A companhia da Lina também tornava tudo mais leve, já que ela é daquelas amizades divertidas de se ter. Faz de tudo uma piada, desde o bigode gigantesco do professor de matemática até o sapato surpreendentemente grande do menino da classe de história. Em nenhum momento ela foi desrespeitosa ou fez alguma pergunta inconveniente, o que era um ponto positivo para mim.
Apesar disso, os encontros com Logan no colégio eram desconfortáveis e constrangedores. Ele não fazia questão de me cumprimentar e havia me feito prometer que não contaria a ninguém que morávamos sob o mesmo teto. De uma forma ou de outra, conviver com Logan era um verdadeiro inferno.
Eu cheguei mais cedo naquele dia. A aula de História tinha sido cancelada, Lina estava no laboratório de Biologia fazendo sei lá o quê com um sapo morto, e eu precisava respirar. Precisava de um lugar onde ninguém me olhasse de cima a baixo como se eu fosse o garoto novo com carimbo de "bicho estranho" na testa.
A sala de música era um bom refúgio.
Eu construí uma relação muito bonita com a música desde criança. É a minha terapia diária, o que me ajuda a manter minha sanidade. Quando tudo parece dar errado, não há nada que minha playlist não resolva. Meu pai era meu maior incentivador e quem me apresentou grande parte do que entendo de música, e isso me entristece com frequência. De qualquer forma, eu decidi continuar tentando, pelo menos com o piano, meu instrumento principal.
A sala de música era silenciosa, vazia. E, por mais que fosse parte do colégio, tinha algo naquele espaço que me fazia esquecer de onde eu estava.
Me sentei de frente para o piano, retirei um livro com partituras da minha mochila, posicionei sobre o instrumento e comecei a tocar devagar. Notas suaves, um pouco de Debussy misturado com algo meu. Músicas que não eram de ninguém, mas que saíam dos meus dedos como se estivessem guardadas dentro de mim há séculos.
Por alguns minutos, me senti leve. Livre.
Mas, claro, não podia durar.
A maçaneta girou. A porta se abriu com um rangido.
E ele entrou. Logan.
Por um instante, ele ficou parado na porta, me observando como se fosse ele o dono do lugar. "O que você está fazendo aqui?"
Parei de tocar, virando devagar. "O mesmo que você. Usando a sala."
"Eu sempre venho aqui nesse horário."
"E eu cheguei primeiro."
Ele avançou dois passos, as mãos nos bolsos da calça jeans, a expressão entediada. "Não gosto de repetir isso, mas... esse é o meu horário. Sempre foi."
"Não é seu nome que está na porta."
"Quer mesmo brigar por uma sala?"
"Não. Quero só poder ficar em paz, por cinco malditos minutos."
Ele me encarou por um tempo. O suficiente para me deixar desconfortável.
"O que você está tocando?"
"Por quê?"
"Porque não parece música."
Revirei os olhos. "Engraçado. Vindo de alguém que soca as cordas da guitarra como se elas fossem culpadas dos seus traumas."
Ele se aproximou mais. E agora estávamos frente a frente, com o piano entre nós. A tensão que já era constante virou um campo elétrico.
"Que tal a gente resolver isso logo?", ele disse. "Você sai, eu fico."
"E por que você acha que é você quem tem que ficar?"
"Porque eu sou eu."
Sorri. Cínico. "Uau. Argumento sólido. Parabéns."
"Peter", ele disse, se inclinando um pouco, os olhos nos meus. "Vai arrumar confusão comigo por causa de um teclado velho?"
"Se você continuar me tratando como se eu fosse invisível num dia, e incômodo no outro, talvez eu arrume confusão por menos."
A resposta pareceu pegá-lo de surpresa. Os olhos dele perderam brevemente o foco.
"Quem disse que você é invisível?"
"Você nunca me dirige a palavra. Só quando precisa me lembrar que me odeia."
"Se eu te odiasse, já teria te arrancado daqui. Com ou sem conversa."
"E o que está esperando?"
"Você."
O silêncio que se seguiu foi... estranho. Não pesado. Nem leve. Só denso. Cheio de alguma coisa que eu não sabia nomear, mas que deixava minha pele arrepiada e o ar mais difícil de respirar.
Ele deu a volta no piano, parando do meu lado. Pegou um banquinho, posicionou do lado oposto e começou a regular os pedais da guitarra no chão, pegando o instrumento na sequência.
Eu permaneci onde estava, ainda no piano, observando. "Você vai tocar enquanto eu toco?"
"Posso. Se conseguir ignorar sua existência por tempo suficiente."
"Vai ser difícil. Você tem presença de espírito, né?"
Ele ergueu os olhos. Por um segundo, nos encaramos.
Eu senti uma tensão subir pela minha nuca até a base da garganta.
E então ele tocou. Não era gentil. Mas era bom. Logan tinha precisão, controle, força. Havia algo contido nos dedos dele que parecia sempre à beira de explodir. Um tipo de fúria elegante.
E isso me hipnotizava. Não queria. Mas hipnotizava.
Tentei acompanhar no piano. Mas nossos ritmos não batiam. Ele acelerava, eu suavizava. Ele subia, eu descia. Era como tentar encaixar peças que foram esculpidas pra nunca combinarem.
"Isso não vai funcionar", dissemos ao mesmo tempo.
Silêncio.
E então ele sorriu. De verdade. Pela primeira vez.
E por algum motivo... aquilo me desestabilizou mais do que toda a hostilidade anterior.
"Pelo menos nisso a gente concorda", disse ele.
Me levantei. O banco do piano rangeu sob meu peso.
"Essa sala não é grande o bastante pros dois."
"Concordamos de novo. Está ficando preocupante."
"Ótimo. Então cede."
Ele deu um passo à frente. Ficamos frente a frente. Perto demais. De novo.
"Você não vai facilitar, vai?"
"Nunca."
Ele abaixou a cabeça, riu pelo nariz. Depois ergueu os olhos pra mim, e o olhar era quente. Incômodo. Pesado demais."Tem algo em você que provoca."
"É o reflexo da sua própria arrogância."
"Hm. Talvez."
Ele se afastou um passo. O suficiente pra respirar de novo."Essa sala está pequena hoje", murmurou.
"Você é que ocupa espaço demais."
Ele pegou a guitarra, enrolou o cabo no braço e foi em direção à porta.
"Fica com a sala. Toca o que quiser. Mas tenta aprender a escutar, Peter. Você toca bonito. Mas não ouve nada."
A porta bateu.
Eu fiquei ali. Sozinho. Com o coração batendo forte no peito e as mãos suando. Me sentei de novo. Toquei o piano como se fosse a última vez.
Eu não sabia se queria que ele fosse embora... ou que voltasse e me encarasse de novo daquele jeito.