Até daria para ficar na casa dos meus coroas e acompanhar tudo de longe, mas aqui é muita cobrança, pouca privacidade e nada do que eu faça é válido, todo mundo acha que sou uma bomba relógio prestes a estourar e prejudicar todo mundo. Não que estejam de todo errado, mas também não é de todo certo.
Não tiro a razão deles estarem com o pé atrás, afinal não foi a primeira vez que fui presa, contudo nunca prejudiquei ninguém além de mim mesma. Na verdade não sei nem o porquê de falarem tanto, se nem foram me visitar.
Abano a cabeça como que para afastar os pensamentos, melhor eu não remoer esse assunto, eu sei o que estou fazendo e estou tranquila com tudo isso, sei exatamente o que estou abrindo mão e os riscos que estou assumindo.
Um grupo é criado, nele todos os envolvidos no suporte inicial são adicionados e as orientações começam a ser dadas. De acordo com os irmãos, os trabalhos devem ser iniciados em dois dias, logo não tenho tempo a perder, o lema é faturar para viver bem, afinal o corre não pode parar.
Um dia antes, reúno pessoal do morro e passo a visão do novo quadro de liderança, como sou eu quem designa os cargos de confiança, quase todos são ocupados por mulheres, minha gestão é diferenciada e feminina, o que deixa muitos irmãos contrariados.
Não demora muito para que chova reclamações de os cargos serem ocupados por mulheres, a princípio tento ser gentil e explicar minhas preferências, contudo ignoram e persistem então decido mudar a postura e deixo claro que o meu quadro sou eu quem escolho, e sem que haja um vacilo ninguém será substituído, portanto é melhor cada um cuidar da própria função.
A reunião foi feita em uma área de lazer, no primeiro momento repassamos os fundamentos da facção, as normas do morro, os cargos, as formas de distribuição das mercadorias, uso do armamento do paiol e as estruturas das barreiras de contenção. Aproveitando o ensejo, fizemos um levantamento de tudo que está em falta por aqui, a lista é enorme e espantosa haja visto o tamanho do morro e o quão lucrativo ele é.
Logo após cumprirmos todo o cronograma de trabalho, libero o churrasco, a piscina e a bebida, depois da obrigação que venha a diversão.
- Dinda qual vulgo a senhora vai usar? Ou podemos chamar pelo antigo? - Nicole me pergunta e me dou conta de que não tinha pensado nisso, mas respondo de súbito.
-Rafaela! Vulgo Rafaela, filhota - Respondo enquanto bebo outro gole do meu suco, evito consumir bebida alcoólica estando fora de casa.
Nicole volta para junto do pessoal e eu fico sentada de longe, pego meu telefone e corro minha linha do tempo nas redes sociais. Em instantes me perco em pensamentos e fico me perguntando quais dificuldades vou ter que lidar nessa nova caminhada.
- Oi dona Flávia! Ou não é assim que é pra chamar? - Tiro as vistas do telefone e olho na direção da voz.
Um homem alto e forte está parado em minha frente me observando e aguardando minha resposta, ao seu lado tem outro, ambos são irmãos no morro e eu já os conheço de vista há alguns anos, porém nunca conversamos, dou mais uma analisada nos dois em silêncio e sinto que os problemas começaram a chegar.
-Rafaela, e vocês são Thor e Peso da Morte, certo? Em que posso ajudar?- pergunto me levantando e saudando os dois com um aperto de mão.
-Então Rafaela, eu sei que a senhora já veio com instruções superiores, sei que está seguindo o fundamento da organização, mas o que eu quero dizer é que isso não funciona por aqui, a senhora não é a primeira que tenta e nem será a última, contudo acho de bom tom alerta-a, todos que vieram e insistiram acabou caindo,e outra eu não rendo pra facção não, minha mercadoria sou eu quem trago, tenho meus corres e não vou pegar com vocês, vou vender onde e como eu quiser - ele fala e eu apenas escuto, antes de prosseguir ele ergue a camiseta deixando um 38 à vista- E tem outra mana se tentar me oprimir eu passo por cima.
- Então na primeira reunião já está me ameaçando?- Por dentro estou gelada, mas tento me manter firme por fora.
- É só um aviso! - ele fala e ambos saem sem sequer olhar para trás.
Quem esse cara tá achando que é? Eu posso parecer sonsa ou frágil, mas ele está desafiando a pessoa errada. Ele não me conhece, antes mesmo que ele imagine vai ter a resposta que merece, deixa estar que ele vai parar na mão.
Ao fim do dia, me despeço do pessoal e vou para casa, preciso me organizar para buscar um carregamento, isso me preocupa, mas como é o primeiro quero estar junto para conhecer melhor as rotas e o modo operante.
Me apresso até em casa, entro e minha mãe está me esperando na sala com cara de poucos amigos, ouço seus sermões em silêncio, pois sei que ela está certa, assim que ela termina eu a abraço e peço que ela fique tranquila, minto que não estou fazendo nada errado.
Separo uma roupa social, pego uma bolsa elegante, e na madrugada eu saio pé por pé na esperança de que ninguém esteja me vendo sair, contudo antes mesmo que eu chegue na metade do caminho meu telefone vibra, abro a notificação e é uma mensagem do meu pai.
(Papai) 03:48
Seu destino está diretamente ligado às escolhas que você faz hoje, eu gostaria muito que você não fosse para o caminho errado, mas eu não posso te prender aqui, pensa como você quer estar daqui a alguns anos, nós te amamos e te queremos bem. Seus filhos precisam da mãe e eu da minha filha.
(Papai) 03:49
Um vez quando você tinha 02 aninhos eu te coloquei no balanço e você caiu, então eu te ajudei a levantar e disse que você poderia tentar quantas vezes fossem possíveis e que você é capaz, eu queria poder evitar todas as suas quedas que você ainda terá, mas como não posso quero apenas que se lembre que eu vou estar com você em todas as vezes que precisar de mim.
Leio as mensagens, porém não respondo, nada do que eu diga é páreo para frases tão verdadeiras, melhor seguir em silêncio e suportar o peso dessas palavras no meu coração. Meu pai é meu exemplo de bondade e honestidade, o homem da minha vida, meu herói, decepcioná-lo me deixa destruída, e ao menos nesse momento esse é um passo sem volta.
Entro no local marcado para receber o carregamento, meus guris já estão aqui, o morro do VP, vejo alguns dos homens dele na contenção, abaixo o vidro e estacionando próximo aos demais carros, quem vai fazer a entrega é o sub do dono, conhecido por Tom, famosinho no meio do corre, mas para mim ele é que nem caviar, nunca o vi mas já ouvi falar.
Estamos em dois carros, a entrega é em uma estrada com várias saídas, confiro a carga com os vapores e somente quando já está tudo no carro que vai levar o Tom desce de um dos carros. Ele me olha de cima para baixo e me dá um sorriso safado, não dou brecha, olho firme e séria entregando o dinheiro para ele que faz menção de guardar sem conferir.
Venho de experiências ruins, definitivamente seria muito amadorismo da minha parte pagar e não exigir a conferência, da para sentir a energia irritada de Tom quando fiz questão de que ele contasse tudo ali, a lógica é uma só, não nos conhecemos, eu confiro a mercadoria e ele o dinheiro. Por mais estressante que seja, é melhor evitar.
Depois de tudo certo, entro no carro e seguimos para o morro, tenho muita pressa, preciso deixar tudo no morro e voltar para casa. O trajeto de volta é bem tenso, muitas viaturas da polícia por todo lado, felizmente estou bem discreta e ainda não sou figurinha na mão desses vermes.
Entramos com segurança no morro, vamos até o barracão e descarregamos a mercadoria, volto para casa em tempo de tomar café com meus pais, conversamos sobre a vida e eu os comunico sobre a desistência da vaga no hotel.
- Não quero ouvir sermões nesse momento, eu já sei tudo que vão dizer e não vai mudar em nada o curso das coisas- Interrompo os protestos.
Terminamos o café no mais completo silêncio, lavo a louça que está na pia, dou um beijo nos meus filhos e subo o morro, estou morrendo de sono, mas ainda tem muito trabalho para fazer. Coloquei alguns vapores em pontos estratégicos nos arredores de casa, ainda preciso comunicar minha família sobre a necessidade de eu subir de mudança ainda essa semana.
Entro no barracão e vou direto para minha sala, assim que entro Val, minha sub, vem atrás me lembrando de tudo que preciso fazer no dia, mas o meu foco principal é organizar os números do morro, preciso saber a demanda de mercadoria.
- Certo! Vamos fazer tudo isso, mas primeiro quero saber exatamente quantos irmãos temos, quantos companheiros, quantas lojinhas ativas, quantos presos e quantas famílias estão mais necessitadas de assistência social. - Peço me sentando à mesa e ligando o notebook.
- Até o fim do dia lhe entrego os relatórios- Ela responde e vira as costas.
Assim que Val sai, meu telefone toca, o irmão Papa, o mesmo que me colocou à frente do morro. Atendo com um frio na barriga.
- Salve maninho!!- Cumprimento nervosa.
- Salve mana, foi tudo certo com o carregamento? Já estamos trabalhando? Como foi a reunião com os irmãos? Era para ligar ontem mas teve "dezoito aqui".
- Tudo certíssimo, já estamos cadastrando e reativando as lojas, a reunião foi relativamente tranquila, alguns irmãos contestaram meu quadro, mas nem Jesus agradou todo mundo, não vai ser eu né- eu falo e caímos na gargalhada- Só que o problema não é esse...- começo a falar e hesito.
- Já solta a voz, o que está pegando? Pode falar que a gente resolve de imediato. - ele fala firme.
- Logo após a reunião, liberei o churrasco e a bebida, estava sentada dando um tempo pra vir embora quando vieram dois irmãos até minha mesa, irmão Thor e Peso da Morte, eles me ameaçaram com um 38, disse que não rende pra facção, que outros já tentaram ficar aqui mas que caíram...
- Oh mana parada é a seguinte, essas ideias não procedem, "pagar de ameaça não vira", amanhã a gente já vai dar um basta nisso. Chega nos irmãos da disciplinas, passa a visão que é para eles piar esses malditos e mostrar como funciona, já devia ter feito isso lá na hora- Ele fala e em sua voz eu já consigo sentir a irritação.
-Certo mano, já vou acionar os mano aqui e montar o grupo para o resumo das ideias.
Desligo a chamada e imediatamente chamo no grupo para acionar o pessoal do quadro disciplinar, coloco todos no grupo, mano Papa explica o que é para fazer e todos saem na captura dos dois safados. Ainda tenho muito o quê aprender, e eu vou conseguir, dominarei este morro como homem nenhum nunca fez.
Na história do Morro Celeste, eu sou a primeira "Dona" e eu vou honrar esse título.