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Eu sou Anne.
Apenas Anne.
Nomes completos são um privilégio para aqueles que pertencem a algo ou a alguém. Eu? Eu nunca pertenci a ninguém.
Vinte anos de vida, vinte anos dentro das paredes frias do orfanato de Manhattan, se me perguntar sobre o mundo fora destas paredes conheço sim apenas pelo fato de estudar.
Não me lembro da minha família.
Se ainda existe, não sei.
Meu passado é um mistério, assim como meu futuro.
Mas uma coisa eu sei: o presente é um inferno cuidadosamente organizado por aqueles que se consideram nossos superiores.
Meu reflexo no espelho não me surpreende.
Nunca me surpreendeu.
Tenho os olhos marcantes, de um azul profundo, moldados por cílios longos e escuros.
Meus lábios são cheios, naturalmente vermelhos, e minha pele, apesar de pálida, carrega uma vitalidade teimosa.
Meus cabelos, longos e vermelho escuros, descem em ondas soltas até a cintura. Minha estrutura é esguia, mas firme, me considero forte para uma humana.
Um corpo que sobreviveu à fome, às punidas e à esperança esmagada repetidamente.
Madame Renata entra no quarto sem bater.
Nunca bate.
Ela não precisa pedir permissão para nada, ela é a responsável pelas 10 sem destino, assim como ela nos chama, ela é uma hibrida, pelo que falam tem sangue nobre de lobo.
Com seus olhos frios e a postura ereta, ela é a encarnação do que significa ser cruel com elegância.
Seu uniforme está impecável, sua expressão, como sempre, exala um nojo mal disfarçado.
- Em pé, Anne - ela ordena, sua voz cortante como uma lâmina.
Obedeço, mas não da maneira que ela deseja.
Faço isso devagar, sustentando seu olhar, desafiando-a em silêncio.
Ela odeia isso.
Ela odeia a minha existência.
- Sempre com essa atitude desafiadora, não é? - Renata murmura, aproximando-se. - É por isso que ninguém nunca vai te querer.
Seus dedos gelados seguram meu queixo, forçando-me a olhar para ela.
O aperto é doloroso, mas eu não dou a ela o prazer de recuar.
Nunca recuo.
As vezes eu sinto uma energia que parece sair do corpo dela quando eu a enfrento, se ela tivesse o poder de acabar com uma vida aqui seria a minha, disso tenho certeza, mas somos valiosas por não termos o tal cheiro que falam, então ela apenas pode me causar dor, e eu posso revidar causando raiva.
Então devolvo como posso...
- Eu não fui feita para ser querida - respondo, minha voz firme.
Um estalo preenche o quarto quando a palma da mão de Renata encontra minha bochecha.
O impacto me faz virar o rosto, mas eu apenas respiro fundo, engolindo a dor que é tão familiar quanto o ar que respiro.
- Vista-se. O Alpha está vindo hoje. -
Alpha.
A palavra pesa no ar.
Os líderes das alcateias são brutais, implacáveis.
E se um deles está vindo ao orfanato, significa que está procurando algo... Alguém... Nunca o vi pessoalmente dizem que ele é lindo e cruel na mesma proporção.
Renata me lança um último olhar de desprezo antes de sair, e eu solto o ar que não sabia que estava prendendo.
- Ninguém nunca vai te querer, nem para puta vai servir seca desse jeito. - Ela diz já saindo do quarto.
Talvez ela esteja certa.
Mas talvez, apenas talvez, isso seja exatamente o que me manterá viva.
Com o gosto amargo da fúria e da dor na boca, viro-me ao espelho uma última vez antes de me preparar para enfrentar o próximo passo do meu destino.
Todas as garotas deveriam estar impecáveis.
Era a regra.
O vestido de tecido simples, de cor creme, nos fazia parecer um exército de bonecas idênticas. Os cabelos presos em coques disciplinados, a maquiagem leve demais para esconder as olheiras, mas suficiente para nos fazer parecer "apresentáveis".
Estávamos alinhadas no corredor, esperando nossa vez.
O silêncio era cortante, e todas mantinham os olhos baixos, como pets perfeitamente treinadas.
Mas então, meu olhar caiu sobre Loise.
Ela tremia.
Seus dedos se retorciam no tecido de seu vestido... sujo.
Um borrão escuro de algo talvez chá, talvez sangue manchava a barra.
Meu coração apertou.
Eu sabia o que isso significava.
Renata a veria suja.
E Loise era fraca demais para suportar o castigo.
Sem pensar duas vezes, dei um passo para trás, puxando-a levemente pelo pulso para o fim da fila.
Ela me olhou, os olhos arregalados em pânico.
- O que está fazendo? - sussurrou.
- Trocamos de vestido - respondi baixinho, já desamarrando as fitas do meu.
- Mas... Anne... - Loise hesitou.
- Só faz o que eu digo - ordenei, entregando meu vestido a ela.
Ela aceitou, engolindo em seco, e rapidamente trocamos.
Ajustei o vestido sujo em meu corpo no momento exato em que Madame Renata entrou no corredor.
Os olhos frios dela varreram a fila até pararem em mim.
- O que é isso? - sua voz cortou o silêncio como um chicote.
Ela avançou, segurando meu braço com força.
- Você ousa aparecer assim diante do Alpha? Suja? Ridícula? - seus dedos se apertaram ainda mais, sua respiração quente de fúria.
Eu nada disse.
Apenas sustentei seu olhar.
Desafiei-a, mesmo sabendo o que viria a seguir.
Renata sorriu de um jeito cruel.
- Você não merece estar aqui. Não merece ser vista. Sabe o que acontece com garotas desleixadas, Anne? Elas aprendem da forma mais difícil. -
Ela fez um gesto com a mão e dois guardas surgiram.
- Levem-na. Três chicotadas devem ensinar alguma coisa. -
Fui arrastada pelo corredor.
Não conheci o Alpha naquele dia, o que de certa forma achei bom.
Mas Loise estava a salvo, e isso era ótimo.
E por algum motivo, isso me bastava.
Quando a primeira chicotada rasgou minha pele, mordi a língua para não gritar.
Eu não daria esse prazer a eles.
Humana fraca, mas com um carinho enorme por Louise que para mim era como uma irmã.
Eu me preocupo com meu futuro, mas muito mais com o de Loise, algo em mim nunca me deixou ser iludida com a esperança de uma venda que me deixe feliz, mas a coitada acredita que terá o futuro perfeito nesse mundo, e isso nunca fez parte das minhas ilusões..
Parando para pensar nunca nem pensei em que eu gostaria de ser no futuro...