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A cidade ainda dormia quando Giovana saiu de casa.
O céu estava tingido de cinza-azulado, e o ar carregava aquele cheiro úmido de madrugada: asfalto molhado, pão assando na padaria da esquina, e o leve toque de flores do quintal vizinho. Um dos poucos respiros naturais naquele bairro esquecido pela pressa de São Paulo. Ela apertou o passo, tênis gastos batendo ritmados contra a calçada rachada, mochila leve nas costas, cabelo preso num coque improvisado que já escorregava.
A rotina começava antes do sol. Sempre.
Era ali, no Centro de Treinamento Popular da Mooca, que ela ensinava mais do que agachamentos e pranchas abdominais. Ali, Giovana levantava espíritos. Corrigia posturas e silenciosamente sustentava histórias. Velhinhas viúvas, mães que cuidavam sozinhas dos filhos, mulheres exaustas de se sentirem invisíveis. Todas iam atrás dela não só pelo que ela fazia com o corpo delas, mas pelo que despertava na alma.
Giovana, aos vinte e um anos, era pura resistência. Força esculpida por necessidade, disciplina moldada pela sobrevivência. Trabalhava de manhã, estudava à noite, e nos intervalos vivia – como dava. Sem tempo para vaidade, mas com um charme natural que vinha da postura firme, do jeito direto, da pele suada de quem carrega o mundo nas costas, mas ainda dança no meio da guerra.
Naquela manhã, ela não sabia que sua vida mudaria.
Ao abrir o portão do centro, encontrou alguém à espera.
Ele estava encostado no balcão da recepção, uma perna cruzada sobre a outra, os braços à frente do corpo, celular numa mão, uma garrafinha d'água na outra. Usava roupas de treino elegantes demais para aquele lugar - camiseta cinza de tecido tecnológico que moldava os ombros largos, bermuda preta que exibia pernas fortes e bem torneadas. E aqueles olhos... cinzentos, como nuvem prestes a estourar em tempestade.
- Você é a instrutora? - ele perguntou, sem levantar completamente os olhos. Mas ela sentiu. Sentiu o olhar percorrê-la como uma inspeção silenciosa e afiada.
- Giovana. - Ela estendeu a mão com firmeza. - E você?
Ele a encarou como se saboreasse o nome.
- Guilherme Vasconcellos.
O mundo pareceu congelar por um segundo.
Ela já ouvira aquele nome. Era impossível não conhecer. Um dos empresários mais jovens e promissores do país. Dono de uma rede de clínicas de estética de luxo, investidor de startups milionárias, figurinha carimbada em capas de revistas de negócios e colunas sociais. O tipo de homem que parecia existir em outro plano: entre helicópteros e jantares em Dubai.
O tipo de homem que, em sua realidade, só habitava as telas do celular.
- Vim conhecer o projeto - disse ele. - Dizem que tem algo especial aqui. Quero investir... se valer a pena.
Giovana franziu o cenho.
- Aqui a gente não precisa de esmola. Só de respeito e oportunidade.
Ele sorriu. Não o sorriso de quem ri. Mas o de quem encontra um desafio raro.
- Gosto disso.
- Do quê?
- Da sua honestidade crua.
Ela virou de costas, abrindo a sala de materiais. Não daria a ele mais do que dava a qualquer aluno. E, principalmente, não daria o poder de desestruturá-la.
Mas ele já tinha.