Capítulo 3 O casamento frio e sem emoção

Os Preparativos

A manhã do casamento amanheceu cinzenta, o céu carregado de nuvens espessas que ameaçavam desabar sobre a cidade. Clara foi acordada por Dona Marta às 5h, sem cerimônia. "O senhor Mendes exige pontualidade,"disse a governanta, colocando um vestido de cetim branco sobre a cama. O tecido era pesado, engomado, sem detalhes ou rendas - um traje para cumprir protocolos, não sonhos.

Enquanto Dona Marta a penteava, Clara observou no espelho o reflexo pálido de seu rosto. "Por que branco?", perguntou, ironizando a farsa.

"Branco é a cor da pureza em contratos," respondeu a governanta, prendendo-lhe os cabelos com um grampo de prata. "E da neutralidade."

No escritório, Lucas assinava documentos com sua caneta de prata, L.M. gravado na lateral. Nem sequer olhou para ela quando entrou. "A cerimônia será às 9h. Duração: sete minutos. Sem votos, sem beijo," declarou, carimbando uma folha com força. Clara notou que suas mãos estavam vermelhas, como se tivesse pressionado a caneta até sangrar.

O cartório era uma sala fria, com paredes de mármore que ecoavam cada passo. O juiz, um homem de óculos grossos, leu os termos do contrato em voz monótona: "União civil baseada em interesses mútuos. Cláusula 12: separação de bens. Cláusula 23: confidencialidade."

Clara assinou com uma caneta emprestada, a tinta azul contrastando com o vermelho do sangue sob suas unhas - ela as roera até ferir. Lucas, ao seu lado, rabiscou sua assinatura com a caneta de prata, sem hesitar. Quando o juiz perguntou se aceitavam a união, ele respondeu "Sim" antes mesmo da pergunta terminar. Clara calou-se, mas um soluço escapou de sua garganta.

Fora do cartório, um fotógrafo capturou a "foto oficial": Lucas de pé, impecável, ela sentada em uma cadeira, as mãos entrelaçadas como algemas. Ninguém sorria.

O Banquete Fantasma

A "recepção" ocorreu na mansão, com três pratos servidos em pratos de ouro para um salão vazio. Dona Marta atuou como garçonete, servindo vinho tinto que Lucas nem tocou. "É para parecer real," ele explicou, cortando um filé mignon em pedaços simétricos. "Investidores podem ver as fotos."

Clara brincou com a comida, o vestido apertando suas costelas. "E se eu me recusar a fingir?"

Ele ergueu o copo de água, fingindo um brinde. "Já está fingindo. Até seu medo é convincente."

Ao longe, o telefone tocou. Lucas atendeu, e sua expressão endureceu. "Lide com isso,"ordenou a alguém antes de desligar. Clara não perguntou. Sabia que o silêncio era parte do contrato.

À noite, Clara fugiu para o jardim, onde rosas negras brotavam em arbustos cuidadosamente podados. Encontrou Lucas parado diante de uma estátua quebrada - uma mulher segurando uma espada, com o rosto desgastado pelo tempo.

"Minha mãe a trouxe da Itália," disse ele, sem se virar. "Meu pai a destruiu em uma de suas crises."

Clara tocou a espada da estátua, sentindo a ferrugem. "Por que a deixou aqui?"

"Para lembrar que até a beleza pode ser despedaçada."

Ele se afastou, mas Clara notou que ele deixara cair o broche da fênix no chão. Quando o pegou, a peça estava quente, como se tivesse sido segurada por horas.

A madrugada foi interrompida por gritos. Clara acordou com o som de vidros quebrando no térreo. Correu para o corredor e viu Lucas enfrentando dois homens encapuzados - um deles era seu padrasto.

"Você não leva minha filha!", o homem urrou, embriagado, segurando uma faca. Lucas o imobilizou com um golpe seco no pulso, a faca caindo com um tilintar metálico. "Ela nunca foi sua,"respondeu, voz calma como um lago congelado.

Clara congelou na escada, o coração batendo na garganta. Lucas olhou para ela, e pela primeira vez, seu rosto mostrou algo além de frieza : medo. "Volte para o quarto," ordenou. Ela não obedeceu. Assistiu enquanto ele expulsava os invasores, as mãos trêmulas segurando o broche da fênix como um talismã.

O Segredo na Biblioteca

No dia seguinte, Clara voltou à biblioteca proibida. Dessa vez, encontrou uma gaveta secreta na escrivaninha, contendo cartas amareladas. A caligrafia era delicada, feminina:

"Querido Lucas,

Se você está lendo isto, eu falhei. Seu pai nunca entenderá que o amor não é uma moeda de troca. Fuja antes que ele transforme você em pedra..."

A carta estava assinada por Elena Mendes - sua mãe. Clara ouviu passos e escondeu a carta no bolso. Lucas entrou, segurando a caneta de prata como uma arma.

"O que procura aqui?", perguntou, bloqueando a saída.

"Respostas,"ela respondeu, segurando o broche. "Por que guarda isso se odeia lembranças?"

Ele arrancou o broche de sua mão, mas não respondeu. Seus olhos, porém, traíram uma dor antiga.

Naquela noite, durante um jantar com sócios de Lucas, Clara foi forçada a representar a esposa perfeita. Um homem de terno azul perguntou: "Como conheceram?"

Lucas envolveu seu ombro, os dedos pressionando levemente. "Foi destino," mentiu, sorrindo. Clara sentiu o calor de sua mão através do tecido e, contra sua vontade, sorriu de volta. "Destino ou contrato?", brincou, provocando risos na mesa.

Mais tarde, no quarto, ele a confrontou: "Não improvise."

"Não suporto sua perfeição," ela revidou.

Ele deixou um livro em sua cama antes de sair -"O Pequeno Príncipe", aberto na página em que a raposa diz: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Na madrugada, Clara encontrou a aliança de prata rachada no chão do banheiro. Ao devolvê-la a Lucas, ele a examinou sob a luz do abajur. "Símbolos também podem falhar," disse, jogando-a na gaveta.

"Assim como contratos?", ela ousou.

Ele a encarou, e por um instante, pareceu que diria algo verdadeiro. Mas virou-se, murmurando: "Nada aqui falha. Apenas se transforma."

"O casamento fora selado, mas as linhas entre contrato e verdade começavam a se embaralhar. Clara percebeu, então, que a prisão mais perigosa não tinha grades

- era feita de silêncios e segredos guardados a sete chaves."

            
            

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