O golpe militar contra Hirohito não surtira efeito. O Imperador Shōwa não era tolo como supunham seus oponentes e, ao ser avisado da rebelião, conteve-a com morte e força. Muitos jovens oficiais foram mortos, punidos pela traição contra seu líder, trazendo a desonra e a vergonha sob seus nomes.
Independente da questão política que fazia o sangue de todos os habitantes da ilha tremer, o menino de dez anos chorava ao lado do leito, não pelos soldados mortos, ou pela nova guerra que já despontava no horizonte. Lamentava pela mãe, que fraca demais para erguer a cabeça, apenas o consolava com um carinho gentil nos cabelos.
Shiromiya Kazue havia perdido o pai na invasão da Manchúria. Tinha apenas cinco anos na época, por isso não se lembrava com clareza do rosto paterno, mas cresceu ouvindo sobre a hombridade do homem que o gerou, sobre como ele havia sido um herói no Grande sismo de Kantō, quando salvara muitas pessoas que ficaram soterradas pelas casas que caíram durante o evento. No entanto, o herói morrera lutando na Ásia, deixando desamparados a esposa doente e os dois filhos pequenos.
A mãe trabalhou, cuidando das plantações de arroz que cercavam o casebre pobre em que viviam, até o corpo não aguentar mais. Ele e o irmão Satoshi haviam ajudado-a da forma que podiam, mas ambos ainda não tinham idade para fazer a parte mais difícil do labor, e a rotina pesada minou o resto de forças que existia na frágil mulher.
- O que será de nós, Nii-chan ? – ele perguntou ao irmão que sentava num canto, os olhos arregalados.
Satoshi baixou a face, mortificado. Tinha doze anos, mas era miúdo, quase do tamanho do irmão mais novo. Porém, a grande diferença entre eles era a aparência. Shiromiya Kazue era incrivelmente belo, olhos amendoados e cabelos negros como a noite sem estrelas. O nariz arrebitado formava um conjunto harmônico com a boca pequena. Tão bonito que parecia uma menina. E isso era o motivo de anedota em toda a comunidade, mas a criança parecia não perceber. Alheio a tudo, o garotinho vivia correndo de um lado para o outro, brincando com espigas de milho que fingia serem seus amigos, sem se importar com as maledicências. Satoshi, todavia, não tinha tamanho torpor.
Na roda de amigos, era ridicularizado por causa do irmão. Na rua, os maiores apontavam para Kazue e riam, irritando Satoshi. Diziam–lhe que ele devia cuidar da "irmã", pois ela seria muito bela quando crescesse. Caso o pai fosse vivo, com certeza, daria fim às palavras maldosas. Mas Satoshi, apesar de ser, então, o membro masculino mais velho de seu lar, não tinha a capacidade de proteger a honra dos Shiromiya como seu pai faria e isso o irritava intensamente.
Então, aquela raiva, sem que percebesse, foi se transferindo, gradativamente contra Kazue. Maldito, por que nascera? passou a questionar. A mãe nunca mais foi a mulher saudável que antes era após dar-lhe à luz. Teriam sido bem mais felizes sem aquele pirralho com rosto feminino dentro de casa.
Satoshi abraçou a si mesmo, numa vã tentativa de espantar o sentimento ruim.
- Ainda teremos um ao outro - Kazue se aproximou e o enlaçou, entendendo errado aquele silêncio doloroso.
A casa de tábuas velhas rangeu ao atrito do vento. Um cão, ao longe, uivou, e em seguida, o som da chuva bateu contra o telhado de barro. Um leve gemido escapou dos lábios maternos. Kazue e Satoshi correram até a mãe, e aguardaram.
Naquela mesma tarde, ambos choraram em luto. A vida tirava deles, cedo demais, a pessoa que mais os amaria, deixando-os ao léu e solitários perante o que o destino lhes preparava.
***
O som da carroça fez o menino olhar para as rodas. O velho transporte de madeira parecia prestes a ruir, deixando claro que estava no seu limite. Kazue observou a lona que o irmão colocou por cima, na intenção de formar uma guarida nas noites frias. Baixinho, pediu ao espírito da mãe para manter a carroça em pé pelo tempo necessário, temeroso de ter que ficar sem um abrigo.
Foram expulsos de casa na manhã seguinte à morte da mãe. A proprietária da casa em que viviam, havia lhes dito que lá não era lugar de criança. Ela estava dando a casa para um casal, que pagaria o teto com o labor na roça. Kazue quis ajoelhar-se perante ela, implorar por misericórdia, mas Satoshi estava convicto em irem embora.
Já haviam se passado três meses desde então, e não haviam conseguido nada além de um pouco de comida e água pelos trabalhos que haviam feito. Com os conflitos que logo começariam, a economia decaía a olhos vistos, e a maioria das pessoas não podia se dar ao luxo de contratar meninos para ajudar nas colheitas.
- Estou com fome... - o menor choramingou.
Dois dias havia se passado desde o último bolo de arroz. E eles haviam caminhado muito, procurando trabalho. O estômago queimava, a boca salivava e a mente lhe provocava vertigens.
- Também estou com fome! - Satoshi gritou, zangado. - Pare de me importunar!
O menor quis chorar, mas temeu que o irmão pegasse uma vara e lhe desferisse golpes no bumbum. Então, apenas aquietou-se, segurando firme o boneco de espiga de milho que havia trazido consigo.
Chegaram a uma vila pouco tempo depois. As casas rústicas, pobres e feias eram a combinação perfeita para o cheiro desagradável de sujeira.
- Onde estamos? - o menor indagou.
- Fique aqui - foi tudo que ouviu.
Satoshi caminhou até um lugar que parecia um bar. Homens sentavam-se em tocos de madeira. Um cheiro de saquê invadiu suas narinas, incomodando-o.
Pouco depois, o irmão voltou. Estava acompanhado de um homem velho, aparentando ter cerca de cinquenta anos. Ambos estavam sérios e Kazue segurou-se na carroça velha, nervoso. Porém, em seguida, o homem sorriu em sua direção. Os olhos infantis voltaram-se para o irmão, questionadores.
- Ele vai nos dar comida - Satoshi contou.
Todavia, não havia em seu semblante qualquer conotação de alívio ou felicidade. A carranca mais parecia conflituosa e culpada.
- Arigatou - o menino curvou-se perante o homem.
O velho lambeu os lábios, encarando-o com curiosidade.
- Parece uma menina de cabelos curtos - falou, pela primeira vez.
- É um menino - Satoshi insistiu.
Em segundos, estava ao seu lado. A carroça parada entre a rua deserta e uma parede de concreto bloqueava a visão dos transeuntes. Com a privacidade, o irmão mais velho não pestanejou, e tão logo se aproximou, puxou-lhe as calças para baixo, expondo o pênis minúsculo.
Kazue assustou-se, ajeitando novamente o tecido sob si, cobrindo-se. Enrubescido, abotoou as calças, olhando sem jeito para o homem. Viu-o rindo baixinho.
- É muito bonitinho - murmurou, encantado. - Quanto você quer?
- Trezentos ienes e dois pratos de arroz com peixe - Satoshi fixou.
- Dinheiro não é o forte dessa vila, meu rapaz - o homem voltou a lamber os lábios.
Kazue enojou-se perante a imagem úmida. Virou o rosto para o irmão, tentando entender o que estava sendo negociado.
- Preciso do dinheiro para me manter - o mais velho dos Shiromiya justificou-se.
- Dou-lhe os dois pratos de arroz com peixe, um saco de milho e algumas batatas para você levar na viagem.
Satoshi pareceu ponderar.
- Tudo bem - disse, por fim. - Mas só terá o que quer após pagar.
***
O sol já sumia no horizonte quando o homem de boca molhada voltou. Como combinado, ele trouxe o arroz e peixe prontos em uma bacia, e os sacos com os milhos e as batatas. Kazue sorriu, feliz, quase correndo em direção aos alimentos, quando o irmão voltou-se para ele.
- Entre na carroça - ordenou.
Não entendeu a ordem, mas a obedeceu. Assim que estava abrigado, sentou-se entre os panos que lhes servia de coberta, os ouvidos atentos ao que acontecia lá fora. Porém não houve sons, nem discussões. Apenas ouviu o barulho de passos e imaginou que fosse o homem indo embora. Havia se enganado. Quem se afastou foi Satoshi. O homem de lábios úmidos entrou na carroça e sentou-se a sua frente.
Sentiu-se incomodado, especialmente pela forma com que era olhado.
- Como você se chama? - o homem perguntou, lambendo, de novo, os lábios.
O estômago da criança revirou novamente, e ele pensou que fosse vomitar.
- Kazue - respondeu.
O homem assentiu.
- Sente-se aqui no meu colo, Kazue - ele o chamou. - Quero brincar com você...
***
Satoshi tremia tanto que mal conseguia segurar as malditas sacolas. Ouviu os gritos de Kazue durante os quinze minutos que se sucederam como se fossem horas. Estava pálido, maldizendo a si mesmo, sabendo que condenava a sua jovem alma ao inferno depois daquilo.
Porém, motivado pelo desespero, decidiu ignorar o remorso. Depois de alguns dias sem comer, Satoshi soube que faria qualquer coisa. Até entraria na carroça, caso o homem quisesse. Mas ele, nem de longe, era tão bonito quanto Kazue, nem despertava tanta atenção.
Quando o corpo grande saiu da carroça, ele, enfim, saiu do torpor. O homem acenou para ele, sorrindo e foi embora. Satoshi, então, caminhou até a carroça, sabendo de antemão a imagem que veria.
Solidificou o coração o suficiente para nada sentir, mesmo quando a visão do menino de dez anos, nu e ensanguentado entre as nádegas, atingiu-o em cheio. Fechou os olhos, enchendo os pulmões de ar. Em seguida, voltou a abri-los, frio.
- Aqui, o arroz - disse, enquanto colocava um pote de cerâmica ao lado da criança deitada. - Coma - mandou.
Kazue ergueu os olhos lacrimejantes para o irmão. Em seguida, porém, seus dedos pequenos afundaram–se no alimento, e com uma urgência angustiante, ele comeu tudo com sofreguidão.