Capítulo 2 Ecos de Traição

Budapeste, Hungria - 23h58

As sirenes ecoavam pelo subsolo como se os ossos da cidade estivessem gritando. Kael Moreno sentia cada batida do próprio coração sincronizada com o ritmo frenético da luz vermelha piscando sobre as portas de aço. Era como estar preso dentro de um código malicioso, prestes a se autoexecutar.

O bunker antigo parecia uma memória fragmentada - cada corredor, cada painel oxidado, cada traço de poeira sobre as telas mortas lhe contava pedaços de um passado que ele não queria mais recordar. Mas agora não tinha escolha. O protocolo estava ativado. As memórias, liberadas. E as caçadas, iniciadas.

Céu falou em seu ouvido, a voz mais estável que ele ainda podia confiar.

- Dois sinais, corredor sul. Ambos armados. A agente Elara Vos está liderando.

Kael apertou os dentes. Ainda ela. Sempre ela. Desde o início, quando eram parceiros na segurança cibernética da Força Global. Desde antes de tudo desabar.

Ele pressionou o botão de destravamento do painel de segurança e a IA Orfeu, que dormira nas profundezas daquele lugar, falou outra vez:

"Kael Moreno, você ativou o Protocolo Hades. Todos os procedimentos de contenção serão iniciados. Confirma prosseguir?"

Kael hesitou por meio segundo. Lembrou de Lívia. Do sangue escorrendo no piso metálico. Da arma de Elara apontada. Do cheiro de ozônio queimado.

- Confirmo.

A tela piscou em vermelho-sangue. Portas travaram. Outras se abriram. E naquele instante, o bunker morto voltou a respirar.

Quartel da Força Global de Segurança - Sala de Controle

Elara Vos observava os dados surgirem em cascata nas telas holográficas. A maldita IA estava acordada. Um técnico de rosto pálido se virou.

- Senha vermelha confirmada, senhora. Ele ativou. A Orfeu está online.

Elara cerrou os punhos, o rosto uma máscara de controle forçado.

- Mantenham os rastreadores desligados. Quero isso fora da rede. Se o Nono Véu interceptar qualquer pacote de dados, acabou.

A menção ao Nono Véu fez a sala silenciar.

- Mobilizem Lhoran - ela ordenou. - Agora.

O técnico hesitou.

- Tem certeza? Ele...

- Eu disse agora.

Subsolo - Corredor de Contenção Delta

Kael avançava, o suor se misturando à umidade da sala, a mochila pesada nas costas. No visor óptico de seu implante, Céu projetava o mapa tridimensional do bunker. Ele precisava chegar até a Sala de Contenção 02, onde um fragmento de segurança chamado "Chave-Hades" descansava havia anos.

Era o único meio de desbloquear os níveis seguintes do protocolo. E talvez, de entender por que todo mundo estava disposto a matar - ou morrer - por aquilo.

Flashback - Cinco Anos Antes

O céu noturno de Budapeste parecia mais limpo naquela época. Os drones publicitários coloriam o ar, e as praças ainda reuniam gente. Kael lembrava de correr por entre eles, Lívia ao seu lado, ambos sorrindo como dois idiotas apaixonados e inconsequentes.

Naquela noite, ele ativara pela primeira vez o Hades Protocol. Não como arma, mas como escudo, para esconder algo que ninguém deveria encontrar: a verdadeira função da Orfeu.

Mas o Nono Véu descobriu. E a caçada começou.

Elara aparecera naquela noite. Ela e seus soldados.

Kael vira a sombra dela. Sentira o cheiro do óleo queimado da pistola.

O disparo.

O grito.

O corpo de Lívia tombando.

E tudo desmoronara.

Presente - Sala de Contenção 02

Kael digitou a sequência manual no terminal lateral. A porta se abriu com dificuldade. Dentro, um cilindro metálico repousava sobre um pedestal selado. Um chip dourado, minúsculo, quase banal à primeira vista.

Mas aquele chip carregava a Chave-Hades.

Kael o pegou, sentindo o peso simbólico mais do que o físico.

Céu falou:

- Detectei Elara a 30 metros. Sozinha.

Kael fechou os olhos.

- Sempre foi assim.

A porta explodiu atrás dele. Fragmentos de aço giraram pelo ar.

Elara Vos entrou, a pistola em punho, a expressão dura. Mas havia algo nos olhos dela. Cansaço. Culpa. Um espectro de saudade.

- Baixe isso, Kael.

Ele se virou, o chip entre os dedos.

- Ainda seguindo ordens? Ou já vendeu o resto da sua alma?

Elara não vacilou.

- Você me obrigou a isso. Você cruzou linhas que ninguém podia.

Kael sorriu, amargo.

- Não, Elara. Você escolheu.

Por um instante, o tempo congelou. As lembranças dos dois sobrepostas ali, na penumbra suja do bunker.

Quartel da Força Global - Sala Restrita

Lhoran observava as imagens projetadas. Alto, impassível, os olhos pálidos como os de uma máquina.

Um dos técnicos hesitou:

- Está autorizado, senhor?

Lhoran assentiu. Um leve sorriso quase humano.

- Autorizado.

Ele caminhou, e os sensores biométricos se abriram. Um terminal negro, sem marcações oficiais, aguardava seu toque.

Ali estava a chave-mestra de contenção da Orfeu.

Subsolo - A Escolha

Kael sabia o que vinha.

- Se você apertar esse gatilho, vai repetir a história, Elara.

Ela respirou fundo.

- Não me faça isso, Kael.

Ele deu um passo à frente, deixando o chip no chão.

- Eu vim aqui pra destruir isso. Não pra vender. Não pra usar. Mas pra acabar com esse ciclo.

A pistola dela vacilou.

- A Orfeu... ela sabe demais. E não se pode confiar em você.

Kael ergueu as mãos.

- Eu também me odiei, Elara. Cada dia. Mas Lívia morreu porque alguém deu essa mesma desculpa.

A sirene mudou de tom.

"Anomalia detectada. Invasor externo acessando protocolo de contenção."

Céu gritou:

- Kael! Lhoran está entrando no sistema! Ele vai travar tudo - e todos.

Kael pegou o chip.

- Vai comigo ou não?

Elara hesitou mais um segundo - e abaixou a arma.

- Droga, Kael... você ainda sabe como me arrastar pro inferno.

Céu destravou a rota de fuga.

Corredores - Fuga

As duas figuras correram juntas pelo subsolo, os sons de drones Centurião se aproximando. Disparos de plasma cortavam o ar. Kael e Elara mergulharam por uma abertura lateral.

Pelos alto-falantes, a voz de Orfeu:

"Kael Moreno. Elara Vos. Estão formalmente marcados como dissidentes. Protocolo de expurgo autorizado."

Kael sorriu.

- Eu avisei.

Elara suspirou.

- Cala a boca e corre.

Quartel - Último Comando

Lhoran observava as tentativas de fuga. Seus dedos digitavam rápido. A IA estava quase sob seu controle. Bastava um comando.

Até que Céu, do submundo digital, interceptou a transmissão.

"Sobre minha rede morta, canalha."

Um vírus camuflado saltou, desabilitando os comandos de Lhoran. A tela dele piscou. Por um instante, só um símbolo apareceu: o emblema antigo de Lívia, uma pena de corvo.

Lhoran recuou, o semblante de máquina enfim rachado.

Subsolo - Saída

Kael e Elara atravessaram a escotilha lateral, surgindo no pátio abandonado da fábrica Gorsky. A chuva os recebeu como lâminas frias.

Kael segurava o chip. Elara, a pistola. E ali, pela primeira vez em cinco anos, lutavam juntos.

- E agora? - ela perguntou.

Kael respirou fundo.

- Agora a gente derruba o Nono Véu.

E desapareceu na noite.

            
            

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