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Gabrielle
No final daquele dia interminável, não voltei para o apartamento de Murilo. Eu não queria preocupá-lo com minha situação. Decidi que já era hora de retornar para casa, antes que Leslie se esquecesse de quem era a verdadeira dona daquele lugar.
Assim que o táxi parou em frente aos portões de casa, a "guarda real" já estava à minha espera. Eu me referia aos seguranças que Julls havia contratado para monitorar meus passos. Era extremamente irritante ser seguida o tempo todo. Sua falta de confiança era ultrajante. Caminhei lentamente pelo gramado, ignorando os dormentes completamente.
Quando entrei na sala de estar, fui invadida pelos olhares em minha direção. Jullian me observava com aquele olhar calculado, como se soubesse de algo que eu não sabia. Lucas, por outro lado, tinha aquele sorriso contido, talvez esperando minha reação. Dave, como sempre, era apenas uma sombra ao lado de Leslie, um apoio mudo para os planos dela.
Isso não podia significar nada de bom. Senti o olhar de todos em minha nuca enquanto caminhava lentamente. Sentei-me na poltrona de couro preto, no canto da imensa sala, em frente à janela. Era a poltrona de papai. Mas algo parecia fora do lugar. O silêncio era pesado, como se todos estivessem aguardando uma explosão. Eu odiava aquela sensação de estar sob julgamento, mas também sabia que não mostraria fraqueza.
Aquele ambiente havia se tornado tão frio. O branco das paredes parecia cada dia mais pálido, como se o ambiente estivesse doente. Os sofás de camurça ocre pareciam mais vazios do que quando não havia ninguém sentado neles. Sabia que todos ali estavam esperando algo de mim. Jullian, com seus planos calculados. Minha mãe, provavelmente pronta para alguma provocação. E Lucas... Bem, Lucas sempre era uma incógnita. Respirei fundo, sabendo que o que eu dissesse agora poderia mudar o rumo dessa reunião.
- Dave está hospedado em nossa casa desde que... - Iniciou Leslie
- Acredito que Dave tenha sua própria residência - a interrompi. - Não vejo sentido em ficar na minha.
A presença deles aqui me incomodava de uma forma que eu não sabia descrever. Era como se cada canto da casa, cada lembrança de papai, estivesse sendo corrompida. Lucas esteve presente durante toda a minha infância, aquela casa tinha tantas digitais dele quanto as minhas, mas Dave... Dave estava ali como um lembrete da família que eu perdi. E isso eu não poderia aceitar.
- Não seja grosseira, Gabrielle - me censurou. Sua voz carregava aquele tom de reprovação que eu já conhecia muito bem.
Tentei ignorar a vontade de revirar os olhos, mantendo minha expressão controlada.
- Poderia ao menos olhar para nós enquanto conversamos? ― continuou.
- Me desculpe, foi rude da minha parte - respondi, levantando-me, com o maior controle que essa situação conseguiu. - Só estou um pouco cansada hoje. Se me derem licença...
Eu estava interessado em abandonar aquela conversa e descansar, afinal, estava realmente exausta. Não imaginava que seria interrompido, já que isso é realmente apreensivo. Será que descobri que todo o império de papai seria somente meu?
- Na verdade, fui eu quem insistiu em ficar em sua casa - disse Lucas . - Eu queria passar um tempo com você.
- Não costumo me repetir, mas vou te dar essa última chance de entender - respondi, tentando não parecer desconfortável com a situação. - Não sou uma pessoa nostálgica, o que passou não me interessa.
- Eu só queria te explicar e me desculpar.
Lucas parecia estar à beira de perder a compostura. Havia um tremor em sua voz, como se ele não soubesse mais como alcançar a pessoa que eu havia me tornado. Estaria desistindo tão rápido? Seria realmente decepcionante. Eu não poderia permitir que entregasse o jogo tão rápido, afinal, estava começando a me divertir.
- Desculpas aceitas - forcei um sorriso - Podem se retirar agora.
Não sei o que fez eles pensarem que eu simplesmente concordaria com aquele absurdo. Era inadmissível que aquela pessoa dormisse sob o teto que pertencesse ao meu pai. Eu não me importava com Lucas, na verdade, eu era indiferente ao que ele fazia, mas quanto a Dave, queria-o o mais longe possível.
Eu sabia que estava sendo insensível, mas essa era a única forma de me proteger. Mostrar fraquezas ou afeto não me levaria a lugar nenhum. Eles poderiam me odiar à vontade, mas enquanto mantivessem distância, estaria disposta a aceitar.
Nosso curto diálogo não foi satisfatório para eles; todos me encaravam com uma carranca terrível, como se cada um quisesse me matar de uma forma diferente. Eu não me importava. O fato de continuarem a admitir que meu temperamento terrível era simplesmente por eu não estar completamente errada. Na verdade, acreditei que o peso em suas consciências era pior do que minha insensibilidade.
- Acredito que tenha muito o que conversar - entrevista Dave. - Afinal, depois do acidente, Lucas tentou todo o custo retornar para você.
- Acidente? - Aquele cretino sabia como lidar comigo. - Qual acidente?
Acidente? Que acidente? Minha mente tentou processar a informação, mas minha expressão se manteve firme. Eu não sabia o que havia acontecido com Lucas, e o fato de não ter sido informado me irritou ainda mais. Por que ninguém me contou antes? Eu não sabia se a raiva que começou a crescer em meu peito, era por Lucas não ter me dito nada sobre o assunto, ou por Dave estar usando minha desinformação a seu favor.
Dei uma rápida olhada em Lucas, que continuava imóvel. Por que ele não continuava calado? Por que raios não olhava para mim? Minutas atrás estava desesperado por minha atenção, e agora simplesmente parecia querer se esconder nas sombras de seu pai. Ao que parecia, Dave havia tocado em um ponto delicado para ele também, pois não parecia nada feliz com a revelação do pai.
- Fico realmente feliz em revê-la, princesa - o transmitiu. - Estou voltando para Seul esta noite, deixando meu filho aos seus cuidados.
Aquela pessoa sabia como me afetar. Somente meus pais me chamavam assim, e ele sabia. Ser chamada de 'princesa' me transportava para os momentos em que meu pai ainda estavam comigo. Era uma lembrança agridoce, e Dave sabia como usar isso contra mim. Talvez ele quisesse me desestabilizar, ou talvez apenas me lembrar de tudo o que eu havia perdido.
Então o diabo iria retornar ao inferno. Não acredite que fossem bons como seus interesses. Mas tê-lo longe me daria mais tempo. Pelo menos, não teria que me preocupar com ele por algum tempo. Meu maior problema naquele momento foi lidar com o protótipo de "flower boy" em minha cola. Já era difícil me livrar de Julls, seria realmente complicado seguir minha vida como mais um cão me farejando.
- Faça uma boa viagem - sorri para ele sem vontade. - Com licença.
Enquanto subia as escadas, senti os olhos deles cravados em minhas costas. Era como se estivessem esperando por algum sinal de fraqueza, um momento de hesitação. Mas eu não lhes daria esse prazer. Não depois de tudo. Jamais voltaria atras em minha decisão de enfrenta-los e levar adiante o legado de meu pai, mesmo que custasse minha vida.
Era cansativo manter aquela bomba, mas necessário. John me ensinou, desde criança, a nunca vacilar em minha postura. Me ensinou que uma postura firme era como um escudo: se você o levantasse o suficiente, poderia se proteger até das maiores tempestades. E ali, cercada por olhares julgadores, era meu escudo que eu erguia, protegendo-me de todos que tentavam me derrubar. Aprendi que o vencedor não é aquele que contém a verdade, mas sim aquele que resiste, mesmo que com uma mentira. Mesmo se eu estivesse errada, manter minha postura intacta era o único caminho para a vitória. Mesmo que tudo estivesse perdido, se eu fizesse o inimigo acreditar em minha vantagem, logo ela surgiria. Nunca abaixaria a cabeça para ninguém, nem mesmo para minha mãe.
Quando saí do banho, ainda enrolada em meu roupão, encontrei Lucas perambulando pelo meu quarto. Estava observando as fotos no painel, todas de pessoas que eu deveria conhecer, para meu próprio bem. Nenhuma minha. Fotos eram proibidas para mim, e ele sabia disso. Lembro que, uma vez, quando éramos crianças, ele tirou uma foto nossa. Nunca havia visto papai tão irritado. Ele tomou a câmera das pequenas mãos de Lucas e a jogou no chão, quebrando-a em vários pedaços. Saiu sem dizer uma palavra. Nunca mais nos atrevemos a tentar tirar qualquer tipo de foto.
- Você se lembra daquele episódio? - iniciou ele ao perceber que eu estava ao seu lado. - O velho John ficou muito chateado comigo.
Depois daquele dia, eu nunca mais quis uma foto minha. Era como se registrar qualquer momento de felicidade fosse proibido. Papai sempre dizia que imagens podiam ser usadas contra nós, mas talvez houvesse mais do que apenas precaução em sua proibição. Talvez ele simplesmente quisesse que eu nunca olhasse para trás, nunca me apegasse a nada que pudesse me enfraquecer.
- Acredito que "chateado" não seja a palavra correta - ri ao lembrar da expressão de Lucas naquela época. - Eu pensei que você fosse chorar.
- Eu nunca choraria em sua presença. - mentiu; eu já o havia visto chorar incontáveis vezes. - Você quer tê-la?
Não entendi ao que ele se referia, até tirar de seu casaco uma pequena foto. Éramos nós, onze anos atrás, sentados naquele mesmo quarto, sorrindo feito crianças inocentes. Ele com seu gorro vermelho e branco, e eu com minha tiara de princesa, que nunca tirava. Éramos adoráveis.
Eu olhei para a foto por um longo momento, e senti uma pontada de algo que não reconheci de imediato. Talvez fosse nostalgia, ou até mesmo tristeza. Éramos tão felizes naquela época, livres das responsabilidades e dos segredos que agora nos cercavam. Era como se aquela foto mostrasse uma versão de mim que há muito havia desaparecido.
- O velho John não sabia que eu havia retirado o cartão de memória antes de entregar a câmera.
Ele guardou essa foto por todos esses anos? Algo dentro de mim se suavizou ao perceber o quanto esse pedaço do passado ainda significava para ele. Talvez, por trás de todo aquele charme e da aparência despreocupada, houvesse um alguém que nunca deixou de se importar comigo.
- Por quê? ― perguntei.
- Eu sabia que teria que ir embora, eventualmente - deu de ombros.
Ele parecia tão cansado, tão esgotado. Seus olhos, mesmo que ainda carregassem aquele brilho de confiança, também revelavam exaustão. Talvez ele estivesse mais perdido do que eu imaginava, tentando encontrar uma forma de voltar para minha vida, de consertar o que havia quebrado. Seu olhar parecia estar perdido, como se procurasse em sua mente a melhor forma de dar uma notícia ruim, sem que eu me magoasse.
Como era possível aquele garotinho baixinho, gordinho e desastrado ter se tornado alto, pomposo e tão bonito? Procurei em seu rosto alguma imperfeição, qualquer marca assimétrica, qualquer detalhe que o tornasse menos perfeito, mas foi em vão. Parecia que haviam moldado seu rosto com minhas preferências. O destino era assustador.
- Se continuar me olhando com tanta adoração, vou pensar que aceitou minha oferta - sorriu ele, sem desviar o olhar do quadro.
- Qual oferta?
Antes que eu pudesse perguntar mais, sua mão já estava em minha nuca, e seu corpo contra o meu. A oferta, o que ele queria de mim? Por que estava se aproximando assim agora? Mil perguntas surgiram em minha mente, mas nenhuma delas escapou por meus lábios. Seu corpo era tão quente quanto o de Murilo, mas seu toque era mais gentil, e seus lábios, mais delicados, quando encontraram minha testa. Fiquei tão surpresa que simplesmente paralisei. John era o único que já havia feito isso por mim. Eu realmente não esperava por aquela demonstração de afeto. Não teria me surpreendido se ele tivesse me puxado para um beijo depravado, considerando o fato de eu estar nua por baixo do roupão de banho; afinal, isso seria o mais lógico.
Minha mente gritava que eu deveria empurrá-lo, que deveria odiar aquele gesto. Ele se foi por tanto tempo, me deixou sozinha, e agora aparecia com toda essa ternura? Mas meu corpo não respondia, e um calor estranho se espalhou por mim. Talvez fosse raiva, talvez fosse algo mais. A verdade é que, por um segundo, eu não quis me afastar.
Eu desconhecia aquela versão dele. Quando pensei que tinha chegado ao seu limite de simpatia por mim, ainda me tendo em seu abraço, ele sussurrou em meu ouvido:
- Senti tanto a sua falta.
Eu realmente não conseguia entender a situação. Como ele poderia ter sentido minha falta se ao menos se importou em dar sinal de vida? Bastava um telefonema, uma mensagem, um simples e-mail. Mas não demonstrou qualquer reação após sua partida. E eu não sabia qual possibilidade me deixava mais desconfortável: a de ser mentira sua afeição por mim, ou a de ser verdade. Ambas me deixavam em uma posição difícil. Eu estava pronta para enfrentar qualquer situação; afinal, já havia dispensado inúmeras pessoas indesejáveis, mas tratá-lo da mesma forma que tratava as outras pessoas não parecia correto. John nunca permitiria que eu o destratasse, muito menos que o humilhasse, como eu estava pronta para fazer. Eu podia quase ouvir a voz dele me censurando, aquele tom grave que ele usava quando eu ultrapassava um limite. 'Nunca manipule alguém a ponto de perder a humanidade, Gabrielle', ele dizia. Mas o que ele entenderia disso agora? Ele se foi, e eu estava sozinha para lidar com a bagunça que seu testamento criou. Será que realmente reprovaria meus próprios métodos, se soubesse que estava apenas protegendo tudo pelo que ele lutou? Se John estivesse vivo, eu apostaria minha vida que era ele quem estava puxando as cordas. Mas infelizmente, era Lucas quem estava me obrigando a ficar entre a cruz e a espada.
Eu não podia ignorar o calor que sua presença despertava em mim, mas também não podia esquecer de como ele me deixou, como se eu fosse descartável. Era como andar numa corda bamba entre o que eu queria e o que eu deveria fazer. E eu odiava me sentir dessa forma.
Sempre estive à frente de todas as situações, sempre consegui controlar as paixões que qualquer conhecido pudesse desenvolver por mim, mas quando se tratava de Lucas, eu estava completamente despreparada. Ele não era qualquer pessoa. Ele saberia identificar toda e cada reação ensaiada que eu pudesse oferecer. Murilo estava certo, eu não poderia lidar com ele da mesma forma que lidava com os outros. Mas usar o método que ele julgava ser mais eficaz poderia ser um tiro no pé; afinal, nada faria Dave mais feliz do que ver seu filho infiltrado em minha família. Eu deveria ser cuidadosa, perspicaz e, acima de tudo, não perder o controle.
Não era apenas sobre poder. Era sobre mostrar a ele que eu estava no comando, que ele era meu, e que eu poderia decidir seu papel em minha vida. Talvez fosse uma forma de me proteger, de impedir que ele me machucasse novamente.
Com certeza John não aprovaria meu método para fazê-lo se tornar meu fiel seguidor, mas como John não estava mais entre nós, ele não poderia protestar. E mesmo se estivesse, foi Lucas quem deu o primeiro passo, foi ele o primeiro a demonstrar afeição e interesse, eu apenas iria incentivá-lo. Estava decidido. Eu o tomaria como meu. Ele se tornaria o primeiro homem aceito oficialmente para me acompanhar. Pelo menos até que eu pudesse descobrir a relação de seu pai com a morte do meu.
Enquanto Lucas se retirava do meu quarto, algo em seu olhar me perturbou. Não era apenas a lembrança nostálgica de nossa infância, mas uma espécie de sombra, um segredo que ele parecia carregar. Não sabia exatamente o que ele escondia, mas uma coisa era certa: se Lucas estava ao meu lado, não era só por causa de um arrependimento tardio ou da vontade de se desculpar. Havia algo mais, que o fazia se conter, quando estava prestes a deixar sair.
O que Lucas tentava a todo custo esconder de mim?