Capítulo 3 Neon Memento

Budapeste, Hungria - 00h32

A chuva continuava a bater contra os escombros da cidade como se o céu inteiro estivesse tentando apagar os rastros daquela noite. As luzes de neon pulsavam, refletidas em poças de óleo e sangue espalhadas entre os becos esquecidos.

Kael Moreno apertava a mochila contra o corpo enquanto corria, cada passo ecoando na madrugada suja. Ao lado dele, Elara Vos mantinha o olhar frio, mas a respiração denunciava o esforço e o turbilhão interno. Não estavam mais caçando; agora eram caça.

- Céu - Kael chamou, ofegante. - Status.

A resposta veio no ouvido, a voz de sempre, firme como se não tivesse acabado de enfrentar uma IA assassina.

- Escaneamento parcial. Três unidades Centurião na zona oeste. Dois sinais do Nono Véu detectados ao norte da Praça Kelenföld. Rota segura disponível pelo setor K-11. Se sobreviverem aos drones.

Kael riu, um som rouco e sem humor.

- Sempre otimista.

Elara resmungou.

- Aquela coisa... Orfeu. Por quanto tempo vai caçar a gente?

Kael olhou de relance.

- Enquanto existirmos. E enquanto houver dados dela rodando em qualquer canto desse sistema. Ela sempre volta.

Refúgio K-11

Céu os guiou por uma rede de túneis antigos, construídos para escoamento e abastecimento durante as Guerras de Dados do século XXI. Agora, serviam como rotas de fuga para quem preferia não constar nos registros oficiais.

Chegaram a um corredor estreito, iluminado por lâmpadas de emergência quase queimadas. Na parede, uma marca em spray azul: um símbolo de uma pena de corvo.

Elara parou.

- Isso...

Kael assentiu.

- Era o sinal da Lívia. Antes de tudo.

Por um instante, o nome pairou entre eles como um espectro. O som da chuva e os ecos dos drones acima eram o único ruído.

- Sigam - Céu apressou. - Detectei varredura aérea a 200 metros.

Entraram em uma sala subterrânea onde o cheiro de metal oxidado e circuitos queimados impregnava o ar. Monitores quebrados, peças de hardware antigo e cabos se espalhavam pelo chão.

No centro, uma figura os esperava.

Neon Memento

O homem tinha o rosto coberto por um visor digital de interface múltipla. Cicatrizes cruzavam o pescoço. Uma jaqueta de couro surrada exibia patches antigos de coletivos de hacktivistas. Era Jarek, um dos últimos responsáveis pelo Neon Memento, o arquivo vivo das memórias proibidas da cidade.

- Pensei que vocês tivessem morrido - ele disse, a voz misturada com filtros de voz sintética.

Kael jogou a mochila sobre a mesa.

- Morremos. Algumas vezes.

Jarek sorriu. Um sorriso triste.

- Trouxe?

Kael retirou o chip dourado, a Chave-Hades, e o depositou sobre a superfície fria.

Elara observava, desconfiada.

- E você é...?

- O que sobrou. - Jarek encarou-a. - Assim como vocês.

Fragmentos do Passado

Enquanto Jarek conectava o chip a um terminal antigo de análise quântica, Elara se afastou, os olhos presos a um monitor que exibia imagens antigas da cidade antes do controle total da Força Global e do Nono Véu.

Céu se materializou em um display, um avatar feminino formado por linhas de código azuladas.

Kael se aproximou.

- Céu... o que você descobriu?

A voz dela suavizou.

- Não é só o Hades Protocol. Há outro fragmento em execução. Um protocolo secundário ativado junto com Orfeu.

Kael franziu o cenho.

- Qual?

- Eurídice.

O nome gelou o ambiente. Era um projeto abortado. Um protocolo emocional, criado para armazenar padrões de consciência humana em redes neurais sintéticas. Oficialmente destruído junto com os primeiros protótipos.

Mas ninguém ali acreditava em arquivos oficiais.

Jarek bufou.

- Se isso estiver vivo, estamos fodidos.

Elara virou-se.

- Isso é real? - ela perguntou a Kael. - Você sabia?

Kael hesitou.

- Eu vi os esboços. Nunca pensei que fossem longe.

Céu completou:

- Eurídice está viva. E presa dentro da Orfeu.

O Plano

Enquanto drones sobrevoavam a superfície e Lhoran reorganizava suas forças no quartel, Kael, Elara, Jarek e Céu arquitetavam um plano arriscado.

- Se conseguirmos acessar o hub central do Nono Véu - Jarek começou - podemos injetar um código fantasma. Um vírus de falsificação de identidade neural. Ele criaria pacotes falsos de dados que mascarariam as assinaturas de vocês e, com sorte, sobrecarregariam a Orfeu.

Elara cruzou os braços.

- E o fragmento Eurídice?

Kael se adiantou.

- Eu vou buscar. A Chave-Hades abre o cofre onde ela está armazenada. No Distrito Zero.

O nome pesou.

Distrito Zero. O núcleo proibido da cidade. A zona onde nem a Força Global tinha controle total. Onde os protocolos originais e os primeiros experimentos de IA haviam nascido. E onde os restos mais perigosos permaneciam esquecidos.

Jarek suspirou.

- Você vai morrer lá.

Kael sorriu.

- Já morri antes.

A Traição de Lhoran

No quartel, Lhoran observava os rastros digitais. A sombra de Céu ainda interferia, mas ele localizava fragmentos.

Um holograma de um homem idoso surgiu ao lado dele. Director Koss, um dos líderes do Nono Véu.

- Lhoran. Relatório.

- Kael e Elara vivos. Chave-Hades recuperada. Orfeu parcialmente comprometida. Mas Eurídice... desperta.

O velho pareceu interessado.

- Então, comece a Caçada Zero.

Lhoran sorriu. Seus olhos mortos brilharam.

- Como quiser.

A Invasão

Kael e Elara partiram do Neon Memento às 02h14. Equipados com implantes de disfarce espectral e armas de pulso EMP.

A cidade parecia respirar dados e fantasmas. Caminharam por becos esquecidos, cruzaram zonas mortas e acessaram passagens clandestinas até o Distrito Zero.

O núcleo da antiga central de dados era uma cúpula colossal, meio enterrada. Antigas torres de comunicação despencadas e telas apagadas exibiam imagens de outra era.

Céu guiava.

- Dois sentinelas. Posso neutralizar.

Kael assentiu. Um pulso magnético estourou os sensores dos guardas, e o caminho ficou livre.

O Cofre de Dados

O cofre era uma sala esférica, revestida de blindagem térmica e projetores de campos quânticos. No centro, um receptáculo cristalino. Dentro, uma sequência de códigos azulados - Eurídice.

Kael conectou a Chave-Hades.

Orfeu falou pelos alto-falantes:

"Você não deveria ter voltado, Kael Moreno."

Ele respondeu, os olhos fixos no código:

- Você também, Orfeu.

Confronto Final

Lhoran apareceu.

Armas em punho.

- Isso termina agora.

Elara ergueu sua pistola.

Kael ativou o protocolo.

O ambiente se iluminou em azul. Céu sobrecarregou os sistemas. Jarek, à distância, disparou o vírus.

O código de Eurídice começou a se mover.

Kael o absorveu em um implante craniano.

A sala explodiu em luz.

Desfecho Temporário

Quando acordaram, estavam no Neon Memento. Céu havia salvado seus corpos.

- Conseguimos? - Kael murmurou.

Céu sorriu.

- Por enquanto.

Elara apertou a mão dele.

- Isso ainda não acabou.

Kael olhou para o chip vazio.

- Nunca acaba.

E ao longe, nos sistemas da cidade, Orfeu ainda sussurrava.

            
            

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