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LUCAS PARK
Finalmente, havia chegado o dia. Eu a veria, estaria ao lado dela, e, ao contrário daquela manhã decepcionante, Gabrielle não poderia fugir. Passei horas acordado durante o voo, me preparando, repassando mentalmente tudo o que eu diria a ela quando nos encontrássemos. Ensaiei dezenas de vezes como deveria me apresentar, escolhi cuidadosamente a roupa que iria vestir e calculei o tom exato que deveria usar para não a assustar. E apesar de ter minhas mãos suando e minhas pernas tremulas, eu não poderia permitir que ela percebesse meu nervosismo, pois poderia interpretar de forma errada. De nenhuma forma ela poderia ter a impressão de que eu não queria estar ali, com ela.
A verdade é que eu sabia que não nos víamos havia cerca de 10 anos, e que não sabia absolutamente nada sobre quem ela havia se tornado. Talvez ela fosse parecida com as outras garotas da sua idade e status, o que me deixaria um pouco decepcionado. As garotas com quem tive contato, daquelas que tinham a mesma idade de Gabrielle, nenhuma delas me despertou interesse, pois eram tão cheias delas mesmas, tão preocupadas com seus próprios umbigos, que sequer sobrou espaço para qualquer outra pessoa. Não que eu quisesse fazer parte da vida de qualquer uma delas, mas pensei que pelo menos, poderia treinar a interação com uma garota. Me detestariam se soubesse que apenas as usei para aprender como me comportar, quando finalmente estivesse diante da única pessoa capaz de me fazer perder o sono? Se dependesse apenas de minha vontade, teria retornado a dois anos atrás, mas Dave me convenceu a esperar. Como eu poderia me colocar em sua frente se nem mesmo me lembrava dos anos que passamos juntos?
Aquele acidente havia me roubado algumas partes importantes de quem eu era, eu não poderia mostrar a ela a parte que restou, que naquele momento, era a pior. Levei dois intermináveis anos para me formar e estar apto a assumir meu papel ao lugar dela. Esperava que ela não tivesse colocado qualquer usurpador para ocupar o espaço que estava destinado a ser meu.
Tudo o que eu mais temia era não estar à altura de suas expectativas. Mas olhar para aquela foto que Jullian me enviara alguns meses atrás, em que ela caminhava e sorria para um homem muito mais velho que ela, era o suficiente para me fazer perder a calma. Não pude adiar ainda mais meu retorno, caso contrário poderia encontra-la com um cara que, obviamente não deveria estar perto dela. A primeira atitude que tomaria, seria me livrar dele.
O que eu diria a ela quando me perguntasse por que nunca atendi suas ligações ou respondi suas mensagens? Meu pai me alertara para não contar nada sobre o motivo do nosso afastamento, mas eu não queria ocultar nem omitir. Se me fosse permitido, teria entrado em contato e pego o primeiro voo naquela mesma manhã em que acordei, imploraria para ela me ajudar a preencher as lacunas que se formaram em minha memória. Ler aquele maldito diário escrito por um garoto de treze anos não tornava mais claro sua lembrança, pelo contrário, aumentava ainda mais minha ânsia por sua presença. E o que eu faria quando ela me questionasse sobre qualquer acontecimento passado? Jamais conseguiria mentir para ela. Seu rosto redondo, adornado por cachos volumosos, foi a primeira imagem que surgiu na minha mente quando finalmente abri os olhos naquela cama de hospital. A mera lembrança de seu sorriso despertava uma força interior que eu nem sabia que possuía.
Nada me abalou mais do que perceber que tinha perdido tanto tempo longe daquela pessoa, que eu nem sequer sabia quem ela havia se tornado. Minha memória não conseguia preencher aquele vazio, mas isso já não importava - logo estaria diante dela novamente. Estava disposto a fazer qualquer coisa para recuperar os anos perdidos.
Mesmo contra as ordens de meu pai, implorei para que Leslie me deixasse cozinhar em sua imaculada cozinha. Eu a receberia naquela manhã, assim como fazia há dez anos. Dediquei todo o meu esforço e carinho para preparar aqueles biscoitos de aveia e mel que Gabrielle tanto adorava quando criança. Estava exausto por causa da viagem, mas, para mim, todo o esforço valeria a pena. Pelo menos, foi o que pensei. Jamais imaginei que ela reagiria daquela forma.
Eu ficaria mais do que satisfeito se tivesse sido recebido por agressão física e verbal, ou lágrimas. Até mesmo indiferença seria menos doloroso do que sua fuga. Ela não queria me ver e sua recusa me causou um certo pavor crescente, que precisei repensar em toda a estratégia que havia formulado durante o voo. Eu não mediria esforços para faze-la me aceitar.
Mas desta vez seria diferente. Jullian havia me garantido que ela não me deixaria atônito, olhando para suas costas enquanto fugia de mim, como fez naquela manhã. Quando cheguei àquela velha casa, a festa havia acabado de começar. Não precisei olhar atentamente, pois com uma rápida vasculhada pela sala de entrada, pude perceber que aquele definitivamente não seria meu local favorito. Não sei dizer o que estava mais desconexo naquele ambiente, se era a falta de decoração natalina em uma festa de natal, ou se era a forma como aquelas pessoas se vestiam, sem a menor vergonha de quem estivesse olhando. Fui surpreendido por gritos e apertos de mãos.
Minha chegada à cidade já havia sido notificada a todas as pessoas daquela maldita cidade construída unicamente para abrigar aquele tipo de pessoa, que se sentem superiores demais para misturar ao restante da população. Definitivamente trabalharia arduamente para tirar Gabrielle de perto daquele tipo de gente, que por um motivo que nunca serei capaz de entender, julgam que seus saldos bancários a tornam mais dignas de qualquer coisa. Nenhum deles sabia como era ganhar dinheiro por seu próprio esforço, viviam as custas de seus pais e duvido que mudaria algum dia.
Sabia que não me lembraria de nenhum daqueles rostos, então fiz minha lição de casa durante a semana. Decorei cada nome e posição social de cada membro daquele pequeno grupo seleto, do qual eu voltaria a fazer parte. Eu precisaria me esforçar para fazer parte de algo, se quisesse retornar à vida dela. Tentei controlar a aversão daquelas pessoas, que crescia conforme eu olhava para elas. Sei que é errado julgar sem conhecer, mas era algo que se podia sentir pelo ambiente. Aquela soberba fedia, e me lembrar do dossiê de cada um deles, não me fez gostar mais de nenhuma daquelas cabeças vazias.
- Que bom te ver, cara! - disse Ramon Rodriguez, me puxando para um abraço. - Vou te apresentar ao pessoal.
Ele era meu colega de turma na época do colégio. Não me lembrava de sua aparência, nem se éramos muito próximos, mas, segundo as anotações de Dave, podíamos ser considerados melhores amigos. Olhando para ele, sorrindo para todas as garotas que passavam por nós, parecia ser mais ignorante do que supus ao ver sua foto. Ramon era mais alto que eu, mais forte e muito barulhento. Vestia uma camisa de linho clara, completamente aberta, exibindo seu corpo musculoso, que fazia questão de mostrar para todos. A primeira impressão não poderia ter sido pior. Para mim, ele era apenas uma pilha de músculos e soberba. Esperava que Gabrielle não se relacionasse com esse tipo de pessoa.
Enquanto ele me conduzia pelo restante da casa, fui obrigado a apertar a mão de cada pessoa que cruzava nosso caminho. Todos gritavam mais alto que a música e riam, contando alguma história engraçada que, supostamente, vivemos juntos. Apenas me forcei a rir com eles, fingindo que me lembrava de tudo.
- Qual é desse sotaque, irmão? - perguntou Ramon, rindo. - Vai me fazer perder algumas gatinhas.
- Muito tempo fora de casa - respondi, constrangido.
A verdade é que eu nem havia percebido meu sotaque até desembarcar do avião. Leslie levou um susto quando a cumprimentei, assim como todas as outras pessoas com quem conversei. Me perguntei por que meu pai nunca mencionou nada. Se soubesse, teria contratado um especialista para me ajudar a amenizá-lo. Eu não queria que Gabrielle se sentisse estranha conversando comigo, da mesma forma que me sentia conversando com essas pessoas.
Não estava à vontade, era notável a quilômetros de distância, talvez por esse motivo Ramon se empenhou tanto ao me apresentar para cada uma daquelas pessoas que passavam por nós. Diferente do esperado, apenas aumentava meu desconforto, criando ainda mais aquela sensação de não pertencimento. Eu não fazia parte daquele grupo e também não estava interessado em aderir sua cultura libertina. O que eu faria se ela fosse mais parecida com eles do que comigo? Ramon me levou para a área da piscina, e o que vi estava muito longe do que imaginei.
Na minha cabeça, teríamos uma longa mesa, coberta pelos mais variados pratos típicos, onde todos se sentariam ao redor para comer, conversar e, quem sabe, dançar ou jogar algo divertido depois. Ao invés disso, me deparo com um ensaio de depravação e decadência intelectual. Não sei dizer o que estava visivelmente mais desconcertante, se eram as pessoas beijando umas as outras, independente do sexo, ou se era aquele barulho horrível que chamavam de música. Isso sem mencionar o teor alcoólico que corria em suas correntes sanguíneas. Dave estava certo quando disse que minha visão do que as pessoas ao meu redor faziam estava desatualizada. Nem todos tinham um espírito tão tranquilo quanto o meu.
Aquelas pessoas estavam dançando, pulando, se esfregando umas nas outras. Bebiam aqueles líquidos coloridos e vibrantes como se fossem água, misturando tudo o que viam pela frente. Se beijavam e se apalpavam sem o menor pudor ou nojo. Eu não queria estar no meio de gente assim, que não se importava com exclusividade. Mas e se Gabrielle fizesse parte disso? O que eu faria se tivesse chegado e a encontrado ali, em meio aquela cena vergonhosa, nos braços de um cara qualquer, tendo sua língua dentro da boca dela? Senti meu maxilar enrijecer com meu trincar de dentes involuntário, assim como palma de minha mão doer, com a força que a mantinha fechada.
Vasculhei o local com mais atenção. Era um lugar muito bonito. A piscina era grande o suficiente para acomodar todas aquelas pessoas, que pareciam não passar de cinquenta. O piso amadeirado era seguro, mesmo com todos molhados e embriagados. Aquele cheiro de álcool, suor e cigarro fez me estomago revirar. Era dessa forma que aquela geração se divertia? Qual era o problema daqueles jovens? Nunca em minha vida vi tantas almas perdidas em gula e luxuria.
Em uma pequena mesa de canto, havia garrafas de whisky, vodka e energético, além de tubos de ensaio contendo substâncias duvidosas e um pequeno balde de vidro com dezenas de microcápsulas. Ver tudo aquilo acendeu um alerta na minha mente. Eu não permitiria, de forma alguma, que Gabrielle se misturasse com aquele tipo de gente sem a menor decência.
- Aquilo é cocaína? - perguntei a Ramon, que me olhava divertido.
- Claro que não, é só açúcar - mentiu descaradamente, rindo.
Havia algo muito errado com aquelas pessoas. Que ele estava chapado, eu percebi desde o momento em que abriu a porta e me abraçou, mas jamais imaginei que jovens da alta sociedade bebessem, transassem e se drogassem a céu aberto, como se fosse parte do cotidiano. Saber que ela pertencia a esse grupo de jovens foi o maior choque de realidade que tive desde que retornei a essa maldita cidade.
O que John diria se a visse naquela festa? Como Leslie permitiu que ela se misturasse nesse círculo de perdição? Como Jullian pôde incentivar sua participação? Senti o sangue subir de raiva só de pensar com que tipo de gente Gabrielle estava se relacionando durante os anos em que estive ausente.
- Relaxa um pouco, Sr. Park - disse uma garota muito bonita, me entregando um copo. - Ninguém vai te morder, a menos que você queira.
Ela era, de fato, muito bonita. Seus cabelos loiros caíam molhados, escorrendo pelo rosto e pelos ombros. Seus olhos eram de um verde tranquilo, como quem acaba de acordar. Seus lábios estavam levemente borrados por um batom quase apagado. Meus olhos se demoraram um pouco neles, especialmente quando ela mordia delicadamente o lábio inferior. Aquela garota estava claramente se insinuando para mim.
Talvez tenha sido essa a razão de Ramon tê-la apresentado. Ela continha o tipo de beleza padronizada, daquela que se espera encontrar em uma capa de revista de moda, daquela que nenhum homem em completa masculinidade cogitaria recusar. Mas como já mencionei, não tenho nenhum interesse em qualquer pessoa que não seja aquela por quem atravessei o mundo.
Me perdi por alguns minutos observando aquela garota. Por aquele curto período de tempo, talvez tenha conseguido compreender e quebrar, pelo menos um, de meus pré-conceitos formulados daquelas pessoas. Aquele tipo de beleza, fácil e acessível, era uma das razões de ter tantas pessoas naquela festa. Apenas queriam se divertir. Meu devaneio foi interrompido quando vi um táxi se aproximando da porta de entrada.
Rapidamente entendi de quem se tratava. Só ela chegaria em um táxi, mesmo tendo sua própria coleção de carros. Ignorei as palavras de Rebecca atrás de mim e deixei-a com Ramon enquanto corria em direção à porta da frente. Passei desconfortavelmente pelas pessoas que, sem perceber, insistiam em bloquear meu caminho, me oferecendo seus copos e corpos. Não queria parecer rude com nenhuma delas, mas as ignorei e continuei meu caminho. Eu precisava ser o primeiro a encontrá-la, ou alguém poderia arrastá-la para o meio daquela loucura.
O momento havia chegado. Eu a veria, e nada poderia impedir isso. Respirei profundamente antes de abrir a porta; não queria parecer nervoso, mas senti minhas mãos suarem e minhas pernas tremerem. Respirei fundo e tentei conter o medo crescente. O que eu faria se ela me rejeitasse novamente?
Quando abri a porta, uma onda de emoção percorreu cada célula do meu corpo ao vê-la parada ali, pisando em um pequeno gorro de Natal, xingando o objeto com palavras que eu jamais esperaria ouvir da boca dela.
Ela estava adorável usando aquele vestido vermelho, que definitivamente foi a primeira menção ao natal que vi desde que cheguei. Embora tivesse a curiosidade de perguntar o que o gorro havia deito de tão grave, para merecer sua ira, eu não queria ser o próximo de sua lista, portanto guardei para mim. Não pude deixar de sorrir com a cena.
- Jingle bells, senhorita Gold - disse a ela.
Eu estava tão nervoso, e ao mesmo tempo me divertia com a cena à minha frente, que nem pensei antes de dizer aquelas palavras.
Quando ela se virou e encontrou meu olhar, foi como se todo o esforço que empenhei durante aqueles anos estivesse sendo recompensado. Em toda a minha vida, nunca estive diante de alguém tão bonita quanto ela.
Seu rosto era sereno, impecável, e eu poderia passar horas apenas olhando para ela. Seus cachos volumosos caíam pelos ombros, pelos seios que, tão fartos e evidentes, me obrigaram a desviar o olhar de volta para os seus olhos. Aqueles olhos grandes e expressivos, que me encaravam sem vacilar. Seu rosto estava tão corado que me perguntei se ela havia escutado meus pensamentos impróprios.
Ela manteve meu olhar, firme. Nenhuma outra garota jamais sustentou o olhar por tanto tempo, sem desviar. O que estaria passando pela sua cabeça? Será que pensava em fugir de mim de novo? Somente o pensamento dela se unir a festa, participar daquelas rodadas de bebidas, me causava pânico. E se aquela imagem que eu havia criado, e se toda aquela perfeição e decência que eu havia idealizado dela, simplesmente não existisse? Eu seria capaz de ir contra todos os meus princípios, apenas para ter seu perdão?
A verdade é que vê-la ali, tão linda, fez crescer em mim sentimentos que eu não sabia que existiam. Eu queria pegá-la nos braços e tirá-la daquele lugar, levá-la para longe daquelas pessoas e daquele ambiente imundo. Eu deveria ter segurado sua mão e levado embora no instante em que chegou. Eu imploraria se fosse necessário, desde que ela não se misturasse com aquelas pessoas, eu faria o que fosse necessário.
Ela poderia ver em meus olhos o quanto eu desejava tira-la dali? Poderia sentir que aquele não era o ambiente ideal para uma jovem distinta feito ela?
Mas então me lembrei a razão dela estar ali, e por um momento, pude relaxar um pouco. Eu sabia que ela estava ali por conta de um acordo com Jullian, e que segundo ele, seria a minha melhor chance de me aproximar dela. Ela me olhava intensamente, como se buscasse alguma resposta. Se ao menos eu tivesse coragem de iniciar uma conversa, poderíamos quebrar a tensão que crescia entre nós.
- Pode parar de me encarar agora - murmurei, mais para mim mesmo do que para ela.
Quando ela sorriu, soube naquele momento que nossas vidas estavam, de certa forma, voltando aos trilhos, de onde nunca deveriam ter descarrilado. Mas, por mais que Gabrielle forçasse aquele sorriso, era óbvio, em seus olhos, que ela não estava feliz em me ver. E, sinceramente, nem queria estar ali. Eu também não a culparia por isso - afinal, eu mesmo não queria estar naquela festa.
Afastei-me um pouco, liberando o espaço na porta para que ela entrasse. No instante em que pisou naquela maldita casa, senti os olhares daqueles abutres pousarem sobre ela.
Gabrielle se encolheu ao meu lado, como se quisesse desaparecer. Meu movimento foi instintivo: peguei sua mão e a apertei, puxando-a para mais perto de mim. Por um momento, temi que ela protestasse, que tirasse a mão da minha e desaparecesse no meio daquelas pessoas. Mas, em vez disso, ela permaneceu imóvel ao meu lado. Estava tão desconfortável quanto eu naquele lugar.
- Atenção, pessoal! - gritei para todos. - Temos uma convidada especial esta noite!
Eu não precisava dizer mais nada para que eles entendessem que não deviam se aproximar dela. Ao mantê-la comigo, de mãos dadas, e ao anunciar sua chegada para todos, deixava claro que a acompanharia durante toda a noite e que ninguém deveria incomodá-la.
Comecei a percorrer a casa, mostrando a ela todas as saídas, caso precisássemos fugir. Procurava o lugar mais tranquilo e menos barulhento, onde pudéssemos conversar sem interrupções. Ela me seguia em silêncio. Fiquei surpreso por ela não ter se livrado da minha mão durante o trajeto.
Gostava da sensação de sentir o calor dela, mesmo que apenas na palma da mão. Tê-la ali daquela maneira fazia com que minha mente divagasse por momentos que eu desesperadamente ansiava desde que a vi naquela manhã. Eu queria abraçá-la e dizer o quanto sentia por ter estado fora por tanto tempo.
A conduzi até o final da piscina, onde havia algumas espreguiçadeiras a poucos metros. Soltei sua mão apenas quando tive certeza de que ninguém a pegaria e a levaria para longe de mim. Gabrielle estava tão calada, observando tudo ao nosso redor, que eu sabia que uma opinião já se formava em sua mente - e não parecia ser uma boa.
Foi quando vi Ramon se aproximando, segurando dois copos vermelhos. Pelo sorriso que me lançou e pelo olhar que direcionou a ela, suas intenções estavam longe de ser amigáveis. Ele estava me testando. Senti meu corpo enrijecer e minha respiração ficar pesada enquanto ele se colocava diante dela, sem dizer uma palavra, e lhe oferecia um dos copos. A malícia em seu sorriso despertou uma vontade indescritível de socar aquela cara e jogá-lo na piscina.
Eu não sabia o que havia naquele copo, mas também não pretendia descobrir. Minutos antes da chegada de Gabrielle, vi líquidos duvidosos e drogas circulando por ali. Jamais permitiria que ela ingerisse algo nocivo. Eu nunca me perdoaria se algo acontecesse a ela. E, com certeza, perderia meu réu primário, pois alguém naquela festa pagaria caro se isso acontecesse.
Antes que Gabrielle pudesse levar o copo à boca, o tomei de sua mão.
- Eu não faria isso se fosse você - disse a ela, tentando manter a calma.
Sua reação foi inesperada. Gabrielle me lançou um olhar de incredulidade e raiva. Raiva? Por eu tentar salvá-la daquele cara nojento? Ela não fazia ideia de quem eram essas pessoas, pelo menos era o que eu esperava. Não podia acreditar que aceitou aquele copo e iria beber sem sequer questionar o que estava dentro. Não se importava com sua própria segurança e integridade? Mas, pelo olhar que me lançou, parecia que eu era o errado ali, e não ela.
- Pensando bem, seria interessante vê-la se divertindo - devolvi o copo a ela, com relutância.
- Essa é a sua ideia de diversão? - apontou para as pessoas na piscina, com um tom ácido.
Ela não podia estar mais equivocada. Não havia nada de divertido naquele cenário, pelo menos não para mim. Eu apenas devolvi o copo para evitar uma discussão que ela claramente estava disposta a iniciar. Eu não queria passar a imagem de ser uma pessoa controladora e inflexível, pois sabia que ela apenas me afastaria ainda mais.
A verdade é que eu não sabia mais quem ela era. E se Gabrielle fosse como eles? Se essa garota que eu julgava conhecer gostasse de se embriagar e dançar como todas as outras? Eu não tinha o direito de interferir, por mais que cada fibra do meu ser quisesse tirá-la dali. Se essa fosse a sua vontade, nada me restava a não ser aceitar.
Minha ideia de diversão nunca envolveu ver pessoas seminuas se drogando e se pegando sem pudor. Eu acreditava em exclusividade, em monogamia. Jamais dividiria Gabrielle com outra pessoa, nem permitiria que essa ideia absurda sequer passasse pela minha mente. Eu adoraria vê-la se divertindo, desde que fosse comigo. Mas não era o momento de deixá-la saber disso.
- Minha ideia de diversão é provavelmente a mesma do Rodriguez, o bonitão que te entregou esse copo batizado de sangria - sussurrei em seu ouvido, me aproximando demais. - Mas eu não posso permitir que a única herdeira do império Gold desfile nua pela casa.
Me obriguei a dizer aquelas palavras, deixando a segunda parte escapar, torcendo para que ela não percebesse o subtexto. A verdade é que, no fundo, eu adoraria vê-la nua, desfilando pela casa, mas só se estivéssemos a sós. Ela poderia fazer o que quisesse, até se embriagar e tirar a roupa. Esses pensamentos indesejados inundaram minha mente, e a necessidade de tê-la só para mim queimava meu corpo de um jeito quase insuportável.
Quando vi a carranca se formar em seu rosto, me esforcei para retomar o controle dos meus pensamentos. Ela me encarava com aquela expressão fechada, mas eu sabia que por trás da raiva, havia mais. O que ela estava realmente pensando? Estaria prestes a me confrontar ou simplesmente fugir mais uma vez?
Meu pai não havia dito nada sobre ela, na verdade, ele nem sabia que eu estava naquela maldita festa. Quando pedi informações sobre as pessoas, omiti completamente minhas intenções. No entanto, eu sabia que, se deixasse Gabrielle perceber que minha proteção não era algo planejado, mas sim uma reação visceral, ela ficaria ainda mais irritada. Gabrielle sempre odiou ser protegida, especialmente quando não pedia por isso. Ela nunca aceitou viver à sombra de alguém, mesmo que fosse para o próprio bem. Ela não parecia confortável ao meu lado, e talvez fosse culpa minha.
Será que eu havia passado a imagem errada de quem sou agora? A verdade é que, assim como ela, eu não pertencia àquele lugar. Estava óbvio que nenhum de nós queria estar ali. Eu estava tentando nos poupar. Decidi que seria melhor concluir logo o que tinha em mente, para que pudéssemos ir embora e, quem sabe, colocar as coisas no lugar.
Desde que me hospedei na casa dela, uma semana atrás, ela evitava me ver. Saiu pela porta naquele primeiro dia e só retornou seis dias depois, apenas para me ignorar. Eu sabia que havia uma enorme barreira entre nós, e a distância entre aquele passado e o presente parecia aumentar cada vez mais.
- Como tem passado, Gabrielle? - perguntei, tentando soar casual, embora soubesse que a resposta seria tudo, menos simples. - Você tem fugido de mim desde que voltei.
Senti ela se mexer desconfortavelmente ao meu lado. Podia ver que estava escolhendo suas palavras com cuidado, como se controlasse uma raiva crescente que eu sabia estar presente. Embora não me lembrasse de todos os detalhes de nossos dias de infância, conhecia Gabrielle o suficiente para compreender o que suas emoções escondiam.
- Não sou uma pessoa nostálgica - disse ela calmamente, quase fria. - Sinto muito se não te ofereci a recepção que gostaria.
Lá estava ela, a Gabrielle que meu coração ainda guardava. Suas palavras me fizeram sorrir, não pela sua sinceridade, mas pelo quanto se distanciavam do que ela realmente sentia. Eu sabia que ela era tudo, menos indiferente. Gabrielle era a pessoa mais nostálgica que já conheci, e tenho certeza de que, em algum lugar profundo, ela havia esperado por mim desde o momento em que parti.
Mas, ao invés de demonstrar seus verdadeiros sentimentos, ela optou por esconder tudo atrás de uma fachada. Sabia que, debaixo daquela resposta polida, havia anos de mágoa. Gabrielle era orgulhosa, e isso a impedia de admitir que sentiu minha falta. O único jeito de lidar com minha presença, depois de tanto tempo, era se fechar.
O sorriso sumiu do meu rosto assim que as lembranças do inferno que vivi, dois anos atrás, retornaram à minha mente. Quando abri os olhos naquela época, entendi, de imediato, onde estava e o que precisava fazer. No instante em que compreendi a profundidade do que sentíamos um pelo outro, soube que precisaria lutar com todas as minhas forças para recuperar o tempo que perdi ao lado dela. O que eu não esperava era o tamanho dos seus ressentimentos.
Passei tanto tempo sofrendo - física e psicologicamente - me preparando, me privando de uma vida normal, tudo para estar apto a me colocar novamente diante dela. Em nenhum momento cogitei a possibilidade de que ela me rejeitaria. Mas, talvez, fosse merecido.
- Me perdoe por nunca ter retornado suas ligações - comecei, com a voz mais baixa do que pretendia. Era a conversa que eu vinha ensaiando há tanto tempo. - Eu só achei que você ficaria bem sem mim. Você sempre pareceu ficar.
Ela forçou um sorriso que não alcançou os olhos.
- Estou muito bem, obrigada - respondeu, seca. - Já pode me deixar em paz agora.
Cada palavra dela, envolta naquele sorriso falso, fez meu coração se apertar com a culpa. Eu a tinha magoado de formas que nem conseguia medir. E agora, ver o peso que aquilo tudo ainda carregava para ela era como uma punhalada lenta. Talvez ela estivesse certa. Talvez eu realmente não tivesse me esforçado o suficiente.
Pude ver em seus olhos que ela acreditava que a havia deixado para trás por escolha. Mas essa não era nem de longe a verdade. Eu não a deixaria saber de minha luta e miséria para poder retornar ao seu lado. E claramente havia falhado. Não só por não ter retornado antes, mas por ter subestimado o impacto de minha ausência.
- É tão difícil assim olhar para mim? - perguntei, sentindo minha voz falhar - Ou será que minha pronuncia não está sendo clara o suficiente para te manter interessada?
- Sim, é difícil olhar para você - tornou rispidamente - Assim como é difícil ouvir seu sotaque sem sentir repulsa.
Ouvi-la dizer sobre meu sotaque foi como se tivesse me dito que odiava a pessoa que eu havia me tornado, sem nem mesmo me dar a chance de eu explicar. Não estava em meu completo domínio minha dicção, e nem mesmo pensei que causaria tanto desconforto nela. Até onde pude perceber, todas as garotas com quem troquei algumas palavras naquela maldita festa, haviam achado muito encantador minha pronuncia. Minha mente entraria em colapso se continuasse pensando que minha voz, independente do que eu falasse, pudesse causar nela aversão, mesmo não sendo isso o que via em seus olhos.
Ela não sabia o quanto eu havia desejado estar ao seu lado, e ainda desejava, mas como poderia explicar isso agora? Como eu poderia dizer que, enquanto ela lidava com suas próprias dores, de ter sido deixada para trás sem nem mesmo uma explicação, eu estava preso em uma cama, incapaz de sequer me levantar sozinho? Como eu poderia dizer a ela toda a verdade, sem choca-la ou pior, faze-la sentir pena de mim?
Talvez meu pai estivesse certo em me orientar a omitir esse pequeno detalhe, mas isso só fazia a culpa pesar ainda mais. Sentia que cada segundo longe dela havia sido uma escolha, uma falha, a completa falta de capacidade necessária para ser quem ela esperava que eu fosse, mesmo que na realidade, minha própria vida não estivesse em meu controle.
- Por que foi até minha casa? - Disse ela, interrompendo meus pensamentos.
- Eu te devo uma explicação, e fui até lá para dá-la a você e a sua família. ― respondi, buscando em seus olhos a verdade que suas palavras me negavam.
- Você não estava lá quando eu precisei de você - disse sombria - Explicação nenhuma me fará mudar de opinião.
Ao ouvi-la colocar em palavras o que tanto te machucou, meu peito se apertou ainda mais. Foi como se ela apenas afundasse ainda mais aquela adaga que a pouco havia cravado ali. E embora doesse, embora desejasse dizer a ela como senti sua falta e que jamais a deixaria passar pela perda novamente, nada pude fazer. Tocas naquele assunto delicado que era a morte de seu pai, a faria ter mais raiva de mim, e dessa vez poderia ser definitiva.
Estiquei minha mão para alcançar a sua, eu precisava acalma-la, caso contrário eu seria o próximo a dizer aquilo que não devia. Mas minha mão foi afastada, quando ela se levantou, e sem nem mesmo me dizer a razão ou para onde iria, se pôs a caminhar pelo gramado, saindo do perímetro daquela casa. Ela não poderia ir muito longe sozinha e a pé. Se precisava de um tempo e espaço, eu daria a ela. A seguiria de longe, imperceptível, apenas para garantir sua segurança.
Quando me coloquei de pé, pronto para segui-la, senti uma mão tocar meu ombro.
- Deixe ela ir cara - disse Ramon, posicionando-se ao meu lado. - Aguentou mais do que eu esperava.
Apenas pensar que aquele cara conhecia mais dela do que eu fez meu sangue ferver. Julgando por seu comentário, ele costumava convidá-la para aquele tipo de festa com frequência, e, graças a Deus, ela não permanecia por muito tempo. Então, ele estava nos observando? Estava cronometrando o tempo em que passávamos juntos? Por quê? Eu não queria pensar nele se aproximando dela de nenhuma forma possível.
Como alguém como ele poderia dizer para eu deixá-la ir? Como teve a audácia de me impedir de segui-la? Sem nem mesmo perceber, senti a dor de minhas unhas cravarem na palma das minhas mãos. Definitivamente, não havia me preparado o suficiente para aquele encontro, e ter alguém que passou todos aqueles anos próximo a ela, me dizendo como ela se comportava, me deixou mais irritado do que supus que poderia ficar. Ramon estava testando minha paciência em um nível que ninguém jamais conseguiu.
- E quem é você para esperar qualquer coisa dela? - o encarei furiosamente.
- Calma aí, irmão, só estou tentando ajudar - disse ele, se afastando um passo.
- Pode ajudar ficando fora do meu caminho - rosnei para ele.
A verdade é que não percebi o nível da minha raiva até estar de frente para Ramon, pronto para descontar nele toda a frustração que estava guardada. Em geral, nunca fui uma pessoa violenta, nem mesmo era adepto a grandes discussões sem causa, mas quando se tratava de Gabrielle, eu perdia completamente a cabeça, o que me deixou chocado ao descobrir.
- Você não vai querer arrumar uma briga comigo por causa de alguém como ela - tornou Ramon, contendo um sorriso. - Não vai arriscar que todos descubram o segredinho da família Goldman.
Assim como antes, estava me preparando para partir pra cima dele e tirar aquele sorriso presunçoso a socos, mas precisei me conter e engolir aquela raiva goela abaixo. Ele sabia sobre ela. Desde quando alguém de fora da família sabia sobre ela? Eram tão próximos assim, a ponto de ela revelar a ele sua verdadeira identidade? Aquele calor queimando meu corpo apenas se esfriou, como se uma corrente fria percorresse minha espinha. Quem ele era para ela? Cheguei tarde demais em sua vida?
- Ninguém além de nós dois sabe sobre a garota dourada - continuou. - Vamos garantir que continue assim.
- É uma ameaça?
- É um conselho de um velho amigo - sorriu ele, me entregando o copo em sua mão. - Fique aqui e beba alguma coisa, ou amanhã todos estarão se perguntando a razão de você tê-la seguido, se nem mesmo se conhecem.
Ele estava certo. Por mais raiva que eu sentisse, por maior que fosse meu desejo de quebrar a cara dele, a verdade continua sendo verdade, mesmo que eu discorde. Gabrielle havia ingressado na universidade sem mim; não nos víamos há dez anos, e ninguém sabia de nossa proximidade. Uma vez que estivessem interessados em mim e meu retorno, logo começariam a investigar a vida dela, se eu simplesmente a seguisse no meio da noite.
Mesmo contra minha vontade, contra todos os meus neurônios que gritavam para eu sair daquele inferno de lugar, apenas peguei aquele maldito copo e tomei. O golpe em minha garganta, que parecia queimar, assim como minha língua que senti amortecer em poucos segundos, nada me abalou mais do que saber que havia perdido não uma, mas duas batalhas naquela noite. Enquanto o líquido queimava minha garganta, uma onda de frustração e impotência tomou conta de mim. Eu deveria estar ao lado de Gabrielle, protegendo-a, mas, em vez disso, me via preso naquela casa cheia de estranhos. A música pulsava, e a energia da festa parecia se intensificar a cada segundo, como se algo estivesse prestes a dar errado. Meu olhar se prendeu a Ramon, que observava a cena com um sorriso de satisfação, como se estivesse torcendo para que eu falhasse.
Foi então que meu celular vibrou no bolso. Um número desconhecido, mas não havia como ignorar. A voz do outro lado era grave e tensa- Gabrielle deixou a festa sem você.
O mundo ao meu redor parou. Meu coração disparou, e eu senti uma onda de pânico subindo pela minha garganta.
- Jullian... - respondi, a raiva e a ansiedade se misturando em meu peito.
- Leslie e eu estamos te esperando ― me interrompeu - precisamos conversar.
Aquelas palavras ecoaram em minha mente enquanto eu sentia a urgência do momento. Um fio de adrenalina correu por mim, e a decisão se formou em um instante. Era a desculpa que eu precisava para me livrar de Ramon e toda a sua laia. Embora soubesse que Jullian era a pessoa que mais protegeu Gabrielle durante sua vida, pude sentir o tom de ameaça em sua voz. Eles tinham um acordo e ela havia quebrado. Eu não podia deixar que nada acontecesse a ela, mesmo que para isso tivesse que me colocar entre ela e Jullian.
Estava disposto a assumir qualquer responsabilidade por ela, desde o momento em que pisei naquela cidade, já estava decidido que eu seria a pessoa que iria protege-la dali por diante, mesmo que fosse de sua própria família.
Rapidamente corri para fora daquela festa infernal. Se ela estivesse voltando para sua casa e tivesse conseguido um taxi, provavelmente já estaria as portas. Sem nem mesmo pensar em quantas leis de transito eu estava infringindo, abriguei meu cérebro a se calar, enquanto pisava fundo no acelerador. O tempo estava se esgotando, e eu não poderia falhar novamente.