Artur se vestir. Ele escolheu um terno azul-marinho, aquele que eu disse que o fazia parecer confiável. Ele deu o nó na gravata com uma facilidade praticada, seu reflexo no espelho mostrando um homem pronto para conquistar uma cidade.
"Dia cheio", disse ele, checando o relógio. "Reunião com o comitê de finanças a manhã toda. Vai ser uma verdadeira maratona."
"Claro", eu disse, tomando meu café. "Dê o seu melhor."
Ele beijou minha testa, um gesto superficial, e pegou sua pasta. "Não me espere acordada. Vai ser tarde."
A porta se fechou atrás dele. Esperei um minuto inteiro antes de colocar meus fones de ouvido e abrir o aplicativo no meu celular. O Bluetooth do carro dele se conectou e, de repente, eu estava no banco do passageiro com ele.
Os sons da cidade desapareceram enquanto ele dirigia, substituídos pela estação de rádio de rock suave que ele sempre ouvia. Então, o som do celular dele discando.
"Oi, você", a voz de Júlia ronronou em meus fones de ouvido. Era enjoativamente doce.
"Oi, você", Artur respondeu, sua voz mudando do político sério para algo mais suave, mais jovem. "Estou a caminho."
"Ela ainda está engolindo essa?", perguntou Júlia. Havia uma ponta de acidez em sua voz, uma possessividade que me irritou. "Todo esse teatro de 'candidato ocupado'?"
"Júlia, não comece", disse ele, com um toque de cansaço no tom.
"O quê? Só estou perguntando", disse ela, sua voz tornando-se defensiva. "Eu só não entendo por que você continua com ela. Ela é tão fria. Parece um robô programado para campanhas políticas. Ela sequer tem pulso?"
Senti uma onda de fúria. Eu havia gerenciado suas últimas três campanhas. Eu havia escrito os discursos que o fizeram parecer brilhante. Eu o treinei para debates que o fizeram parecer invencível. Eu era a arquiteta do homem que ele fingia ser.
"Isso não é justo", disse Artur, mas não havia força em suas palavras. Foi uma defesa simbólica.
"Tanto faz", Júlia suspirou dramaticamente. "Apenas se apresse. Tenho uma surpresa para você. Algo para fazer nosso novo lar parecer realmente, verdadeiramente nosso."
"É mesmo? O que é?"
"Você vai ver", disse ela, sua voz baixando para um sussurro conspiratório. "É sobre o Sr. Darcy. Encontrei a maneira perfeita de honrar a memória dele."
Sr. Darcy? Vasculhei minha memória. Júlia teve um gato que morreu há alguns anos. Ela postou sobre isso incessantemente, uma performance pública de luto.
"Isso é ótimo, querida", disse Artur. "Você sabe que vou te apoiar no que precisar."
"Eu sei", ela arrulhou. "Estou indo para o jardim agora para preparar as coisas."
O jardim.
Meu sangue gelou. Ela não podia estar falando do jardim. O Jardim Comunitário Eleonora Bastos. Aquele em que meu pai derramou seu coração e alma para construir depois que minha mãe morreu. A peça central era um pequeno bosque memorial com um único banco de pedra, dedicado à minha mãe, Eleonora. Era o lugar mais sagrado do mundo para minha família.
"Te encontro lá em vinte minutos", disse Artur. "Te amo."
"Te amo mais", ela cantou.
A chamada terminou. A música de rock suave preencheu o silêncio.
Arranquei os fones de ouvido, meu coração martelando no peito. Isso era mais do que uma traição. Era uma profanação. Uma invasão.
Minhas mãos voaram pelo teclado. Abri os documentos de planejamento da cidade, os estatutos da associação do jardim. O jardim era terreno público, mas o bosque memorial era financiado e mantido privadamente pela fundação da minha família. Nenhuma adição poderia ser feita sem nosso consentimento.
Ela estava planejando colocar um memorial para seu gato morto ao lado do banco da minha mãe.
A raiva, pura e cristalina, cortou a névoa da minha dor. Este foi um movimento calculado. Uma maneira de demarcar seu território, de apagar minha mãe e, por extensão, de me apagar.
Peguei meu celular. Não liguei para Artur. Não liguei para meu pai. Rolei meus contatos até um nome que não discava há anos.
Everardo Salles.
O pai de Artur. O senador aposentado. Um homem mais implacável e pragmático do que Artur jamais poderia sonhar em ser. Ele atendeu no segundo toque.
"Analu", disse ele, sua voz um cascalho baixo. "A que devo o prazer?"
"Everardo", eu disse, minha voz firme. "Preciso de um favor. Preciso do dossiê que você tem sobre Júlia Peres."
Houve uma pausa do outro lado da linha. Eu sabia que ele tinha um. Anos atrás, quando Artur quis se casar com Júlia pela primeira vez, Everardo impediu. Ele nunca disse como, apenas que ela era "inadequada". Artur ficou de coração partido, acreditando que seu pai havia cruelmente arrancado seu verdadeiro amor dele.
"Isso é desenterrar o passado", Everardo finalmente disse. "Por que agora?"
"Porque ela voltou. E está prestes a causar um problema que vai destruir a campanha de Artur e manchar o nome da família Salles permanentemente", eu disse. "Estou lhe oferecendo uma chance de me ajudar a conter isso."
Eu estava falando a língua dele. Não de amor ou traição, mas de poder, reputação e controle de danos.
Outra pausa. Mais longa desta vez.
"Estará na sua porta em uma hora", disse ele, e desligou.
Olhei para o relógio. Eu tinha cinquenta e cinco minutos para chegar ao jardim.