- Você deve estar cansado, senhor Shen, - disse Cheng. - Não é comum vermos viajantes por estas partes. A vila Liang é isolada, e poucos se aventuram por essas montanhas. O que o trouxe até aqui? - Cheng perguntou, sua voz profunda, mas com uma curiosidade sincera.
Shen, que tinha permanecido em silêncio enquanto comia, olhou de relance para Castian, depois para Mei e Cheng. Ele soltou um longo suspiro, como se estivesse reunindo forças para falar sobre algo que pesava em sua alma.
- Vocês têm sorte de viver aqui - começou Shen, sua voz rouca e baixa, como o vento assoviando entre as montanhas. - Este lugar, escondido e intocado, é um refúgio em meio ao caos que se espalha pelo mundo lá fora. Eu caminhei por muitos lugares, e posso lhes dizer... poucos têm a paz que vocês possuem aqui.
Castian sentiu o coração apertar. Havia algo nas palavras de Shen que o intrigava, mas ao mesmo tempo o assustava. Seu desejo de explorar o mundo além das montanhas nunca fora tão forte, mas agora ele se via dividido. Por um lado, ansiava por aventuras, por descobrir o que o esperava além do horizonte. Mas, por outro lado, as palavras do velho sugeriam que o que estava lá fora não era algo que ele realmente queria ver.
- Você fala como se o mundo fosse um lugar terrível, - observou Mei, enquanto lhe oferecia mais chá. - O que poderia ser tão ruim assim lá fora? Sempre ouvimos histórias, mas são apenas isso... histórias.
Shen aceitou a tigela de chá, aquecendo as mãos envelhecidas com o vapor que subia lentamente. Seus olhos, profundos e cheios de experiências, encontraram os de Castian. Havia algo perturbador naquela troca de olhares, como se Shen estivesse tentando transmitir uma verdade difícil de compreender.
- O que de tão terrível tem do outro lado das montanhas? - Castian finalmente perguntou, sua voz firme, mas carregada de curiosidade. - O que você viu?
Shen deu um gole lento no chá antes de responder. Quando falou, sua voz era mais baixa, como se estivesse contando um segredo proibido.
- Você não quer saber, garoto, - disse Shen, balançando a cabeça. - Lá fora, além dessas montanhas... há guerra. Há fome. O mundo está em frangalhos. Homens lutam entre si por poder, terras e recursos. Os fracos são esmagados pelos fortes, e aqueles que não têm o suficiente para comer são forçados a fazer escolhas impensáveis apenas para sobreviver. É um mundo onde a bondade e a compaixão se tornam raras. O que você tem aqui, essa paz, esse isolamento... é uma bênção.
As palavras de Shen pareciam pesar no ar, preenchendo a sala com uma sensação de gravidade. Castian se mexeu desconfortavelmente, tentando processar o que ouvira. Desde pequeno, sempre ouvira falar do mundo além das montanhas, mas as histórias sempre foram vagas, narradas como contos distantes. Agora, frente a frente com alguém que havia visto a realidade daquele mundo, ele sentia um desconforto crescente.
- Mas... - Castian hesitou, lutando para encontrar as palavras certas. - Deve haver algo mais. Não pode ser só dor e sofrimento. Você... você encontrou algo de bom, não? Pessoas boas, lugares de beleza? - Sua voz carregava uma ponta de esperança, quase implorando por uma resposta positiva.
Shen olhou para ele por um longo momento, e um sorriso triste se formou em seus lábios.
- Há bondade, sim, - admitiu o velho, sua voz suave, quase um sussurro. - Mas a bondade é escassa e sempre testada. Aqueles que a possuem são raros, e geralmente são os primeiros a cair. Mesmo os melhores entre nós são forçados a endurecer seus corações para sobreviver. Os reis, generais e mercadores lá fora... muitos perderam suas almas para a ganância e o desespero.
Mei, que até então havia permanecido em silêncio, colocou a tigela de chá na mesa com um suspiro profundo.
- Eu sempre soube que o mundo além das montanhas não era fácil, - disse ela, sua voz suave, mas preocupada. - Mas ouvir isso de você, Shen... É difícil imaginar o que você deve ter passado.
Cheng, por outro lado, se manteve firme, mas Castian notou uma sombra de preocupação em seu olhar. Ele sempre foi um homem sábio e calmo, mas mesmo ele não pôde ignorar a realidade que Shen estava descrevendo.
- Nós somos gratos pela paz que temos aqui, - Cheng disse finalmente. - A vila Liang está longe de todos esses problemas, e espero que continue assim.
Shen assentiu.
- Vocês têm sorte, - ele repetiu. - E é por isso que estou aqui. - O tom de sua voz mudou ligeiramente, ficando mais grave e cheio de propósito.
Castian inclinou-se um pouco para frente, intrigado.
- Por que está aqui? - perguntou, incapaz de conter sua curiosidade.
- Estou aqui porque, às vezes, até os lugares mais tranquilos não podem escapar do destino. - Shen olhou diretamente para Castian ao dizer isso. - Algo está se movendo no mundo. Uma escuridão que não pode ser ignorada. E mesmo esta vila isolada pode não estar a salvo por muito mais tempo.
A inquietação que já existia dentro de Castian se intensificou. Uma parte dele ainda queria conhecer o mundo além das montanhas, mas outra parte agora temia o que estava por vir.
- O que isso quer dizer? - perguntou Cheng, sua voz séria. - Esta escuridão... o que ela tem a ver conosco?
Shen respirou fundo, seu olhar se tornando mais distante.
- O que acontece no mundo lá fora... afeta a todos nós, mais cedo ou mais tarde. O vento traz notícias, as montanhas murmuram segredos. E, infelizmente, o mal nunca fica contido por muito tempo. É por isso que estou aqui, para alertar. Algo se aproxima, e todos devem estar preparados.
O silêncio caiu pesado sobre a sala. Castian olhou para os rostos de seus pais, tentando ler suas expressões. Ele sabia que algo grande estava por vir, algo que mudaria suas vidas para sempre.
Shen finalmente se levantou, seus movimentos lentos e cansados.
- Amanhã... amanhã explicarei mais, - disse ele. - Mas por hoje, descansemos. O futuro nos trará respostas.
Enquanto se preparavam para dormir, as palavras de Shen ecoavam na mente de Castian. O que quer que estivesse além das montanhas, ele sabia que sua vida em Liang estava prestes a mudar para sempre. E ele não estava mais certo se estava pronto para isso.