O grito rasgou a noite.
Meus olhos se abriram de súbito, o peito arfando, os lençóis ensopados de suor. Ainda sentia o gosto metálico do sangue na boca. O calor das chamas devorando minha pele. O som das últimas palavras dele ecoando dentro do meu crânio como um chicote:
"Você não é nada pra mim."
Mais uma vez, morri por ele.
Mais uma vez, renasci sozinha.
Empurrei os lençóis e me levantei, como se o chão ainda queimasse sob meus pés. Caminhei até o espelho e encarei meu reflexo. Olhos âmbar, cabelos negros grudados na testa pelo suor, veias pulsando de lembranças. A mesma maldita cara. A mesma maldita maldição.
- Quanto tempo desta vez? - sussurrei, o eco da pergunta sumindo no quarto vazio.
Fazia vinte e oito dias desde que acordei neste corpo.
Nova cidade. Novo nome. Mesmo destino. Sempre sozinha.
Mas a mesma alma marcada. A mesma maldição que me acompanhava há séculos: morrer, lembrar, recomeçar. Sozinha.
Em todas as vidas, eu o encontro. Meu companheiro. O homem cuja alma está entrelaçada à minha por alguma piada cruel do destino. Às vezes, ele me ignora. Às vezes, me odeia. Às vezes... ele me mata.
Mas em nenhuma delas, ele fica.
Suspirei, jogando água fria no rosto. A dor não passava. Nunca passava. Porque, diferente de todos, eu lembro de tudo.
Decidi então, saí para caminhar antes que a cidade acordasse. O céu ainda era um manto cinza, e as luzes dos postes piscavam como se sussurrassem segredos esquecidos. Gosto de andar entre os humanos. Eles não sentem. Não olham duas vezes. Para eles, sou só uma mulher estranha com olhos tristes e passos silenciosos.
E é melhor assim. Quanto menos laços, menos dor. Aprendi a não me apegar. A não desejar. A não esperar.
Mas o destino sempre dá um jeito de me encontrar.
E isso se provou quando o vento soprou de repente, cortando entre os prédios. Meu corpo enrijeceu. Um arrepio subiu pela espinha.
O cheiro. Inconfundível.
Pinho queimado. Couro molhado. Sangue de lobo.
Meu estômago revirou. O coração tropeçou em batidas fora do compasso.
Ele está perto.
Girei os olhos, os sentidos em alerta, cada passo soava como um presságio arrastando correntes invisíveis, procurando em cada esquina o cheiro que gritava por mim, há tantos séculos.
Andei por mais uma quadra. Virei a esquina. E nada. Até que de repente, um estrondo é ouvido quando meu Ipad escorrega das minhas mãos e eu perco o equilíbrio bem no meio da calçada das ruas que pouco a pouco, começava a encher.
- Ai! - exclamei, quando senti aquele esbarrão batendo com força no meu ombro, quase me fazendo cair.
- Droga, desculpa! - disse o homem, apressado, de fones no ouvido e mochila nas costas. - Nem vi você aí...
- Tudo bem - murmurei, mas minha voz saiu rouca, distante.
Aquilo acontecia com frequência: não ser vista. Aquele homem sequer perguntou se eu estava bem, e em segundos, já estava se afastando.
Naquele instante, percebi o quanto minhas mãos tremiam. O coração batia fora do ritmo.
Não por causa do esbarrão.
Mas porque... eu sabia. Isso se provou quando de repente o cheiro ficou mais forte.
Ergui os olhos devagar e o mundo pareceu desacelerar. Porque bem... ali estava ele.
Do outro lado da rua. Alto. Ombros largos. Postura de predador. O mesmo olhar de todas as vidas. Intenso, fundo... cruel. Mas desta vez, havia algo mais.
Ele me olhava. Como se... me conhecesse. Como se lembrasse? Aquilo não podia ser possível. Por um segundo, vi a mim mesma nos braços dele, sangrando. O mesmo olhar. Mas naquela vida... ele chorava.
Até que de repente, ele disse; com a voz rouca, como se acordasse de um sonho esquecido:
- Você...