Quarenta e Nove Livros, Um Acerto de Contas
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Capítulo 4

Eu os encontrei no estacionamento, parados ao lado do carro de Artur. Ele tentava acalmar Júlia, que agora chorava de novo, desta vez com frustração real.

Não disse uma palavra. Marchei até eles e ergui a pequena placa que arranquei do banco com a chave do meu carro.

"Que porra é essa?", exigi, minha voz tremendo.

Artur encarou a placa, seu rosto empalidecendo ainda mais. Ele olhou para Júlia, um lampejo de raiva genuína em seus olhos pela primeira vez.

"Júlia? Você colocou isso no banco?", ele perguntou.

Os olhos de Júlia se arregalaram em falsa inocência. "Eu... eu só queria que ele ficasse perto de um lugar bonito", ela gaguejou. "Eu pensei... pensei que sua mãe teria gostado. Ela era uma alma tão gentil."

A audácia da mentira dela, a forma como ela invocou a memória da minha mãe novamente, era espantosa. Era como se ela estivesse me testando, forçando para ver o quanto eu aguentaria.

"Você achou que minha mãe gostaria que o banco memorial dela fosse transformado em uma lápide para o seu gato morto?", eu disse, minha voz perigosamente baixa.

"Ele não era só um gato!", ela gritou. "Ele era meu bebê! Você não entenderia, você nunca teve um filho!"

As palavras me atingiram como um golpe físico. Ela sabia do aborto. Artur devia ter contado a ela. Aquela dor sagrada e privada entre marido e mulher, ele a compartilhou com ela. Era uma profundidade de traição que eu nem sequer havia considerado.

Algo dentro de mim se partiu.

Eu avancei sobre ela. Desta vez, não a estapeei. Agarrei-a pelos cabelos e puxei sua cabeça para trás.

"Escute aqui", rosnei, meu rosto a centímetros do dela. "Você nunca mais vai pronunciar o nome da minha mãe. Você nunca mais vai falar do meu filho."

"Tira ela de cima de mim, Artur!", Júlia gritou, arranhando minhas mãos.

Artur agarrou meus ombros, tentando me afastar. "Analu, pelo amor de Deus, solte-a! Você está a machucando!"

Eu o empurrei com uma força surpreendente e joguei Júlia contra a lateral do carro.

"Você quer um memorial?", eu disse, minha voz tremendo de raiva. "Você quer honrar os mortos?"

Tirei a caixa de veludo com as cinzas de suas mãos inertes. Antes que ela pudesse reagir, eu a abri e despejei todo o conteúdo sobre a cabeça dela.

Uma nuvem de poeira cinza fina encheu o ar, pousando em seu cabelo, seu rosto, seu vestido preto caro.

Ela ficou congelada por um segundo, os olhos arregalados de choque. Então, soltou um grito de gelar o sangue.

"MEU BEBÊ!", ela berrou, tentando freneticamente tirar as cinzas de si mesma, manchando-as em listras cinzentas em suas bochechas molhadas de lágrimas. "VOCÊ JOGOU MEU BEBÊ EM MIM!"

"Analu!", Artur gritou, sua voz rachando de incredulidade e horror. "O que há de errado com você? Isso foi cruel! Isso foi... monstruoso!"

Ele se moveu para confortar Júlia, para envolver seus braços na criatura patética e coberta de cinzas que ela havia se tornado.

"Foi, Artur?", perguntei, minha voz subitamente calma, assustadoramente clara. "Foi mais monstruoso do que o que ela fez?"

"Ela cometeu um erro! Ela estava de luto!", ele gritou, defendendo-a.

"De luto?", eu ri, um som oco. "Você acha que ela se importa com aquele gato?"

Júlia ergueu o rosto, uma máscara de ódio. "Claro que me importo! Ele era tudo para mim!"

"Então você deveria ter cuidado melhor dele", eu disse, minha voz como gelo.

Caminhei até meu carro e abri a porta do passageiro. Peguei o envelope pardo que o mensageiro de Everardo havia entregue.

Voltei até eles e joguei o envelope no capô do carro de Artur. Fotos e documentos se espalharam.

"O que é isso?", Artur perguntou, seus olhos cautelosos.

"Isso", eu disse, apontando um dedo trêmulo para Júlia, "é a verdade. É a verdadeira razão pela qual seu pai a pagou para desaparecer todos aqueles anos atrás. Não foi porque ele era um esnobe, Artur. Foi porque ela é uma fraude."

Ele pegou hesitantemente um documento. Era um laudo veterinário. Depois outro. Um boletim de ocorrência.

Júlia se lançou para pegar os papéis, mas eu fui mais rápida. Arranquei o mais incriminador da pilha e o segurei para Artur ver.

Era um relatório sobre uma ONG de bem-estar animal que ela "fundou" na faculdade. Uma reportagem investigativa do jornal estudantil detalhando como ela solicitava doações para animais doentes e depois embolsava o dinheiro. Vários dos animais sob seus "cuidados" morreram de negligência. Um deles era um gato chamado Sr. Darcy. Ele não morreu pacificamente de velhice. Ele morreu de fome.

"Ela não lamentou por aquele gato, Artur", eu disse, minha voz cortando o ar. "Ela o matou. Assim como matou os outros."

Artur encarou o papel, seu rosto tornando-se cinzento. Ele olhou para Júlia, que agora balançava a cabeça violentamente, os olhos arregalados de pânico.

"É mentira!", ela gritou. "Ela está inventando! Ela está com ciúmes! Ela sempre teve ciúmes!"

Artur olhou do relatório para Júlia, e de volta para o relatório. A verdade estava surgindo para ele, um amanhecer lento e horrível.

"Isso é verdade, Júlia?", ele sussurrou.

"Não! Artur, meu bem, você tem que acreditar em mim!", ela implorou, estendendo a mão para ele.

Ele se encolheu ao toque dela como se tivesse sido queimado.

"O dossiê que seu pai compilou é muito completo", eu disse calmamente. "Inclui declarações juramentadas de duas ex-colegas de apartamento dela e um cheque cancelado do seu pai para ela, datado de uma semana após ela ser expulsa da universidade. A linha do memorando diz: 'Pelo seu silêncio e partida'."

As peças finais se encaixaram para Artur. A briga com o pai. Os anos que ele passou acreditando ser vítima de um patriarca cruel e classista. Tudo tinha sido uma mentira, uma história que ela inventou para se fazer de heroína trágica.

Ele olhou para Júlia, mas era como se a estivesse vendo pela primeira vez. Não como o amor perdido de sua juventude, mas como uma vigarista manipuladora e cruel.

A mulher coberta com as cinzas do animal que ela matou de fome.

                         

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