Capítulo 3 O que fosse necessário para vencer

Gabrielle

SOBRE A POSSE ABSOLUTA DO CONGLOMERADO GOLD

Art. Único: A herdeira terá posse absoluta, irrefutável e intransferível, após a maioridade de 21 (vinte e um) anos, sob o cumprimento das seguintes exigências:

A herdeira deverá se relacionar com pessoas de sua própria faixa etária, não ultrapassando a diferença de 3 (três) anos; salvo relacionamentos empresariais.

Fui acordada pelos raios do sol clareando meu rosto. Ainda com os olhos fechados, tateei o colchão e não encontrei o que estava procurando. Antes que pudesse chamá-lo, fui invadida pelo cheiro doce de um bolo recém assado. Pulei rapidamente da cama e corri, cambaleando até a cozinha.

Ele estava concentrado, derramando calda de chocolate sobre o bolo quente. Não sei o que me dava mais apetite: o cheiro doce do chocolate - que, embora eu não apreciasse o gosto exageradamente açucarado, trazia lembranças da infância que eu sequer sabia que tinha - ou ver Murilo, vestindo somente uma calça de moletom, sorrindo irresistivelmente para mim. Como era possível ser tão bonito às sete da manhã?

Confesso que tentei ao máximo resistir a ele, mas chegou um momento em que simplesmente desisti. Ninguém no universo conseguiria resistir, e como eu não era adepta ao cristianismo, tampouco acreditava que iria para o céu, se é que ele existia, aceitei de bom grado a oferenda que havia sido entregue a mim.

Enquanto eu me rendia ao charme de Murilo, não podia evitar pensar no artigo do testamento, que determinava até quem eu poderia ou não me relacionar. Era irônico como ele, tão diferente de tudo o que minha família esperava, me trazia a única sensação verdadeira de liberdade.

- Se continuar me olhando assim, juro que não respondo por mim - disse Murilo, sem tirar os olhos da cobertura do bolo.

- Delicioso - respondi, caminhando até ele. - O bolo, é claro.

Ele sorriu convidativamente, puxando-me para um beijo caloroso. Seu corpo estava tão quente que poderia facilmente estar febril. Eu adorava a forma como seus braços se envolviam na minha cintura, como se nada no mundo fosse capaz de nos separar. A confiança com que ele me abraçava me dava a falsa sensação de segurança que eu tanto buscava. Por esse motivo, o primeiro lugar em que fui após deixar minha casa havia sido o seu apartamento.

Ele ficou muito comovido por eu tê-lo escolhido, uma vez que eu era dona de alguns hotéis na cidade. Mesmo que ninguém soubesse desse fato, o cartão sem limites que eu carregava me daria acesso a qualquer lugar que eu pudesse imaginar.

Quanto mais tempo eu passava com ele, mais confiante e capaz eu me sentia. E, embora soubesse que estava apenas refletindo a forma como ele lidava com todas as situações, estava disposta a absorver o máximo possível de sua personalidade. Eu o havia escolhido como o modelo perfeito a ser copiado, pois tudo nele me era agradável. Principalmente o fato de ele não se afastar ao perceber o tipo de pessoa que eu era, ou melhor, o tipo de pessoa que eu não era. Murilo me apoiaria em minhas decisões, e a melhor parte é que ele nunca seria um fardo ou uma pedra no meu caminho. Pelo contrário, ele já havia me ajudado a descobrir algumas coisas sobre Dave e minha mãe. E por isso, eu era profundamente grata.

Enquanto me entregava a essa sensação de segurança ao lado dele, uma parte de mim não podia ignorar o incômodo. Eu não deveria procura-lo todas as vezes que me chateasse. Como poderia assumir o controle de um conglomerado se me via, tantas vezes, buscando apoio nos braços de alguém? Talvez seja esse o ponto em que ele queria chegar quando me puxou para dentro de seu apartamento, e disse que precisávamos conversar Sabia que o fato dele não ter dito mais nada a respeito, significava que estava esperando que eu me acalmasse. Então era isso que estava fazendo ali? Me seduzindo?

Por mais que eu apreciasse sua companhia, às vezes me perguntava se ele realmente entendia o peso que eu carregava nas costas. Ou se, em algum momento, ele deixaria de me ver como uma garota tentando escapar das responsabilidades e passasse a me enxergar como a mulher que teria o destino de milhares de famílias nas mãos.

A cozinha tinha um design completamente frio, com mobiliário em concreto queimado e aço inox, o que contrastava com o calor que ele consegui transmitir toda vez que cozinhava para mim. Murilo gostava de elaborar pratos para mim, e eu adorava vê-lo fazendo qualquer atividade que exigisse concentração. Aquele rosto focado me levava a devaneios completamente fora da caixa.

- Mulher, você está brincando com fogo - disse ele, tirando-me dos meus pensamentos sujos.

Nada pude fazer, a não ser sorrir. Apesar de não ser capaz de sondar meus pensamentos, tampouco de presumir minhas ações, sua habilidade de ler minhas expressões mais vazias era realmente louvável. E, de forma alguma, ele se importava com o que descobria ao meu respeito. Éramos compatíveis, afinal. Eu não perguntaria sobre o seu passado, e em troca, ele me daria tudo o que pudesse me oferecer. Jamais recusaria essa oferta.

Após tomarmos o café, decidi que estava na hora de darmos início ao que realmente importava. Murilo e eu sabíamos claramente qual era a intenção de Dave: usar Lucas para facilitar as transações empresariais conosco e, consequentemente, roubar o império que meu pai tanto lutou para construir. Uma vez que conhecemos a arma de nosso inimigo, fica mais fácil resistir ao bombardeio. O único problema era que Murilo tinha certeza de que Lucas não fazia parte da quadrilha formada por seu pai, minha mãe e alguns acionistas de filiais.

Como eu poderia desqualificar Dave sem ferir Lucas? Apesar de guardar muita raiva por ele ter me abandonado por dez anos, eu não queria prejudicá-lo. Afinal, ele foi meu único amigo de infância, minha única lembrança de felicidade. Durante aquela semana, me peguei questionando se realmente ele não pertencia a aquela oposição. Será que, depois de tanto tempo distante, ele ainda seria aquele amigo que eu conheci, ou já teria sido moldado pelas circunstâncias e por seu pai? Mais cedo ou mais tarde, Lucas e eu teríamos que nos enfrentar. E quando isso acontecesse, seria impossível manter o passado longe.

Sabíamos do plano de Dave de se casar com minha mãe. Também sabíamos que ela havia vendido algumas ações de sua empresa particular para ele. Murilo era excelente em invadir contas de e-mail, implantar escutas telefônicas e rastrear transações bancárias, por isso não foi difícil descobrir que, ao longo de poucos meses, Dave havia duplicado seu patrimônio. Se minha mãe estava disposta a abrir mão da empresa de decoração que meu pai havia criado para ela, eu, por outro lado, não estava nem um pouco confortável com a ideia de vê-lo colocar os olhos em minhas empresas.

Por mais que os métodos de Murilo fossem questionáveis, eu não podia negar o quanto era grata por tê-lo ao meu lado. Ele me dava o controle que eu tanto precisava, mesmo que significasse infringir algumas leis.

Dave podia ter os olhos fixos em tudo o que meu pai construiu, mas eu jamais permitiria que ele tocasse em nada. Se dependesse de mim, ele jamais entraria no conglomerado Gold. Eu faria o que fosse preciso para proteger o império que meu pai construiu.

John havia começado com uma simples loja de materiais de construção, herdada de seu pai, e, com muito esforço e estudo, conseguiu fundar a maior construtora da América. Consequentemente, se tornou dono de redes de hotéis, resorts e shoppings. Quando criança, eu passava apenas uma hora por dia com papai. Independente dos compromissos que tivesse, ele sempre reservava esses minutos para sentar e conversar comigo. Acompanhei momentos felizes e também momentos difíceis, como quando os sócios tentaram tirar tudo dele. Sei bem do seu esforço e sacrifício. Tudo o que tínhamos foi conquistado pelo seu trabalho árduo. Essa foi a razão pela qual ele nunca mais aceitou sócios. O máximo que ele permitia eram investidores, mas sempre com a premissa de ter o total controle das ações, o que era vantajoso para todos. Os investidores não precisavam se preocupar com absolutamente nada, pois todo mês o rendimento estava creditado em suas contas, independentemente do desempenho da bolsa de valores.

Eu não consegui medir até onde iam os planos de Dave, nem quantas pessoas estavam dispostas a ajudá-lo. Eu não tinha ninguém me apoiando, além de Murilo e Jullian, e por mais que eles fossem muito úteis, não significavam nada dentro do quadro empresarial. Talvez eu devesse deixar meu orgulho de lado e começar a pensar friamente como meu pai havia me ensinado. Eu não sabia se conseguiria ir até o fim naquele jogo perigoso que havíamos começado. O que eu sabia era que, se eu não agisse rápido, logo seria tarde demais para proteger o que me pertencia.

- Um beijo por seus pensamentos - disse Murilo.

- Me encontrei com Lucas na festa de ontem - confessei - ele disse que gostaria de se explicar.

- E qual foi a explicação?

- Não sei. Saí antes que ele pudesse falar.

Estávamos sentados em seu sofá recém comprado, assistindo a um documentário sobre criptomoedas. Aquele sofá realmente me agradava. Lembro que comentei com ele que gostava da cor preta em tecido cetim, e, como mágica, na semana seguinte, um sofá com essas características apareceu em sua sala de estar. Murilo realmente não media esforços para me fazer feliz. Quando eu iria imaginar um sofá de cetim? Parecia surreal e confortável.

- Tem certeza de que quer continuar com isso? - sondou. - Podemos parar quando quiser.

- Preciso fazê-lo trair Dave, e, para isso, ele precisa confiar em mim.

- Não acho que fazê-lo se sentir miserável seja a solução mais eficaz - censurou ele. - Sabe que tem uma forma mais rápida e infalível para conseguir o que quer.

Por mais que eu confiasse em Murilo, a ideia de manipular Lucas me causava uma pontada de desconforto. Ele tinha sido meu único amigo verdadeiro, e agora eu o usaria para meus próprios interesses. Mas eu não podia me dar ao luxo de fraquejar

- Papai nunca aprovaria.

- Ele foi morto por seus ideais - disse Murilo o mais carinhosamente possível. - Não posso permitir que façam o mesmo contigo.

Murilo sempre acreditou que os ideais de meu pai o cegaram para os perigos à sua volta. John, por outro lado, jamais hesitaria em fazer o que fosse necessário para proteger o que era nosso. Eu sabia que a forma de agir que Murilo propôs era mais radical e direta, mas me perguntava até onde eu estaria disposta a ir para seguir seu plano.

Para John, havia alguns atos imperdoáveis, e brincar com os sentimentos das pessoas era um deles. O que ele pensaria de mim se soubesse que eu estava cogitando iniciar uma relação apenas para apunhalar alguém pelas costas mais tarde? Apesar de ter aprendido a nunca fazer promessas que não tinha a intenção de cumprir, ou simplesmente a nunca ludibriar alguém, descobri, com o passar dos anos, que era absurdamente boa nisso. Jullian me advertiu inúmeras vezes por meu comportamento "confundir" seus estagiários.

Não era minha culpa que seus mensageiros se apaixonassem tão facilmente, ou que acreditassem tanto em minha inocência, pois inocente nunca fui, tampouco me preocupava em parecer imaculada. O fato é que perdi a conta de quantos estagiários foram demitidos por minha causa, e não por culpa minha, pois culpa eu não tinha. Claro que não.

Tentava justificar meus atos a mim mesma, me perguntando se meu pai entenderia se eu explicasse a ele que, o mundo em que vivemos agora era outro, onde a fraqueza e a ingenuidade eram condenadas. Mesmo assim, a sombra de sua desaprovação me acompanhava, mas não era forte o suficiente para me fazer parar.

Confesso que era divertido brincar com eles, era divertido dizer palavras que facilmente poderiam ser interpretadas como interesse de minha parte. O mais divertido era ver a reação deles ao descobrirem quem eu era, afinal, sempre me passei por afilhada de Jullian; jamais havia admitido ser quem realmente sou, pelo menos não antes de ler o verdadeiro testamento de papai.

Nunca tive um namorado oficial sequer, simplesmente porque relacionamentos longos se tornavam chatos e penosos. Na verdade, nunca houve sequer qualquer relacionamento verdadeiro; eu apenas me divertia, sem dar qualquer brecha para sentimentalismos. Eu era incapaz de sentir carinho ou empatia por qualquer pessoa viva. Jullian acusava meu interesse por seus estagiários de ser uma espécie de experimento, uma vez que sempre soube que eu era incapaz de sentir qualquer emoção mais profunda desde a morte de meu pai.

A verdade é que, desde a morte dele, algo dentro de mim se quebrou. Não era apenas tristeza; era uma desconexão com o que as outras pessoas chamavam de 'sentimento'. Em vez disso, aprendi a observar, a imitar. Afinal, é muito mais fácil controlar quando você não está envolvida. Minhas emoções eram rasas como um espelho d'água, e minhas reações eram ensaiadas. Minha mãe nunca foi mais do que uma presença distante em minha vida, mais interessada em seus próprios jogos do que em mim. Quando ela finalmente começou a me chamar de 'protótipo de sociopata', percebi que havia deixado de tentar agradá-la muito antes. Eu não me importava com a opinião dela, afinal, ela nunca passou de uma fêmea para manter o ninho aquecido. Jullian também me censurava pela forma como me referia à minha mãe, pois, uma vez que havia sido gerada por ela, eu lhe devia respeito.

Ponderei essa informação por algum tempo, mas logo a descartei depois de descobrir que ela havia cobrado alguns milhões para me gerar. Sim, uma esposa cobrando para ter um filho com o próprio marido. Por anos, tentei entender o porquê. Talvez fosse algum mecanismo de defesa, uma forma de garantir sua independência, mas a verdade é que, ao descobrir, tudo o que senti foi nojo. Não de mim, mas dela.

Essa foi a razão pela qual John não deixou nem um centavo para ela, nem mesmo uma migalha. Ele a admitiu em sua vida durante todos aqueles longos anos apenas por ser uma mulher extremamente atraente, uma dona de casa perfeita e uma discursante insubstituível. Tanto que, por um breve período, ocupou a presidência da empresa - claro que isso durou pouco.

Meu celular tocou, e antes que eu pudesse atender, já sabia do que se tratava. Eu havia perdido para Jullian, e a essa hora já deveria estar me apresentando na recepção da construtora como a nova estagiária. Ele sempre achou que eu o respeitava demais para desobedecer suas 'sugestões', mas o que ele não sabia era que eu apenas seguia o que me convinha. E, nesse caso, concordar com ele era mais uma questão de conveniência do que de obediência. Se eu fosse descoberta, a culpa recairia somente sobre ele.

Parte do acordo incluía meu total anonimato. Sob hipótese alguma, os funcionários poderiam descobrir que eu era a futura CEO do conglomerado Gold. O que não seria muito difícil, uma vez que, em toda a minha vida, nunca tive uma foto publicada, nem em jornal local, nem em rede social. Era proibido tirar fotos. Uma regra imposta por John desde o meu nascimento para evitar qualquer tipo de inconveniente.

O anonimato era minha armadura. Ninguém sabia quem eu era, e eu me acostumei a viver dessa forma. Às vezes, me perguntava se alguém se importaria se soubesse. Provavelmente não, afinal, o verdadeiro poder não precisava ser visto, apenas sentido.

Para todos aqueles que me conheciam, eu era apenas a afilhada do vice-presidente, que havia ficado órfã na infância. O que, de certa forma, não deixava de ser verdade. Então teria que despir de todo o meu orgulho e elegância, e me tornar apenas mais uma novata no quadro de recém-contratados da matriz de projetos. Aceitar o papel de estagiária era humilhante, mas necessário. Era um jogo, e eu sabia jogar. Para vencer, às vezes era preciso perder.

- Tem um carro te esperando na portaria - disse Jullian ao telefone. - Vista-se adequadamente para o trabalho.

Jullian não me deu brechas para negociação. Eu não fazia ideia de como ele havia me encontrado, nem de como descobriu que eu fugi da festa. Mas isso não importava, eu estava disposta a cumprir minha palavra, independentemente de tê-lo latindo em meu calcanhar. Embora pudesse facilmente ignorá-lo, o incômodo constante de Jullian me fazia lembrar que, apesar de toda a minha independência, ainda estava presa às expectativas dele.

Jullian sempre me censurava pela forma como eu me vestia. Para ele, eu simplesmente ignorava as regras de etiqueta. Já que logo teria um cargo de maior visibilidade, deveria me comportar e me vestir como uma dama da mais alta classe. Usar roupas com brilho e decotes estava fora de cogitação. Tudo o que pude fazer com o closet jovial que Murilo havia preparado para mim foi vestir um vestido tubinho azul-marinho. Embora fosse um pouco curto, era o mais próximo que chegava de ser formal o suficiente para a vida de escritório.

O closet de Murilo representava a liberdade que eu desejava, enquanto o pedido de Jullian era a prisão à qual eu estava destinada. Era irônico como ambos os lados da minha vida eram opostos, e, no fim, eu me via dividida entre eles.

Calcei o mesmo escarpim da noite anterior e me dirigi até a porta.

Murilo esfregou a nuca e desviou o olhar por um segundo. O sorriso forçado era uma tentativa de mostrar apoio, mas seus olhos mostravam o cansaço de ver a mesma cena repetida tantas vezes. Ele tentou disfarçar a decepção, mas eu podia ver que isso o incomodava. Sabia que, de uma forma ou de outra, ele sempre me apoiaria. Mas aquela vida que eu carregava também o afetava, e nenhum de nós poderia fugir disso.

Quando cheguei à empresa, havia uma fileira de empregados me esperando na recepção. Todos me encaravam com curiosidade. Observei como estavam vestidos: sete garotos engravatados e duas garotas com o mesmo estilo de vestido evasê preto, o que explicava a forma como me olhavam. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a recepcionista, que nos observava de trás do imenso balcão amadeirado, quebrou o silêncio.

- Parabéns por terem sido selecionados. A partir de hoje, vocês são os novos estagiários da Construtora Matriz Gold - ela sorriu. - Podem seguir até o elevador. O Vice-presidente os aguarda no décimo quinto andar.

Seguimos em silêncio. Eu estava maravilhada com aquele lugar. A verdade é que havia estado ali apenas uma vez, quando era criança, e não me lembrava de ser tão grande. A recepção tinha um lindo piso de granito branco polido, o balcão era grande o suficiente para acomodar cinco recepcionistas, e o letreiro dourado na parede, com o nome da empresa, me fez lembrar de meu pai. Ele amava aquele prédio, o primeiro que conseguiu construir. Cada detalhe do edifício parecia carregar o peso do legado que meu pai deixou para mim. Como se, ao pisar naquele chão de granito, eu estivesse caminhando sobre os sonhos dele - e a responsabilidade de mantê-los vivos.

Apesar de o elevador ter espaço para umas vinte pessoas, as outras nove ao meu redor me sufocavam. Parecia que a qualquer minuto começariam a me bombardear com perguntas. Mesmo cercada por pessoas, sentia como se estivesse sozinha. Não porque não poderia me misturar, mas porque eu nunca poderia ser realmente uma delas. Tudo daria certo se eu fosse capaz de esconder minha identidade pelos próximos seis meses, como combinado com Jullian. Nenhum dia a mais. Se, por algum deslize, alguém descobrisse quem eu realmente era, tudo o que eu havia planejado poderia ruir. Seis meses de anonimato eram a única coisa entre mim e o destino que meu pai cuidadosamente planejou para mim.

Assim que a porta do elevador se abriu, uma onda de incredulidade e confusão tomou conta de mim ao ver que, à nossa espera, estava Lucas. Ele sorria encantadoramente. Vestia um blazer azul, exatamente da mesma tonalidade do meu vestido, que estava aberto sobre uma calça chino. Não bastava ter boa aparência; agora ele também havia aprendido a se vestir?

- Estamos combinando - disse Lucas, sorrindo idiota.

Eu o ignorei e segui em frente pelo único corredor disponível, esperando sinceramente que ele me levasse até Jullian. Eu precisava de uma explicação. Ouvi os outros me seguindo, rindo de alguma piada que o imbecil havia contado. Trabalhar ao lado de Jullian não seria divertido, e menos ainda se Lucas fizesse parte disso.

Eu realmente não fazia ideia do que ele estava fazendo na empresa, e esperava que se tratasse apenas de uma infeliz coincidência. Se Jullian já era um desafio, lidar com Lucas no meio disso tudo era insuportável. Como se eu já não tivesse o suficiente em que pensar.

- O senhor Park é o novo membro do conselho da Construtora Gold e se ofereceu para ser o supervisor de estágio de vocês - disse Jullian, assim que todos entraram em sua sala.

- Como é que é? - deixei escapar. - Só pode estar brincando comigo.

- Não se trata de uma brincadeira, senhorita - rebateu, firme.

- Julls, por favor, não faça isso comigo - pedi, quase em desespero. - Eu prometo que não vou fugir da próxima vez.

- Não haverá próxima vez, Gabrielle. Foi o nosso trato. - Ele me censurou com um olhar severo. - E devo lembrá-la de que sou o vice-presidente, e você é apenas uma estagiária. Então, comporte-se como tal.

Jullian sabia que estava me expondo. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que essa decisão tinha um propósito maior. Mas naquele momento, tudo o que sentia era uma profunda sensação de traição.

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Como se não bastasse, Lucas começou a rir. O desgraçado ria como se acabasse de ouvir a melhor piada da sua vida, e, para piorar, os outros estagiários logo o acompanharam, contagiados pelo seu riso. Meu rosto queimava de raiva e vergonha. Como ele ousava rir de mim? Era um desafio, e eu não estava disposta a perder para ele.

- Está achando engraçado? - disparei, incrédula.

- Acredite, Gabrielle, isso me diverte mais do que você imagina - disse Lucas, com um sorriso tranquilo, como se já tivesse vencido a batalha antes mesmo de começar. - Dada a nossa situação, acho que você deveria se comportar de acordo com o cargo que ocupa.

Olhei para Jullian, que, por trás de sua carranca, tentava suportar a vontade de rir. Eles estavam se divertindo à minha custa. Eu poderia culpá-los, mas a verdade é que havia procurado por aquilo, uma vez que o sigilo havia sido ideia minha. Eu não queria que descobrissem quem eu era, porque não desejava tratamento especial.

Já havia sido o suficiente crescer escondida das pessoas; foi o suficiente ser tratada como quebrável por todos aqueles que conheciam minha identidade. Eu não desejava que me tratassem com formalidade; eu queria que me respeitassem, independentemente de minha identidade. Ao que parecia, Jullian e Lucas estavam ali para me fazer passar por todos os caminhos e pisar em todas as pedras antes de assumir todas as ações.

Jullian nos entregou nossos crachás, que continham os nomes e respectivos cargos. O meu parecia faltar informações: Gabrielle: auxiliar geral. Havíamos decidido que eu seria sua secretária. Quando foi que fui rebaixada para tão pouco? Meu pai com certeza estava se contorcendo de rir em seu túmulo. Era o cargo mais baixo da empresa.

Havia os zeladores, o pessoal da limpeza, e abaixo, bem abaixo, aqueles que faziam absolutamente tudo o que lhes fosse mandado fazer, que, no caso, seria eu. Os outros estagiários se entreolharam, segurando um riso de deboche. Cada um havia sido designado para um departamento. Somente eu não tinha uma função específica. Jullian pediu para que Lucas os levasse a seus respectivos andares. Ficamos a sós, finalmente.

- Não me olhe como quem quer me arrancar uma perna - defendeu-se ele. - Só estou seguindo com nosso plano de carreira.

- Pareço uma piada para você?

- Me desculpe, querida, mas você precisa passar um tempo em cada departamento para entender como tudo funciona - tentou se explicar. - E a única forma de fazermos isso sem que descubram quem você é, é sendo a faz-tudo da empresa.

- Está me dizendo que vou ter que limpar banheiros e entregar pacotes? - perguntei, ainda tentando processar a situação. - Eu sou dona de trinta e sete prédios idênticos a esse... e vou ter que varrer o chão?

Era inútil censurar Jullian. Por mais que ele negasse, eu sabia que isso tinha as impressões digitais de John por toda parte. Era tão a cara dele. Se eu pudesse ouvi-lo agora, tenho certeza de que estaria rindo às gargalhadas.

- Você sabe que podemos fazer isso de outro jeito, o modo fácil - disse Jullian, num tom conciliador. - Eu posso apresentar você formalmente a todos, como deveria ser.

- Eles nunca me aceitariam - admiti, sem rodeios.

- Eles nem sabem que você existe, querida. Para todos aqui, você é apenas minha filha adotiva. Imagine o choque ao descobrirem a verdade, sem sequer terem te conhecido.

- Eles iriam pensar que estou aqui para comprometer o emprego de todos - suspirei, sabendo que ele tinha razão.

Jullian me observou por um momento. Mesmo com seus olhos cansados, ele sempre parecia analisar o mundo com precisão. Era um homem de quarenta anos, mas não aparentava essa idade. Alto, com a pele morena e cabelos escuros, Jullian tinha uma aura de sofisticação tranquila, algo raro para alguém que havia chegado tão jovem ao nosso país. Ele era mais família para mim do que qualquer outra pessoa que restara.

Lembrei-me de como ele entrou em nossas vidas. John havia viajado para Nova Délhi para fechar um contrato com uma nova filial. Durante as duas semanas que passou na capital, Jullian foi seu tradutor e guia. No final da viagem, meu pai simplesmente não conseguiu se despedir do jovem de apenas dezoito anos. "Se não fosse por ele, eu teria perdido milhões com acordos desnecessários", papai me contava com orgulho. Embora Jullian nunca tivesse frequentado uma universidade, sua visão ampla e ambiciosa impressionou John o suficiente para trazê-lo para cá.

- Então, está pronta para ser a faz-tudo da empresa? - Jullian perguntou, quebrando o silêncio, com um sorriso contido.

Eu o encarei por um momento, antes de ceder com um suspiro resignado.- Claro, por que não? Vamos ver até onde esse plano ridículo vai nos levar.

Jullian sorriu, como se soubesse que, de algum modo, essa experiência seria mais valiosa do que eu podia prever.

Quando nasci, minha mãe simplesmente me entregou às empregadas, sem olhar para trás. Foi Jullian quem se ofereceu para cuidar de mim. Mesmo jovem, ele já tinha uma incrível compreensão sobre crianças, sendo o irmão mais velho de cinco. Assim, cresci sob os cuidados dele. Era Jullian quem me dava banho, quem me colocava para dormir. Ele ouviu minhas primeiras palavras e viu meus primeiros passos. Era ele quem cuidava dos meus machucados de infância, e foi ele quem me ensinou a nunca confiar plenamente em nenhum homem - especialmente os de rostos bonitos.

Jullian foi a mãe que eu nunca tive. Ele esteve comigo em todos os momentos importantes, e por isso, eu era profundamente grata. De todas as pessoas que cruzaram minha vida, ele era a única que eu jamais machucaria.

- Antes que eu me esqueça - sua voz me tirou das lembranças - você costumava ser mais cuidadosa.

- Como me encontrou? - perguntei, desconcertada.

- Achou mesmo que eu não saberia? - Jullian riu suavemente. - Mesmo após a morte de seu pai, continua sendo minha prioridade saber tudo sobre você, querida.

- Mas, Julls...

- Sem "mas", Gabrielle - ele me cortou, a firmeza em sua voz mesclada com a familiaridade de sempre. - Eu permiti que se divertisse todos esses anos, mas agora é hora de parar.

Seu tom ficou mais sério, quase paternal.

- Se quer estragar sua vida, ao menos conheça os espinhos em que está pisando.

Confesso que não fiquei nada feliz com minha posição inicial. Na verdade, estava pronta para jogar tudo para o alto no primeiro desacato que sofresse. Foi simplesmente humilhante vestir aquele uniforme da limpeza e passar o restante do dia sorrindo para todos que entravam no prédio, pisando sem o menor respeito no chão que eu havia limpado. Como era possível que existisse esse tipo de emprego? Como era possível alguém passar seis horas lustrando o chão da entrada? John deveria estar louco quando designou esses serviços. Quando recebi aquele uniforme, realmente pensei que passaria meu dia esvaziando as lixeiras de papel picado dos escritórios. Nunca imaginei que Julls me colocaria numa posição tão inferior. Mas estava disposta a suportar.

Enquanto limpava o balcão da recepção, percebi que funcionários em minha posição eram simplesmente ignorados. As pessoas que passavam por ali cumprimentavam Alice, a recepcionista, mas me ignoravam completamente, como se eu fosse invisível. Os responsáveis pela limpeza eram como fantasmas naquela empresa, insignificantes aos olhos dos outros funcionários. Tentei sorrir para todos, mas, com o passar do tempo, simplesmente desisti.

"Só estão com pressa, não fique chateada", disse Alice, ao perceber que eu estava começando a me irritar. Não importava qual fosse a circunstância ou a função, papai sempre cumprimentava seus funcionários, sem restrição ou diferença. O que estava acontecendo naquela empresa?

O mais impressionante era o fato de eu conhecer algumas daquelas pessoas, pois eram diretores que costumavam frequentar reuniões particulares em minha residência. Nem mesmo eles olharam na minha direção. Isso me fez perceber o tipo de pessoa que eram. Jamais esqueceria seus olhares de superioridade enquanto passavam por mim, ignorando meus cumprimentos. Os invisíveis. Era o que éramos, não apenas funcionários da limpeza, mas qualquer um que não usasse um terno caro ou não tivesse um nome importante em seu crachá. Era como se, ao fazer o trabalho mais essencial, nos tornássemos menos humanos.

A primeira vez que cogitei abandonar tudo e revelar minha identidade foi naquele mesmo dia, ao final da tarde. Eu já não aguentava mais fazer o mesmo movimento repetitivo. Afinal, nunca havia trabalhado na vida, sequer sabia como limpar corretamente. Quando olhava para o chão, o mesmo onde passei horas tentando deixá-lo brilhando e limpo, era visível os rastros e manchas deixados por mim. Definitivamente, eu não sabia como fazer aquilo.

Alguém passou por mim e deixou cair um papel amassado. Embora fosse pequeno, poderia conter alguma informação importante. Naturalmente, recolhi-o e corri até o dono. Eu conhecia aquele senhor. Vestia um terno preto barato e uma gravata cinza sem adornos. Seu rosto aparentava ter um pouco mais de cinquenta anos, com olhos caídos, nariz grande e lábios murchos. Seus olhos pousaram em mim com desprezo.

- Deixou cair esse papel - disse, estendendo-lhe o pequeno papel amassado.

- Sim, eu deixei - respondeu ele, pegando o papel bruscamente da minha mão.

Naquele momento, precisei respirar um pouco mais fundo. Ele simplesmente jogou o papel novamente no chão, me olhando com repulsa. Cada célula do meu corpo gritava para que eu o desafiasse, para que eu revelasse quem realmente era e o colocasse em seu devido lugar. Mas isso arruinaria o propósito de tudo. Se eu quisesse conquistar meu espaço, teria que engolir minha raiva. Pelo menos por enquanto.

- Pegue - ordenou.

- E por que eu deveria? - desafiei.

- Porque estou mandando, e quando um diretor fala, os subalternos obedecem sem perguntas.

Percebi que olhares se dirigiam até nós. Eu não precisava atrair atenção para mim. Suprimi a vontade de quebrar sua mão e, mais uma vez, recolhi o papel, oferecendo-o de novo. Dessa vez ele pegou delicadamente, mas com um sorriso debochado atirou o papel no chão novamente.

- Pegue - repetiu a ordem.

- Disse que é diretor. Qual seu nome e departamento? - exigi.

- Deve ser uma novata para não me conhecer - ele riu - Não precisará saber meu nome. Considere-se demitida.

Os olhares de outros funcionários começavam a se voltar para nós. Alguns sussurravam, outros simplesmente me ignoravam, como se fosse natural que eu estivesse sendo humilhada ali, no centro de tudo. Ninguém parecia disposto a intervir, exceto Alice.

- Me perdoe, Sr. Sozan. Ela começou hoje e não conhece as normas de etiqueta da empresa - interveio Alice.

Ele ergueu a cabeça, inflando o peito, como se sua posição lhe garantisse o direito de pisar em qualquer um. Seus olhos, pequenos e irritados, se estreitaram ainda mais ao me fitar com desprezo, quase como se eu fosse uma sujeira indesejada no tapete de sua preciosa empresa.

- Dessa vez deixarei passar, apenas por você, Sra. Alice - sorriu para a recepcionista. - Não a deixe em minha vista novamente.

Alice lançou-me um olhar rápido, carregado de compaixão e alerta. Havia algo nos seus olhos que me dizia para tomar cuidado, para não me deixar levar pela raiva. Ela sabia muito bem o que acontecia ali, e talvez já tivesse passado por isso também.

O velho seguiu seu caminho sem ao menos olhar para trás. Foi a primeira vez que fui humilhada em minha vida, e jamais me esqueceria dele. Ele seria o primeiro da minha lista negra.

Senti meu sangue ferver ao perceber que várias pessoas estavam paradas, me encarando. Para elas, eu era apenas uma nova empregada que tinha causado problemas com a diretoria. Para eles, eu não era ninguém, e poderia ser substituída a qualquer momento. Alguns murmuravam entre si, trocando olhares dissimulados, enquanto outros simplesmente seguiam adiante, fingindo que não viam. Nenhum deles sabia quem eu realmente era, mas o olhar de superioridade em seus rostos era suficiente para me lembrar de como me viam: uma sombra, insignificante.

Eu sabia que não poderia fazer nada naquele momento, mas a humilhação queimava em mim como um fogo que não poderia apagar tão cedo. O orgulho ferido gritava para reagir, mas eu me obriguei a manter o controle. Haveria um tempo para tudo, eu era paciente. Esperaria o quanto fosse necessário, mesmo que levassem anos. Mas chegaria o dia em que faria todos se ajoelharem e lustrar aquele chão com suas próprias línguas. Sorri ao imaginar aquelas pessoas de ternos caros, ajoelhadas, esfregando o piso. Acredito que prefeririam lamber o chão a perder seus empregos, ou pior, perder suas línguas.

Será que, no fim, eu me tornaria como eles? Arrogante, pisando nos outros apenas por prazer? Mas naquele momento, o desejo de vê-los humilhados era maior do que qualquer hesitação moral.

            
            

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