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O Silêncio que Grita
A noite caiu sobre a mansão como um véu pesado. Clara permaneceu no quarto, ouvindo o tic-tac do relógio de parede - um som metódico que ampliava sua solidão. O vestido de noiva ainda estava jogado no chão, uma mancha branca em meio às sombras. Lucas não aparecera desde o confronto com o padrasto, e a ausência dele era mais assustadora que sua presença.
Ela abriu a janela, deixando o vento frio invadir o quarto. No jardim, a estátua quebrada da mãe de Lucas parecia observá-la, a espada erguida em direção ao céu. "Até a beleza pode ser despedaçada," repetiu mentalmente as palavras dele, tocando o broche da fênix preso ao vestido.
Um barulho a fez voltar-se: a porta rangera. Lucas estava ali, imóvel, com um copo de água na mão. "Beba," ordenou, colocando-o na mesa de cabeceira. "O medo desidrata."
Clara não moveu um músculo. "Você veio vigiar ou cuidar?"
Ele ignorou a pergunta, mas seus olhos pousaram no broche. "Isso não pertence a você."
"Assim como eu não pertenço a você," ela retrucou, segurando a peça com força.
Ele saiu sem responder, deixando a porta entreaberta. Clara jurou que ouviu um suspiro abafado do outro lado.
O sono veio como um invasor. Clara sonhou com o padrasto novamente - desta vez, ele usava o rosto de Lucas. Acordou aos gritos, encharcada em suor, e encontrou Lucas sentado à beira de sua cama. Ele segurava uma lamparina, a luz tremeluzente iluminando suas feições duras.
"Você... está aqui?", ela engasgou, recuando.
"Os gritos atrapalham meu trabalho," mentiu ele, mas sua mão tremia ao ajustar o cobertor sobre ela.
Clara percebeu que ele trazia o livro "O Pequeno Príncipe" debaixo do braço. "Leu isso para se sentir humano?"
Ele abriu o livro na página da raposa. "Li para entender por que alguém insiste em domesticar o indomável."
Antes que ela respondesse, ele levantou-se. "Durma. Ou não. É irrelevante."
Mas Clara notou que a lamparina permaneceu acesa na mesa.
Na madrugada, Clara seguiu o som de passos arrastados até o sótão. A porta estava entreaberta, revelando Lucas diante de uma caixa de madeira esculpida. Dentro, havia objetos da mãe: um vestido desbotado, cartas amarradas com fita roxa, um retrato dela sorrindo com Lucas criança.
Ele não a ouviu entrar. "Ela sorria assim antes de morrer?", perguntou Clara, quebrando o silêncio.
Lucas fechou a caixa bruscamente. "Sorria até quando chorava. Uma fraqueza."
"Ou força," ela corrigiu, tocando o retrato.
Ele a agarrou pelo pulso. "Você não sabe nada sobre força."
"Sei que guardar isso aqui é fraqueza," ela sussurrou, olhando para a caixa.
Ele soltou-a como se queimasse. "Saia."
Clara obedeceu, mas não antes de pegar uma carta caída no chão - endereçada a Lucas, nunca aberta.
A Carta Não Lida
No quarto, Clara abriu a carta às escondidas. A caligrafia era a mesma da mãe:
"Querido Lucas,
Se algum dia ler isto, saiba que menti. Seu pai não me envenenou. Eu escolhi o veneno para libertá-lo de mim. Você merece um futuro sem meu fardo.
- Mãe"
As palavras a perfuraram. Clara correu até o sótão, mas Lucas já se fora. Em seu lugar, havia uma única rosa negra do jardim, deixada sobre a caixa.
Na manhã seguinte, Clara confrontou Lucas durante o café da manhã. "Sua mãe se matou para você viver. E você transformou isso em ódio?"
Ele esmagou a xícara contra a mesa, os cacos voando como estilhaços. "Não fale do que não entende!"
"Entendo que você tem medo de ser amado!", ela gritou, segurando a carta.
Lucas avançou, prendendo-a contra a parede. Seu rosto estava a centímetros do dela, a respiração acelerada. "Amor é uma faca, Clara. E você não sabe segurá-la."
Ela ergueu a carta entre eles. "Ela te amou o suficiente para morrer. Você é capaz de amar o suficiente para viver?"
Ele soltou-a e recuou, a carta caindo no chão. "Saia da minha vista."
O Presente Inesperado
À tarde, Dona Marta entregou a Clara um pacote embrulhado em papel pardo. Dentro, havia um vestido azul-cobalto - cor que Lucas proibira. Uma nota estava presa:
"Use hoje. Não faço pedidos duas vezes. - L.M."
No jantar, Clara apareceu com o vestido. Lucas não comentou, mas seus olhos fixaram-se nela por um segundo a mais. "Azul é perigoso," disse por fim.
"Como você," ela respondeu, servindo-se de vinho.
Ele não a repreendeu.
Naquela noite, um blecaute mergulhou a mansão em trevas. Clara, em pânico, tropeçou nos corredores até colidir com Lucas. Ele a segurou pelos ombros, evitando que caísse.
"Não se mova," ordenou, mas ela sentiu suas mãos tremendo.
Sem pensar, ela o puxou para uma valsa imaginária, guiando-o no escuro. "Você não controla tudo Lucas."
Ele a envolveu em um abraço abrupto, seu rosto enterrado em seu cabelo. "Não deveria ser tão... difícil," sussurrou, voz rouca.
A luz voltou antes que ela respondesse. Ele se afastou, recompondo a postura. "Volte ao quarto," ordenou, mas desta vez, foi um pedido.
A Primeira Lágrima
Na madrugada, Clara encontrou Lucas no jardim, encostado na estátua quebrada. Ele segurava o broche da fênix, a cabeça baixa.
"Ela disse que renascemos porque não temos medo de queimar," ele murmurou, sem olhar para ela. "Mas eu tenho medo, Clara."
Uma lágrima escorreu por seu rosto, refletindo a luz da lua. Clara estendeu a mão, mas ele afastou-se. "Não me mostre fraqueza," ele advertiu.
"Não é fraqueza," ela respondeu, segurando sua mão. "É humano."
Ele não a puxou para perto, mas não soltou.
"Naquela noite, o medo não os separou - os aproximou. E no espaço entre um fôlego e outro, Clara percebeu que as cinzas de Lucas escondiam uma chama que nem mesmo ele conseguia controlar."