/0/2563/coverbig.jpg?v=a796194b345c44bd9e7d8ecdad866d16)
Em coro todos no laboratório começaram a oração.
"Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente. Tu que tivestes o teu corpo perturbado em seu repouso profundo pelas nossas mãos ávidas de saber, o nosso respeito e agradecimento."
- Muito bem! Assim que gosto de ver_ o mesmo diz sorrindo_ Então agora podemos da continuidade a aula.
E assim ele começa explicando, e depois de todos estarem devidamente equipados com luvas e mascara começamos a parte prática, a aula demorou a terminar o professor fez varias peguntas, eu como aluna aplicada e esforçada respondi as quais sabia, recebendo olhadas frustradas de certos colegas, já me acostumei, pensam que por ser preta e de favela sou burra, mais eles se enganaram, da turma eu sou a aluna mais aplicada e sempre tiro boas notas.
A aula termina e na saída sou aborda por Helioth e seu grupinho de amigos racistas.
- Aonde vai pretinha?_ sempre me chamavam assim, eu me acostumei com um tempo, não valia a pena, pelo menos pensava que não valia, até o dia que começaram a pegar pesado com as brincadeiras e provocações, cheguei a comunicar a coordenação mais não resultou em nada.
- Escuta aqui Helioth, não estou com tempo para suas provocações racistas, estou atrasada, então se me der licença fico grata_ digo, e não espero que o mesmo concorde, posso pelo mesmo, mais sou surpreendida por um aperto no braço.
- Escuta aqui sua preta favelada quem você pensa que é pra falar assim comigo?_ diz entre dentes.
- Como você sempre costuma dizer, "Ninguém", mais se não me soltar agora esse ninguém pode virar alguém que pode acabar com sua vida de riquinho patetico_ puxo meu braço e o mesmo solta rindo.
- Mais é abusada mesmo_ cuspio as palavras indignado.
Ele levanta a mão e por um momento pensei que fosse bater, mais não recuei, vi que seus amigos tentaram segura-lo, estufei o peito e respirei fundo.
- Se encosta em mim, Deus sabe que dessa vez você não vai pra diretoria por me atacar, mais pra delegacia, e que o Diabo lhe carregue poque da sua vida farei um inferno, e sou capaz de buscar provas nos quintos dos infernos se for possível só pra ver você pagar pelo mal que faz não só a mim, mais a outras pessoas, eu mesma já vi você atacando outras pessoas além de mim.
- Você ta louca garota, acho melhor você ficar longe de mim, seu lixo _ sai sem me olhar
Deixo uma lufada de ar sair, e só então percebo que durante a discussão estive prendendo o ar nos pulmões. Aquele idiota, cabeça de vento, já estava farta dele, passei anos, calada e hoje percebi que meu erro foi esse, se tivesse tido a coragem de enfrentar e amedronta-lo talvez ele não pegasse tanto no meu pé.
Saio do meu devaneio e rumo ao hospital Central Santa Helena, não ficava muito longe da faculdade então eu costumava ir andando. Faço todo o caminho apreciando a paisagem, depois de um tempo vejo a sacada do grande prédio do outro lado da rua, espero o sinal fechar e atravesso. Na recepção recebo um bom dia caloroso da recepcionista e do segurança, me direciono a hala dos funcionários, troco de roupa ponho o crachá e pego a prancheta, passo na sala do Dr. Joséph, quem eu acompanho nas inspeções e sempre ajudo no pronto atendimento.
- Bom dia Doutor o que temos pra hoje? Digo entrando, após bater na porta e receber um entre como resposta.
- Bom dia Doutora Amira, até agora tudo tranquilo, estava esperando por você, quero que fique para analisar alguns pacientes enquanto almoço, pode ser? _ ele pergunta me entregando as fichas
- Claro que sim, pode almoçar sem preça_ digo sorrindo
- Tudo bem obrigado! Até depois_ o mesmo sai me deixando sozinha em seu consultório.
Dou uma checada nas fichas e resolvo começar a inspeção, após analisar alguns pacientes chego na ala particular do hospital, o doutor estava cuidando de uma menina de 11 anos que sofreu um acidente de carro semana passada, ela fraturou a costela e teve alguns ferimentos exposto pelo corpo, de uns dias pra cá estava tendo febre, ouvi o Dr. Joséph dizer que mesmo com a medicação a febre não cedia. Entrei no quarto e não havia ninguém, fechei a porta atrás de mim e me aproximei da menina deitada sobre a maca, verifiquei a pulsação estava tudo certo, mais quanto ia tocar a face da menina algo, ou melhor, alguém me interrompeu.
- Mais o que e isso? Se afaste da minha filha_ de súbito retiro a minhã e olho para a dona da voz.
- Desculpe o que disse? _ não compreendia a irritação da mãe da menina parada na porta me encarando furiosa, a mesma vem até mim e me empurra do lado da cama onde a menina jazia.
- Eu disse pra se afasta escoria_ me encara brava_ como permitem que uma raça suja trabalhe nesse hospital.
- Senhora eu acho melhor se acalmar ou serei obrigada a lhe denunciar na diretoria do hospital por agressão física e verbal a uma funcionaria_ mais que petulância dessa mulher, era só o que faltava, primeiro Helioth agora essa.
- Hum! Como se isso adiantasse alguma coisa, olhe pra você e olhe pra mim, somos de classes diferentes_ tenho certeza que ela não se referia ao dinheiro e sim a minha cor_ você pensa que pode me afrontar? Saia e não volte a tocar na minha filha.
Toco o sinal que fica ao pé da cama e logo depois uma enfermeira entra, meus olhos não saiam da mulher a minha frente, já fui humilhada de várias formas mais nunca proibida de cuidar de um paciente por ser negra, nunca, isso me chocou ao estremo.
- Doutora Amira o que ouve?_ diz a enfermeira.
- Cuide da paciente, veja a temperatura e depois encaminhe ao Doutor Joséph...
- Opá ouvi meu nome?_ o mesmo entra e de cara percebe a tensão entre ambas, eu e a mão da paciente._ o que está acontecendo aqui?_ me lança um olhar questionador.
- Está havendo, é que esse hospital deixa qualquer um cuidar de pacientes VIPs, cheguei aqui e essa mulher estava prestes a colocar essas mãos imundas em minha filha.
- Eu acho melhor a Senhora se acalmar, a Doutora Amira é uma excelente médica em breve estará se formando e tenho certeza que continuara no grupo Santa Helena, não entendo o motivo da sua irritação_ diz o Doutor enquanto isso a enfermeira apenas observa toda a tensão.
- Doutor, acontece que essa senhora... _ me interrompe
- O senhor não percebe Doutor essa mulher é...
- Não continue Dona Marina ou serei obrigado a denunciar seus atos de racismo contra uma funcionária do hospital_ diz o médico entre dentes
- Calma Doutor, não acho viável uma discussão no leito da criança, faça a avaliação da mesma, eu sairei e depois continuamos essa conversa na diretoria_ digo tentando não perder a calma.
- Tudo bem_ diz_ espere-me em minha sala logo estarei lá para falarmos sobre o ocorrido.
Eu não esperei ele repetir, sai da sala com mais de mil, sem olhar a ninguém, meu coração batia desenfreado dentro do peito, me dirigi ao corredor onde ficavam os banheiros e entrei, por sorte não havia ninguém. Olhei-me no espelho e perguntei-me.
O que ha de errado comigo?
- Nada... _respondi para o reflexo de mim mesma no espelho.
Não ha nada de errado em ser você mesma, em ter raça. Não há nada de errado em ser de pele escura, sangue corre nas minhas veias assim com corre nas veias de quem me julga por ser preta.
O sentimento de impotência que antes sentia sempre que era maltratada com xingamento, apelidos, não existe mais, me tornei uma mulher, guerreira que luta pelos seus sonhos, não deixarei ser abalada por nada, fincarei meus pés na terra nas minhas raízes e continuarei forte.
Ser negro é uma construção social, histórica e cultural, onde uma pessoa se reconhece na conjunção do grupo ético/ racial a partir da sua história. Ser negro é lutar por igualdade e liberdade. Ser negro é ser historia de um povo que por anos busca conquistar seu espaço na sociedade hipócrita em que vivemos. Ser negro nesse Brasil onde existe tanto preconceito é uma luta permanente pela sobrevivência, sobreviver para viver um sonho de liberdade e igualdade que tantos como nos não puderam viver, pois, as garras da sociedade lhe arrancaram a oportunidade de apreciar toda e qualquer liberdade. Até quando seremos vitimizados por essa sociedade?
Somos todos iguais.
Nosso sangue também é vermelho.
E não é a minha ou a sua cor que me tornara melhor ou pior.
Somos todos filho de Deus.
Feitos a sua imagem.
De fato, todos iguais......