Capítulo 3 Um novo começo é uma oportunidade de recomeçar.

- Manteiga?

Jéssica me encara com as sobrancelhas erguidas, segurando o riso. Estamos no quarto pequeno da república, espalhadas entre malas meio desfazidas e cadernos que ainda cheiram a novos. O perfume floral dela se mistura ao aroma de café requentado que trouxemos da rua.

- Sim, era o que o orçamento dava - respondo, rindo junto, sentindo uma pontada de nostalgia.

- Buttergold? - ela repete, franzindo a testa. - Aquela do comercial bizarro? A indústria gigante?

- Essa mesma!

Ela solta uma gargalhada, balançando a cabeça como se ainda estivesse processando a informação. Depois se levanta e pega uma câmera Polaroid da mala, segurando-a como se tivesse acabado de ter uma ideia genial.

- Faça uma pose - diz, apontando a lente para mim.

- Para quê?

- Para registrarmos nosso primeiro dia na faculdade! E quem sabe vender quando você ficar milionária.

Reviro os olhos, mas faço uma pose desengonçada de propósito. O flash estala, deixando pequenos pontinhos brilhantes na minha visão.

- Trabalhando como CLT? - brinco, cruzando os braços. - Você vai ganhar muitooo dinheiro!

- Quando você casar com aquele nepobaby! - ela retruca, e dessa vez a gargalhada dela me pega de jeito.

Pego o celular dela e aponto a câmera de volta.

- Minha vez.

Jéssica está jogada na cama, rindo como se a vida fosse simples e cheia de possibilidades. Aperto o botão, e a foto nasce devagar, revelando a imagem aos poucos.

Ela pega a foto e prende no espelho da janela com um suspiro satisfeito.

- Falando sério agora - diz, sua voz mais baixa. - Vamos olhar para essas fotos daqui a uns anos e lembrar do porquê estamos aqui.

O quarto fica em silêncio por um instante, só o som distante do vento passando pela janela entreaberta. Estendo uma garrafa d'água para ela.

- Um brinde, então.

- Pelos nossos sonhos.

As garrafas batem uma na outra com um som oco e limpo, e por um segundo, tudo parece exatamente onde deveria estar.

A faculdade, por mais que tivesse seu charme acadêmico, começava a pesar. Os dias se misturavam em uma maratona de aulas, trabalhos e prazos que pareciam se multiplicar quando eu piscava. Os corredores, sempre lotados, eram um emaranhado de vozes e risadas que ecoam como um zumbido constante. O cheiro de café requentado pairava no ar, misturado ao perfume adocicado de alguém que passava apressado.

Dividia o dormitório com Jéssica. Nós nos dávamos bem, mas a convivência forçada expunha pequenas fissuras. Os copos que ela deixava espalhados, as minhas roupas largadas sobre a cadeira... Pequenos detalhes que, em outro contexto, passariam despercebidos, mas que ali, naquele espaço minúsculo, pareciam imensas montanhas. Trabalhávamos meio período e, nos raros finais de semana livres, o cansaço falava mais alto do que qualquer plano de organização.

A biblioteca era meu refúgio secreto. O cheiro de papel envelhecido e madeira antiga me trazia um conforto estranho, como se o tempo ali passasse de forma diferente. Enquanto o resto do campus fervilhava com bares e festas noturnas, eu me enfiava entre estantes empoeiradas, absorvendo o som sutil das páginas sendo viradas e os sussurros dispersos entre os poucos alunos que preferiam aquele espaço silencioso.

De tempos em tempos, o nome Buttergold surgia nos noticiários como um fantasma do passado. Sempre com as mesmas manchetes otimistas: "Empresa em expansão", "Novos contratos bilionários". E, mais recentemente, o nome do pai de Brian começou a aparecer. Iniciativas comunitárias. Desenvolvimento da cidade. Algo nele sempre me pareceu ambicioso, mas eu nunca tinha parado para pensar que ele mirava tão alto.

Essas notícias pareciam distantes da minha realidade. Eu tinha preocupações demais para me importar com a ascensão da Buttergold. Mas, inevitavelmente, os recortes do passado me cutucavam.

Uma vez por mês, eu visitava meus pais. Gostava desse pequeno ritual. Minha mãe sempre me esperava com um bolo recém-assado, o cheiro doce de baunilha preenchendo a casa, e meu pai, com sua calma habitual, me atualizava sobre as novidades do bairro.

Naquela tarde, enquanto tomávamos café, ele comentou casualmente:

- O pai do Brian está mais envolvido na cidade do que nunca.

Fiz que sim com a cabeça, tentando não demonstrar interesse. Mas a informação ficou presa em algum canto da minha mente. Não queria admitir, mas o nome Buttergold parecia me perseguir. Como aquelas horas iguais no relógio que, não importa para onde olhasse, sempre pareciam me encarar, dizendo: veja-me.

No fim da conversa, minha mãe trouxe à tona um casamento escandaloso. A noiva descobriu uma traição e empurrou o noivo escada abaixo.

- Pelo menos foi antes de assinarem os papéis - comentou ela, rindo, enquanto eu imaginava a cena.

De volta à faculdade, a rotina seguiu seu curso, arrastando-se entre provas e trabalhos. As oportunidades de estágio pareciam cada vez mais distantes, e, no fundo, eu sabia que precisava fazer algo antes que o tempo simplesmente me engolisse.

Às vezes, depois da aula, eu e Jéssica íamos ao mercado. Era um desses mercadinhos próximos à faculdade, cheio de estudantes caçando promoções. Pegávamos frutas, alguns lanches baratos, e, se a sorte estivesse do nosso lado, encontrávamos descontos em enlatados. O cheiro de pão recém-saído do forno se misturava ao aroma artificial dos corredores de produtos de limpeza. Era um ritual simples, mas que trazia um pouco de normalidade ao caos.

Foi em um desses dias que Jéssica, segurando uma garrafa de desinfetante como se fosse um troféu, soltou a bomba:

- Você viu o noticiário? O pai daquele seu amigo de infância está sendo cogitado para concorrer à prefeitura. Buttergold, né? Acho que ele ganha fácil.

Senti meu corpo travar por um segundo. Quase deixei cair a garrafa que segurava.

- Sério? - tentei parecer indiferente, mas a surpresa estava lá.

- Sim, vi na TV. Ele tem feito um bom trabalho com a empresa, dizem que estão investindo pesado.

Coloquei a garrafa de volta na prateleira, tentando processar a informação. Jéssica disse aquilo sem malícia, apenas como quem comenta algo trivial. Mas para mim, soava como um lembrete incômodo.

Sempre soube que o pai de Brian era ambicioso, mas nunca imaginei que ele mirava a política. Eu me perguntava como Brian estaria agora, no meio de tudo isso. Como ele lidava com a responsabilidade de uma empresa tão grande? Será que ele ainda era o mesmo?

De volta ao dormitório, fiquei deitada, olhando para o teto. As lembranças da infância misturavam-se com as incertezas sobre o futuro. A Buttergold nunca havia desaparecido completamente da minha vida. Meu pai ainda fazia manutenção em algumas máquinas deles, e vez ou outra eu ouvia pedaços de suas conversas ao telefone sobre pedidos e contratos.

Suspirei. Talvez fosse inveja. Talvez fosse apenas uma sensação estranha de estar desconectada de algo que um dia fez parte da minha vida.

Jéssica, do outro lado do quarto, mexia no celular, alheia ao meu turbilhão interno.

- Sabe o que eu acho? - Ela virou-se de repente, me olhando com um brilho travesso nos olhos. - Você devia ir atrás desse nepobaby e usar suas conexões. Sério, quem sabe ele não te arruma um estágio na Buttergold? Ou, quem sabe, algo melhor?

Soltei uma risada surpresa.

- O quê?

- Oportunidade de ouro! Você vai deixar passar?

Revirei os olhos, mas não consegui conter um sorriso. Jéssica sempre tinha soluções práticas, mesmo que fossem um tanto cínicas.

- E se ele me ignorar? - perguntei, meio brincando, meio séria.

- Pelo menos você tenta. Melhor do que ficar remoendo o passado.

Suspirei, afundando o rosto no travesseiro.

- Acho que algumas coisas deveriam ficar no passado.

- Besteira. Às vezes, o passado é só o prelúdio de algo maior. - Ela ergueu os braços, dramatizando.

Ri de novo, sem me comprometer. Mas, no fundo, o pensamento ficou.

Talvez Jéssica tivesse razão. Talvez, só talvez, fosse hora de encarar o passado de frente.

E afinal... o que mais poderia dar errado?

            
            

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