Meu marido, Heitor, o homem que jurou me amar, havia se divorciado secretamente de mim há três anos. E não era só isso. Ele se casou no dia seguinte com Cândida Camargo, a mulher que tentou me assassinar no dia do meu casamento e me deixou infértil. E eles tinham um filho de dois anos, o Joca.
Voltei para casa cambaleando, meu mundo um borrão, apenas para encontrar Heitor e Cândida discutindo na nossa sala de estar.
- Eu odeio ter que fingir por causa daquela mulher patética! - Cândida gritava.
Heitor, meu marido, implorava:
- Eu te amo. Eu sempre te amei.
O homem por quem sacrifiquei tudo, que jurou destruí-la, agora estava brincando de casinha com a minha assassina, e eu era a tola vivendo na casa dele, dormindo na cama dele, acreditando nas mentiras dele.
A dor no meu abdômen, uma dor fantasma de cinco anos atrás, ardeu com força, espelhando a ferida aberta na minha alma. Eu não seria mais a vítima dele.
- Hamilton - eu disse ao telefone, minha voz clara e firme. - Preciso da sua ajuda. Preciso que você me ajude a morrer.
Capítulo 1
As luzes fluorescentes do DETRAN zumbiam, um som monótono e infinito que combinava com o tédio no rosto de cada pessoa ali. Eu só precisava de uma segunda via da minha carteira de motorista. Tinha perdido minha carteira na semana passada, um inconveniente simples e irritante. Ou assim eu pensava.
Sentei na cadeira de plástico duro, meu número finalmente piscando na tela acima do balcão. E47.
Aproximei-me do guichê. A mulher atrás do vidro parecia exausta. Ela mascava seu chiclete lentamente, seus olhos mal me encarando.
- Boa tarde - eu disse, tentando parecer animada. - Preciso de uma segunda via da CNH. Elena Medeiros.
Ela digitou meu nome no computador, o teclar de suas unhas compridas sendo o único som por um momento. Ela parou de mascar o chiclete. Apertou os olhos para a tela.
- Elena Medeiros - ela repetiu. Olhou para mim, depois de volta para o monitor. - Tem um problema aqui.
- Um problema? - perguntei. - Minha foto está desatualizada?
- Não - disse ela, com a voz seca. - Seu estado civil. Aqui diz que você é divorciada.
O zumbido das luzes de repente pareceu mais alto. O ar na sala ficou denso. Forcei uma risadinha.
- Ah, deve ser um engano - eu disse. - Sou casada. Meu marido é Heitor Bastos. Estamos casados há cinco anos.
A mulher suspirou, uma lufada de ar que cheirava vagamente a menta. Ela virou o monitor um pouco na minha direção.
- O sistema diz que você se divorciou de Heitor Bastos há três anos.
Meu sorriso congelou. Meu sangue gelou. Isso não era apenas um engano. Era impossível.
- Não pode ser - insisti, minha voz tremendo um pouco. - Por favor, verifique de novo. Deve haver um erro no sistema.
Ela digitou novamente, mais deliberadamente desta vez. Balançou a cabeça.
- Sem erro. O divórcio foi finalizado em 12 de outubro, três anos atrás. Os registros são claros.
Minha mente girou. Três anos atrás. Estávamos de férias na Itália naquele mês. Heitor tinha sido tão atencioso, tão amoroso. Ele me comprou uma pulseira de diamantes, dizendo que cada dia comigo era um presente.
Não fazia sentido.
A atendente olhou para a tela novamente, sua expressão mudando de tédio para um lampejo de pena.
- E - ela acrescentou suavemente - diz que o Sr. Bastos se casou de novo.
O chão parecia inclinar sob meus pés.
- Casou de novo? Com quem?
- Uma tal de Cândida Camargo - disse a mulher, lendo da tela. - Eles se casaram no dia seguinte à finalização do seu divórcio.
Cândida Camargo. O nome me atingiu como um golpe físico. Uma onda de náusea me invadiu.
A mulher ainda não tinha terminado. Ela olhou para mim, seus olhos agora arregalados.
- E... eles têm um filho. Um menino. Joca Camargo. Ele tem dois anos.
Minha visão se afunilou. Os sons do DETRAN se transformaram em um rugido abafado. Um filho. Ele tinha um filho com Cândida Camargo.
Cândida. A mulher que tentou me matar.
A memória, enterrada por cinco anos, explodiu em minha mente. O dia do nosso casamento. O sol brilhava. Heitor me olhava com tanto amor que meu coração doía. Estávamos no altar, prestes a dizer nossos votos.
Então, o caos.
Cândida Camargo, seu rosto contorcido de ódio, gritando meu nome. A família dela era uma rival de negócios que Heitor havia esmagado, e ela jurara vingança. Ela avançou em Heitor com uma faca.
Eu não pensei. Joguei-me na frente dele.
A dor foi aguda, lancinante. Atravessou meu abdômen. Lembro-me de olhar para baixo, vendo o branco do meu vestido de noiva se tornar um vermelho doentio e brilhante. Lembro-me do grito de Heitor, seu rosto uma máscara de horror e fúria.
A última coisa que vi antes de desmaiar foi Heitor rugindo:
- Eu vou fazer você pagar por isso, Cândida! Juro pela minha vida, eu vou te destruir!
Acordei em uma cama de hospital. Os médicos me disseram que tive sorte de estar viva. Mas a faca causara danos irreparáveis. Eu nunca poderia ter filhos.
Heitor sentou-se ao lado da minha cama por semanas. Ele segurou minha mão, seus olhos cheios de lágrimas. Ele jurou que me amaria para sempre, que eu era a única mulher que ele desejaria. Ele disse que compensaria meu sacrifício, que nosso amor era suficiente.
Ele cumpriu sua promessa de destruir Cândida. Levou o que restava da empresa da família dela à falência, a expulsou da cidade e a transformou em uma pária social.
Ele a odiava. Ele jurou fazê-la sofrer.
Então, como?
Como ele podia ser casado com ela? Como eles podiam ter um filho?
Saí cambaleando do DETRAN, o sol forte de São Paulo parecendo áspero e frio. O mundo era um borrão de cores e ruídos, mas por dentro, eu estava entorpecida, congelada.
Minha vida, meu casamento, o amor sobre o qual construí todo o meu mundo - era tudo uma mentira. Por cinco anos, ele viveu uma vida dupla. Por três anos, eu fui sua ex-esposa, morando em sua casa, dormindo em sua cama, acreditando que era sua amada esposa.
Pensei nos últimos anos. As viagens de negócios que se tornaram mais longas e frequentes. As noites em que ele chegava tarde, cheirando a um perfume que não era o meu, que ele culpava em uma cliente. As vezes em que ele ficava com raiva por nada, dizendo que eu estava sendo muito emotiva, muito carente, que eu estava imaginando coisas.
Gaslighting. A palavra surgiu em minha mente, feia e afiada. Ele estava me abusando psicologicamente por anos, e eu estava cega de amor demais para ver.
Finalmente cheguei em casa. Nossa casa. A que ele comprou para mim, ele dissera. Um testamento do nosso amor.
Enquanto subia a entrada da garagem, ouvi vozes de dentro. Uma voz raivosa e familiar. A de Heitor.
E a de uma mulher. A de Cândida.
Parei perto da grande janela da sala de estar, meu corpo escondido pelos arbustos espessos que eu mesma plantei.
Lá dentro, Heitor andava de um lado para o outro, seu rosto uma tempestade de emoções. Cândida estava perto da lareira, segurando um menino pequeno nos braços. Joca. O filho dela. O filho de Heitor.
- Não aguento mais isso, Heitor! - A voz de Cândida era afiada como veneno. - Eu te odeio! Odeio ter que te ver, ter que fingir por causa daquela mulher patética!
Heitor parou de andar. Passou a mão pelo cabelo, parecendo desesperado.
- Cândida, por favor. Você sabe que eu só fiz isso por você. Eu te amo. Eu sempre te amei.
Meu coração, que eu pensei que não poderia se quebrar mais, se estilhaçou em um milhão de pedacinhos.
- Amor? - ela zombou. - Você destruiu minha família! Você chama isso de amor?
- Eu tive que fazer - ele implorou, sua voz falhando. - Eu era obcecado por você. Não podia te perder. Eu teria feito qualquer coisa.
- E ela? - Cândida cuspiu, seus olhos brilhando com puro ódio. - E a sua preciosa Elena?
O rosto de Heitor se contorceu em conflito.
- Eu... eu a amo também.
- Você não pode ter nós duas!
Ele agarrou o braço dela, seu aperto firme.
- Eu não vou te deixar ir. Eu te amo mais, Cândida. Você tem que saber disso. Eu te amo tanto que me divorciei secretamente da Elena. Eu me casei com você. Eu quebrei todas as leis, arrisquei toda a minha reputação, só para fazer de você minha esposa.
- Eu sou a mãe do seu filho - ele disse, sua voz caindo para um sussurro desesperado. - Por favor, Cândida. Apenas fique. Eu farei qualquer coisa.
O menino em seus braços começou a chorar.
- Mamãe, não vai embora. Eu quero que o papai fique com a gente.
O rosto de Heitor se suavizou ao olhar para o menino. Ele estendeu uma mão trêmula.
- Joca, filho, está tudo bem. A mamãe não vai a lugar nenhum.
A expressão de Cândida vacilou. Ela olhou do menino para Heitor. Inclinou-se e beijou Heitor, um beijo longo e possessivo. O menino bateu palmas, um som pequeno e feliz na sala silenciosa.
Eu estava do lado de fora, minha mão pressionada contra a boca para abafar um soluço. Meu corpo tremia incontrolavelmente. A dor no meu abdômen, um eco surdo de cinco anos atrás, ardeu com força, uma dor fantasma que espelhava a ferida aberta na minha alma.
Ele me amou uma vez. Ele me abraçou e me prometeu uma vida inteira. Ele se ajoelhou aos meus pés e me agradeceu por salvar sua vida, por desistir do meu sonho de ser mãe por ele.
E era tudo uma mentira. Uma piada cruel e elaborada.
Eu era a tola que sacrificou tudo por um homem que estava brincando de casinha com a minha assassina.
As belas memórias que compartilhamos viraram cinzas em minha mente. Cada palavra amorosa, cada toque terno, agora estava manchado, envenenado por essa revelação.
Ele não havia mudado. Ele era apenas um mentiroso melhor.
Uma determinação fria e dura se instalou em mim. O tremor parou. A dor recuou, substituída por uma calma gélida.
Eu não seria mais a vítima dele.
Enxuguei as lágrimas do meu rosto com as costas da mão. Peguei meu celular, meus dedos firmes enquanto rolava pelos meus contatos.
Encontrei o nome. Hamilton Neves.
Pressionei o botão de chamada. Ele atendeu no primeiro toque.
- Elena? - sua voz era calorosa, preocupada. - Está tudo bem?
Minha própria voz saiu clara e firme, desprovida de qualquer emoção.
- Hamilton - eu disse. - Preciso da sua ajuda. Preciso que você me ajude a morrer.