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O Despertar na Prisão Dourada
A luz do amanhecer filtrou-se pelas pesadas cortinas de veludo, pintando o quarto de Clara em tons de âmbar. Ela acordou com o peso do silêncio - a mansão não rangia, não tossia, não respirava. A cama macia parecia engoli-la, e o vestido cinza, cuidadosamente dobrado na cadeira, a encarava como um uniforme de guerra.
Ao descer para o café da manhã, encontrou a mesa posta com precisão militar: uma xícara de porcelana, torradas sem manteiga, um ovo cozido frio. Dona Marta observava de um canto, os olhos estreitos como se medissem cada movimento. "O senhor Mendes já partiu,"informou, seca. "Deixou instruções."
Um envelope branco repousava ao lado do prato. Dentro, uma folha de papel com letras impessoais:
1. Vestir-se adequadamente até as 8h.
2. Não deixar o quarto após as 22h.
3. Refeições serão servidas no horário estipulado.
Clara esmagou o papel na mão. "E se eu quiser um café com leite? Ou falar com ele?"
Dona Marta sorriu, sem humor. "Regra número quatro: perguntas só após o jantar."
[...]
A mansão era um labirinto de portas trancadas. Clara, porém, descobriu uma exceção: uma biblioteca empoeirada, escondida no coração da ala leste. Estantes altas guardavam livros antigos, alguns em línguas mortas, outros com anotações nas margens - "L.M., 2005", "Erro fatal na página 42".
No centro da sala, uma escrivaninha de carvalho exibia a caneta de prata de Lucas, esquecida como um artefato abandonado. Clara tocou-a, sentindo o peso frio. Ao abrir a gaveta, encontrou um diário com a capa de couro desgastada. A primeira página tinha uma única frase: "Controle é a única linguagem que o mundo entende."
Antes que pudesse ler mais, passos ecoaram no corredor. Clara escondeu-se atrás de uma cortina, vendo Lucas entrar. Ele pegou a caneta, segurando-a como uma adaga, e sussurrou para si mesmo: "Pai, você errou. Eu não vou."
O Jantar em Silêncio
Às 20h, Clara foi levada à sala de jantar. Lucas já estava à mesa, lendo um relatório, a postura rígida como a de uma estátua. Ela sentou-se, observando como ele cortava o bife em cubos perfeitos, sem um único fio de sangue.
"Por que me escolheu?", ela arriscou, quebrando a regra número quatro.
Ele não ergueu os olhos. "Porque você é previsível. E eu detesto surpresas."
"Previsível?" Ela riu, seca. "Sou uma fugitiva com um padrasto psicopata. Isso soa previsível?"
Lucas finalmente a encarou, os olhos estreitando-se. "Sua fuga foi calculada. Você deixou rastros - uma meia no beco, um bilhete no café. Queria ser encontrada."
Clara empalideceu. "Isso não é verdade."
"Não?" Ele inclinou-se para frente, a voz baixa e cortante. "Todo mundo quer ser salvo, Clara. Até você."
O som de talheres contra o prato preencheu o vazio.
[...]
Naquela semana, Lucas a levou a um teatro. Vestida em um vestido negro de mangas compridas - "Nada que exponha marcas," ele ordenara-, Clara sentiu-se como um fantasma entre os vivos. A peça era Romeu e Julieta, e ela riu internamente da ironia : dois amantes destruídos por contratos familiares.
No intervalo, um homem de terno cinza aproximou-se. "Sra. Mendes, certo? Seu marido é... intenso." Seus olhos desceram até seu pescoço, onde o colar quebrado ainda repousava. "Dizem que ele coleciona coisas frágeis."
Antes que Clara reagisse, Lucas apareceu atrás dela, a mão na cintura dela como uma corrente. "Coleciono apenas o que merece ser preservado," respondeu, puxando-a para longe. No carro, ele a alertou: "Não converse com estranhos. Sua história é minha para contar."
Ela revidou: "Eu não sou sua propriedade!"
Ele segurou seu queixo, firme. "É exatamente o que é. E propriedades bem cuidadas sobrevivem."
Naquela noite, Clara acordou sufocada por um pesadelo: o padrasto a arrastando de volta para casa, Lucas assistindo impassível. Gritos a fizeram sentar na cama, suando. Para sua surpresa, a porta do quarto estava entreaberta-e Lucas estava lá, encostado na parede, os olhos fechados como se lutasse contra seus próprios demônios.
"Por que está aqui?", ela sussurrou, ainda tremendo.
Ele não se moveu. "O silêncio da mansão é insuportável à noite."
"Você também tem pesadelos?"
Ele abriu os olhos, a lua iluminando suas feições duras. "Não sonho. Recalculo."
Pela primeira vez, Clara percebeu que ele segurava o broche em forma de fênix
- o mesmo que deixara para ela.
No dia seguinte, Clara vestiu um vestido vermelho encontrado no fundo do armário- um ato de rebeldia. Dona Marta tentou detê-la, mas Clara desceu as escadarias como uma chama viva. Lucas a esperava no hall, os olhos negros de ira.
"Tirou isso de onde?", rosnou.
"Do seu armário de segredos," ela desafiou. "Ou você só guarda cinzas aqui?"
Ele a agarrou pelo braço, puxando-a para o escritório. "Você quer atenção?
Tome. Abriu uma gaveta, revelando fotos dela: na rua, no café, dormindo no quarto da mansão. "Seu padrasto não é o único que sabe encontrá-la."
Clara sentiu-se nua. "Você me vigia?"
"Protejo o que é meu,"ele respondeu, jogando as fotos na mesa. "O vermelho combina com você. Mas não use de novo."
Naquela noite, Clara encontrou uma pequena caixa de veludo em sua cama. Dentro, uma aliança de prata simples, sem inscrições. Nenhuma nota, nenhuma explicação.
Ela procurou Lucas, encontrando-o na biblioteca. "Isso é uma armadilha?", perguntou, exibindo a aliança.
Ele não ergueu os olhos do livro. "É um lembrete."
"De que?"
"De que até contratos precisam de símbolos."
Clara colocou a aliança, sentindo-a estranhamente leve. "E se eu jogá-la fora?"
Ele fechou o livro com um baque. "Faria de você uma mentirosa. E eu detesto mentiras."
Ao sair, Clara percebeu que ele usava uma aliança idêntica.
A Confissão da Governanta
Na cozinha, Dona Marta quebrou o silêncio habitual enquanto Clara bebia chá. "Ele não é como o pai dele," disse, limpando uma faca com método. "O velho Mendes quebrava coisas. Lucas... conserta. Mesmo que não saiba como."
Clara ergueu as sobrancelhas. "Conserta?"
"Você," a governanta respondeu, seca. "Ele a trouxe aqui para consertar algo nele. Cuidado para não se cortar nos cacos."
A xícara de Clara tremeu. *"Por que está me dizendo isso?"
"Porque alguém precisa avisá-la: salvadores podem ser os mais perdidos de todos."
"Clara começava a entender: a mansão não era uma prisão, mas um espelho. E Lucas, refletido nele, era tanto carcereiro quanto refém."