De repente, eu me tornei um constrangimento. Seus novos amigos sussurravam sobre a "garçonete" que o estava puxando para baixo. Ele começou a me esquecer também. Esqueceu meu aniversário. Esqueceu minha comida favorita. Durante um alarme de incêndio em um restaurante, ele passou correndo por mim para salvá-la, me deixando cair na multidão em pânico.
Fui eu quem o tirei do parapeito de um prédio quando ele queria morrer. Eu sacrifiquei meus próprios sonhos para que ele pudesse ter os dele. Eu pensei que ele me amava, mas eu era apenas uma dívida que ele se sentia obrigado a pagar.
Depois que ele me deixou naquele incêndio, eu finalmente desisti. Comprei uma passagem só de ida para casa, pronta para desaparecer da vida dele.
Então, recebi um vídeo de Carla - sua confissão de amor chorosa para ele.
Respirei fundo, enviei uma última mensagem dizendo que tínhamos terminado e bloqueei o número dele para sempre.
Capítulo 1
- Você vai mesmo voltar? - a voz de Mayara falhou no telefone, cheia de incredulidade.
Eu observava as luzes de São Paulo se borrarem através do vidro barato da janela do meu apartamento. A chuva escorria pelo painel, fazendo os letreiros de neon sangrarem em longas e tristes listras.
- Sim. Estou voltando pra casa.
- Assim, do nada? Depois de dez anos? Você vai desistir de tudo que construiu aí?
As perguntas dela pairavam no ar. Eu sabia o que ela realmente estava perguntando. Ela estava perguntando sobre ele.
- Não há mais nada para mim aqui - eu disse, minha voz vazia. Tracei uma gota de chuva com o dedo, observando-a se juntar a outra e deslizar para longe.
- O Daniel vai com você? - Mayara finalmente fez a pergunta que nós duas estávamos evitando.
Um buraco se abriu no meu peito. O nome parecia pesado, uma pedra que eu carregava há uma década. Não respondi imediatamente. O silêncio se estendeu, preenchido apenas pelo zumbido da geladeira velha.
- Não - eu disse, minha voz mal um sussurro. - Estou indo embora sozinha.
Naquele exato momento, meu celular vibrou com uma mensagem. Era de um número que eu não reconhecia, mas a mensagem era clara.
Uma única e nítida foto de uma passagem de ônibus. A minha passagem. Para amanhã de manhã.
Abaixo dela, uma frase curta: "Ele não será mais atrasado por você. Isso é para o bem de todos."
Era dela. Carla Vidal.
Digitei uma resposta simples, meu polegar firme apesar do tremor em meu coração.
"Eu sei."
Então apaguei a conversa e bloqueei o número.
O nome Daniel ecoava em minha mente. Era um nome que um dia significou o mundo para mim.
Lembrei-me da primeira vez que o vi. Ele estava no palco, recebendo um prêmio universitário por uma competição de programação que havia vencido. Ele era brilhante, o garoto de ouro da nossa universidade pública, seu futuro tão brilhante quanto as luzes do palco que o iluminavam. Todos sabiam seu nome.
Eu era apenas Bianca Ferreira, uma garota de uma cidade esquecida do ABC Paulista, sentada no fundo do auditório. Eu me sentia comum, invisível. Eu trabalhava em dois empregos para pagar minha faculdade e mal tinha tempo para estudar. Ele era uma estrela, e eu era apenas uma sombra na multidão.
Então o mundo dele desabou.
Um escândalo familiar explodiu. Seu pai, um empresário local, foi preso por fraude. De repente, o garoto de ouro era o filho de um criminoso. Os sussurros o seguiam por toda parte. Segredos de família antigos, registros de atos infracionais da adolescência, tudo foi arrastado para a luz pelos jornais locais.
As pessoas que antes o admiravam agora apontavam e zombavam. Ele foi rejeitado, humilhado.
Uma noite, durante uma festa no campus, eu o vi escapar. Um pressentimento me fez segui-lo. Eu o encontrei no telhado do prédio mais alto do campus, de pé no parapeito. O vento rasgava suas roupas, e ele parecia tão quebrado, tão pequeno contra o vasto e escuro céu.
Ele ia pular.
Eu não pensei. Apenas corri. Agarrei seu braço, meus dedos cravando em sua jaqueta. Puxei com toda a minha força, meu próprio medo me tornando forte. Nós tropeçamos para trás, caindo juntos no telhado sujo.
Ele olhou para mim, seus olhos vazios.
- Por que você me impediu?
Eu não tinha uma resposta. Não conseguia explicar por que a ideia de ele não existir mais parecia um rasgo no tecido do mundo. Então, apenas segurei seu braço, meus nós dos dedos brancos, e me recusei a soltar.
Ficamos lá por horas, sem falar, apenas duas pessoas quebradas no ar frio da noite.
Aquele foi o começo. Ele largou a faculdade, incapaz de encarar a vergonha. Eu encontrei para ele um apartamento pequeno e barato, longe do campus. E então eu tomei uma decisão. Eu também larguei a faculdade.
Eu abri mão do meu próprio futuro.
Trabalhei como garçonete, barista, faxineira. Aceitei qualquer turno que consegui, minhas mãos em carne viva, meu corpo doendo. Economizei cada centavo para mandá-lo de volta para a faculdade, não para a nossa universidade pública, mas para uma de prestígio, a USP, um lugar onde ninguém conhecia seu nome, onde ele poderia recomeçar.
Ele me perguntou uma vez, seus olhos cheios de uma mistura de culpa e confusão:
- Bianca, por que você está fazendo isso?
Eu estava exausta, cheirando a café velho e desinfetante, mas forcei um sorriso.
- Porque você é um gênio, Daniel. O mundo precisa ver isso. Eu só... não sou.
Ele olhou para mim então, sua expressão séria.
- Eu vou te recompensar. Eu juro. Um dia, eu vou te dar tudo.
E ele deu. Ele se formou com as maiores honras. Foi recrutado por uma grande empresa de tecnologia. Ele se tornou o Daniel Rocha que todos esperavam que ele fosse - uma estrela em ascensão, um inovador.
Nós nos mudamos para um lindo apartamento de luxo, do tipo que eu costumava limpar. As luzes da cidade que antes pareciam tão distantes eram agora nossa vista noturna.
Eu pensei que a parte difícil tinha acabado. Pensei que finalmente tínhamos conseguido.
Mas eu estava errada. O pior ainda estava por vir.
Começou sutilmente. Eu estava usando o notebook dele para procurar uma receita uma noite quando uma mensagem apareceu. Era de alguém chamada Carla.
A foto mostrava uma mulher com um sorriso brilhante e confiante e olhos que brilhavam com inteligência. Ela era linda, sofisticada, o tipo de mulher que pertencia ao novo mundo dele.
As mensagens eram frequentes, cheias de piadas internas sobre o trabalho, discussões sobre algoritmos complexos que eu não entendia e planos para um café ou almoço.
As respostas dele eram curtas, quase desdenhosas. "Ocupado." "Sem tempo." "Depois."
Senti um pequeno e tolo lampejo de alívio.
Então, uma noite, ele chegou em casa parecendo perturbado. Ele andava de um lado para o outro na sala, passando a mão pelo cabelo.
- Bianca - ele disse, parando na minha frente. - Como você... faz uma garota gostar de você?
A pergunta me atingiu como um golpe físico. O ar saiu dos meus pulmões.
- Que tipo de garota? - perguntei, minha voz tensa.
- Alguém... sofisticada. Inteligente. De um mundo diferente.
Carla.
Meu coração se partiu. Todos esses anos, eu fui sua salvadora, sua apoiadora, sua rocha. Eu cozinhei para ele, limpei para ele, o abracei quando os pesadelos de seu passado voltavam. Eu pensei que ele me amava.
Mas eu fui uma tola. Ele era grato. Ele se sentia em dívida. Mas ele não me amava.
Eu nunca tinha dito a ele como me sentia. Eu sempre fui a forte, a prática. Pensei que minhas ações falavam por si. Pensei que ele entendia que tudo que eu fazia, eu fazia por amor.
Agora eu sabia. Ele me via como uma dívida a ser paga, não como uma mulher a ser amada.
No dia seguinte, Carla Vidal me encontrou na cafeteria onde eu ainda trabalhava meio período. Ela se sentou na minha frente, seu perfume caro enchendo o ar. Ela não perdeu tempo.
Ela deslizou uma pasta sobre a mesa. Era o registro de atos infracionais selado de Daniel. A única coisa que ainda poderia destruir sua carreira se viesse à tona.
- O primo dele, Demétrio, está ameaçando divulgar isso - ela disse calmamente. - Daniel está prestes a conseguir uma grande promoção. Isso o arruinaria.
Meu sangue gelou.
- Mas não se preocupe - ela continuou, seu sorriso afiado. - Meu pai está no conselho. Eu posso fazer esse problema desaparecer. Eu posso protegê-lo.
Ela fez uma pausa, seus olhos encontrando os meus.
- Você não pode. Você o está atrasando, Bianca. Olhe para você. Olhe para ele. Vocês vivem em dois mundos diferentes. Ele se sente obrigado a você, e isso o está paralisando. Se você realmente o ama, vai deixá-lo ir.
Cada palavra era um dardo cuidadosamente apontado, e todos atingiram o alvo.
Naquela noite, fiquei acordada a noite toda, as palavras dela se repetindo em minha cabeça. Olhei para minhas mãos ásperas, minhas roupas simples. Pensei nas conversas que ele tinha com ela, no mundo de ideias e ambição que eu não podia compartilhar.
Ela estava certa. Eu não podia protegê-lo. Ele não me amava.
Ir embora era a única coisa gentil que eu poderia fazer. Era o último sacrifício que eu poderia fazer por ele.
Eu o libertaria. Eu estaria livre. Livre da esperança de que um dia ele me veria. Livre da dor de saber que ele nunca veria.
Uma dor aguda atravessou meu estômago, me dobrando ao meio. Eu ofeguei, agarrando meu abdômen. Era meu velho problema de estômago, um presente de anos de comida barata e estresse.
Procurei meus comprimidos, mas minhas mãos tremiam demais. O frasco escorregou, espalhando os pequenos comprimidos brancos pelo chão.
Naquele momento, a porta da frente se abriu. Daniel estava em casa.
Ele me viu no chão, cercada de pílulas, e correu para o meu lado.
- Bianca! O que há de errado?
Ele me pegou no colo e me levou para o sofá com uma facilidade nascida da longa prática. Ele sabia exatamente onde estava a bolsa de água quente, onde eu guardava a medicação de emergência.
Ele colocou uma caneca quente em minhas mãos, seu toque gentil.
- Obrigada - sussurrei, minha voz rouca.
- Você precisa se cuidar melhor - ele disse, sua testa franzida com uma preocupação familiar e distante. Ele estava preocupado, mas era a preocupação que se tem por uma responsabilidade.
Nos primeiros dias, quando meu estômago começou a dar problemas, ele me abraçava por horas, sussurrando desculpas, culpando-se pelo estresse que o causava. Agora, seu cuidado parecia uma rotina, um item de uma lista de verificação.
Ele estendeu a mão para afastar uma mecha de cabelo do meu rosto, um gesto que antes teria feito meu coração disparar.
Eu me encolhi e virei a cabeça.
Ele congelou, sua mão pairando no ar.
- Bianca?
A confusão em seus olhos era genuína. Ele não tinha ideia.
- Daniel, eu... - comecei a dizer. *Eu preciso ir embora.*
Mas o telefone dele tocou, quebrando o momento.
Ele olhou para o identificador de chamadas. Carla. Sua expressão se suavizou.
Ele atendeu, seus olhos ainda em mim, mas sua atenção já havia se esvaído.
- Carla? O que houve? ... Ok, ok, estou a caminho. Não se preocupe.
Ele desligou e se levantou, já pegando as chaves.
- A Carla está com algum problema. Eu tenho que ir.
Ele saiu pela porta antes que eu pudesse dizer uma palavra.
O clique da fechadura ecoou no apartamento silencioso. Era o som da minha última esperança morrendo.
Eu não tentei dizer adeus. Ele já tinha partido.
Sentei-me sozinha no escuro, a dor no meu estômago uma pontada surda em comparação com a do meu coração. Fui até a geladeira. Dentro havia um pequeno e simples cheesecake que eu havia comprado.
Hoje era meu aniversário.
Ele havia esquecido. Ele sempre esquecia.
Todos os anos, eu comprava um pequeno bolo para mim e fazia um desejo silencioso. Por dez anos, o desejo foi sempre o mesmo.
*Eu desejo a felicidade do Daniel.*
Acendi uma única vela e observei a pequena chama dançar. Em sua luz bruxuleante, eu o vi novamente, o garoto no telhado, perdido e quebrado.
Eu havia pego uma estrela cadente. Mas estrelas não pertencem ao chão. Elas devem queimar brilhantemente no céu, bem longe.