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No resto do ano seguiu em dias comuns. Minhas notas estavam na média,e eu não faltava às aulas com frequência, como diz o ditado, não era vista e também não era lembrada. Nas horas livres, após horas sentada na carteira, um dos meus passatempos favoritos era observar as pessoas ao meu redor, as faxineiras, as cozinheiras da cantina, e os outros alunos em geral, rindo, conversando, jogando, brincando, mas o que eu gostava mais era observar Brian, meu amigo. Nos intervalos, Brian jogava vôlei, infelizmente, ele não era muito bom nisso.
O pátio da escola era um caos organizado de vozes e movimento. O cheiro da cantina se misturava ao aroma de grama recém-cortada do campo esportivo. Brian estava na quadra de vôlei, como sempre, jogando com uma determinação que não combinava com sua falta de habilidade. A bola subia e caía no lugar errado, arrancando risadas dos colegas. Eu, sentada no banco sob a sombra de uma árvore, segurava sua mochila e observava. A cada erro, ele corava um pouco mais, e quando finalmente acertava, ficava ainda mais vermelho, como se não soubesse lidar com o próprio sucesso. Em um desses intervalos, enquanto segurava os pertences de Brian e assistia às suas tentativas desajeitadas no vôlei, algo inusitado aconteceu. Uma das jogadas, desastradamente calculada, enviou a bola na direção do banco onde eu estava sentada. Antes que eu pudesse reagir, ela passou raspando pela minha cabeça e acertou um grupo de alunos que estava conversando animadamente. Brian veio correndo na minha direção, completamente vermelho, tanto pelo esforço quanto pela vergonha.
- Meu Deus, você está bem?
- ele perguntou, arfando, os olhos arregalados de preocupação. Eu ri, balançando a cabeça.
- Estou ótima, mas não posso dizer o mesmo para o pessoal ali. - Apontei para os alunos agora pegando a bola, rindo e gesticulando para Brian como se quisessem desafiá-lo a jogar melhor.
- Eu sou um desastre ambulante - ele suspirou, passando a mão pelos cabelos bagunçados.
- Você é esforçado. Isso conta bastante. - Sorri, tentando aliviar o embaraço que ele claramente sentia. Ele me olhou por um segundo, como se avaliasse minhas palavras, e então disse, com um sorriso hesitante:
- Sabe... às vezes, parece que você acredita mais em mim do que eu mesmo. Como é que você faz isso?- Ele disse, se sentando ao meu lado. Por um momento, não soube o que responder. Algo na maneira como ele falou me tocou, como se tivesse sido um desabafo disfarçado.
- Não sei. - Dei de ombros. - Acho que você só não presta muita atenção, e também não é como se você fosse profissional ou algo do tipo.
Ele ficou em silêncio, balançando a cabeça de leve como se não soubesse se acreditava ou não. Depois, riu baixinho
- Você é estranha.
- Obrigada. - Sorri de volta. - Vou tomar isso como um elogio.
Quando o intervalo terminou, ele voltou para a quadra, e eu fiquei no mesmo lugar, segurando suas coisas. Dessa vez, mesmo quando tentava observar os outros alunos, meus olhos sempre acabavam voltando para ele. Talvez eu nunca tenha percebido antes, mas havia algo no jeito de Brian - sua determinação, sua vulnerabilidade, a forma como ele se importava - que me fazia admirá-lo mais do que eu queria admitir.
Brian morava apenas com o pai. A mãe dele o abandonou ainda na infância, e o pai trabalhava o dia todo, saindo cedo e voltando tarde. Por isso, depois das aulas, Brian vinha para minha casa.
Nossos fins de tarde tinham cheiro de terra molhada, grama cortada e bolo de milho que minha mãe fazia. O quintal era nosso mundo particular, onde inventávamos brincadeiras que pareciam durar horas. Jogávamos bola, subíamos na mangueira perto do muro e, quando nos cansávamos, deitávamos na grama quente, ouvindo o zumbido dos insetos e o vento nas árvores.
Às vezes, ficávamos na varanda jogando videogame, com o chiado da televisão antiga competindo com o rádio da cozinha, onde minha mãe cantarolava sertanejo. Brian tinha um jeito peculiar de rir – alto, quase estridente, mas tão genuíno que era impossível não rir junto. Ele era o tipo de pessoa que transformava qualquer coisa em uma aventura.
Quando o sol começava a se pôr, tingindo o céu de dourado, sabíamos que era hora de levá-lo para casa. Nenhum de nossos pais tinha carro, então meu pai e eu o acompanhávamos. A caminhada nunca era só uma caminhada; era uma corrida, uma brincadeira. Brian sempre ganhava, enquanto meu pai ficava para trás, fingindo ofegar.
- Vocês ainda têm joelhos novos! – ele reclamava, rindo.
No fim, ele parava no meio do caminho e cruzava os braços.
- Vou esperar vocês voltarem, mas não demorem! – dizia, com um meio sorriso.
E nós corríamos de volta, pisando nas folhas secas que estalavam sob nossos pés, com o cheiro da noite se espalhando no ar.
Foram dias bons. Dias que pareciam simples, mas que agora, ao olhar para trás, percebo que fizeram da minha infância algo especial. O som das nossas risadas ainda ecoa na minha memória, junto com o cheiro da terra depois da chuva e o gosto do bolo de milho da minha mãe. Eu tive uma boa casa, bons pais, bons amigos. E Brian... Brian foi parte disso.
Mas os anos passaram. Crescemos. Ele entrou no time de vôlei, e eu no Grêmio Estudantil. Nossos horários já não batiam, e as conversas foram ficando cada vez mais raras. Agora, ao olhar para trás, percebo que Brian não foi apenas um amigo. Ele foi parte daquela infância que me fez quem eu sou.
- E o Brian, o que aconteceu? - perguntou Jéssica, interrompendo meus pensamentos.
- Não sei ao certo - respondi, revirando os olhos. - Ele entrou no time de vôlei, e eu no Grêmio. Acho... que o pai dele desenvolveu uma marca de manteiga e ficou rico, algo assim.
Ocultei o fato de que minha família o ajudou nisso. Meu pai trabalhava como mecânico industrial, e alguns clientes deixavam máquinas encostadas. Uma delas, uma misturadora de massas, meu pai vendeu ao pai de Brian. Naquela época, eu e Brian éramos inseparáveis. Mas agora, tudo o que restou foram memórias.
Meu pai era mecânico industrial, e a oficina sempre parecia ter vida própria-o cheiro de óleo misturado com ferro, o som ritmado das ferramentas batendo e o zunido baixo das máquinas em repouso. Eu nunca fui fã da bagunça ou da graxa que grudava nos dedos, mas Brian... Brian adorava aquilo. Ele mexia nas peças pequenas com a ponta dos dedos, o olhar atento, como se estivesse montando um quebra-cabeça invisível.
Naquele dia, o pai dele apareceu por lá. Parecia exausto, o avental ainda sujo de farinha e um cheiro leve de pão quente se misturando ao ar pesado da oficina. Mas apesar do cansaço, os olhos tinham um brilho diferente, algo que eu não soube decifrar na hora.
- Sr. Silva, ouvi dizer que o senhor tem umas máquinas encostadas por aqui - ele disse, um sorriso meio hesitante no rosto.
Meu pai largou a chave de fenda, limpando as mãos num pano que já tinha mais graxa do que tecido.
- Tenho algumas, sim. O que está precisando?
O pai do Brian passou a mão na nuca, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.
- Estou tentando começar algo meu. Algo que me dê mais estabilidade. Pensei em fazer manteiga, algo artesanal... mas não tenho como comprar equipamentos. E ouvi dizer que talvez o senhor pudesse me ajudar.
Fiquei em silêncio ao lado de Brian, observando. Meu pai assentiu devagar, depois caminhou até o fundo da oficina, onde o cheiro de metal enferrujado era mais forte. Entre pilhas de peças esquecidas, ele parou diante de uma máquina de misturar massa. Estava coberta de poeira, as bordas levemente corroídas pelo tempo, mas ainda parecia firme.
- Essa aqui pode servir - disse ele, dando dois tapinhas na lateral da máquina, que respondeu com um som oco. - Não é nova, mas dá conta do recado.
O pai do Brian olhou para ela como se tivesse acabado de encontrar ouro. Respirou fundo, abriu a boca para dizer alguma coisa, mas meu pai se adiantou:
- Pode levar. Depois, quando as coisas melhorarem, você me paga como puder.
Por um instante, ninguém falou nada. O pai do Brian engoliu seco, os olhos brilhando de um jeito que me fez desviar o olhar, como se eu estivesse invadindo um momento que não era meu. Mas Brian... Brian me olhou como se quisesse guardar aquele instante para sempre.
Nos meses seguintes, a oficina mudou. O cheiro forte de graxa ganhou um fundo diferente-leite morno, sal, um toque leve de manteiga fresca. Meu pai ensinou o pai do Brian a usar a máquina, e nós, crianças, ficamos com a melhor parte: experimentar as primeiras tentativas. Algumas ficavam estranhas, talhadas demais ou salgadas ao extremo. Mas então, um dia, Brian me entregou um potinho pequeno, com um rótulo rabiscado à mão: Buttergold.
- É só um teste - ele disse, coçando a nuca.
Abri a tampa, e o cheiro suave preencheu o ar. Peguei um pedaço de pão, passei a manteiga e dei uma mordida. Era macia, cremosa... tinha gosto de casa.
- Está ótima, Brian! - falei de boca cheia, e ele sorriu daquele jeito que a gente só vê quando alguém começa a acreditar no próprio sonho.