/0/14469/coverbig.jpg?v=577f3c30b5c194d3127a7068a5bf8a09)
Isadora
Estou parada diante de uma das janelas do meu ateliê, mas não vejo nada. As luzes da cidade piscam como se zombassem de mim. Lá fora, todas aquelas vidas estão seguindo seus próprios rumos, enquanto a minha parece uma verdadeira bagunça. É como se eu tivesse sido sequestrada por uma nova tradição que eu nunca pedi.
Atrás de mim, a porta ainda está entreaberta. A conversa com meus pais na noite anterior foi uma enxurrada que me arrastou. O tom calmo da minha mãe, o olhar determinado do meu pai. As palavras ditas com cuidado, mas cheias de um peso que está sendo colocado em meu colo, como se eu fosse responsável por algo.
Responsabilidade. Dever. Família.
Não sou responsável por nada disso.
Fecho os olhos e respiro fundo. A verdade é que parte de mim quer gritar. A outra parte, porém, está apenas cansada.
- Filha? - a voz da minha mãe soa suave, como se não quisesse me assustar. - Posso entrar?
Assinto com a cabeça, sem olhar para trás.
Ela se aproxima devagar, como quem pisa em campo minado. Sinto quando para as minhas costas. Não fala de imediato, o que já é um sinal de que está escolhendo as palavras com cuidado.
- Eu sei que é uma situação difícil. Sei que parece injusto.
- Porque é - interrompo, virando finalmente para encará-la. - Não "parece". É injusto. Você me criou para ser livre, para estudar, para fazer minhas escolhas. E agora quer que eu aceite isso?
Ela suspira. Os olhos dela, castanhos e profundos como os meus, brilham com uma tristeza silenciosa.
- Nunca quisemos te prender, Isa. Você sabe disso. Mas às vezes a vida exige escolhas que não são sobre o que queremos. São sobre o que precisamos fazer.
- "Precisamos"? Ou "vocês precisam"?
Ela baixa o olhar, como se minha pergunta tivesse acertado um ponto que ela mesma tenta evitar.
- A situação como um todo é difícil... seu pai nunca vai admitir que está desesperado. Mas está.
- Eu não me importo.
- Isadora, todo mundo erra. Seu pai errou, mas eu o perdoei. Por que não pode fazer o mesmo?
- Você perdoar e aceitar na sua vida é uma decisão sua, agora quem erra paga pelos seus erros. Por que eu devo pagar pelo erro de vocês? - Ela desvia o olhar, sabendo que tenho razão. Mas isso não a impede de continuar tentando.
- Essa proposta não veio à toa. Não é só por nós. É por você também. Pela sua segurança. Pelo seu futuro.
- Segurança? Você acha que me jogar num casamento arranjado com um homem que eu nunca vi vai me dar segurança?
Ela caminha até mim e segura minhas mãos.
- Eu não confio em qualquer um, Isadora. Se estamos te pedindo é porque acreditamos que ele não é qualquer um. E, mais importante: porque confiamos em você. No seu discernimento. Na sua força.
- Isso não é justo. - Minha voz sai embargada. - Vocês estão pedindo demais de mim.
Ela apenas me abraça. Um gesto simples e que não é recorrente, por isso o ato me desmonta. Porque, apesar de tudo, eu sei que ela me ama. Do jeito torto dela, mas tem amor. E isso torna a escolha ainda mais difícil e cruel.
Quando ela se afasta, toca meu rosto com carinho e diz:
- Sei que estou pedindo muito para você, mas não quero perder o que nos resta, sua pequena herança. Sei que você é artista e tem sua vida independente, suas coisas e trabalho, mas me dói ver o que tenho se perder. - Suspira. - Só pensa com calma, está bem? Você não precisa decidir agora. Apenas pense na possibilidade.
Ela sai do ateliê, me deixando sozinha outra vez. E agora, o silêncio parece mais pesado.
Nunca pensei em me casar, ter filhos ou formar família, mas se esse assunto não era um desejo a se viver com alguém que eu amasse, como fazer isso com um desconhecido?
Caminho até a mesa que tenho no canto do cômodo, pego o celular esquecido mais cedo. Há uma mensagem não lida de um número desconhecido.
"Oi. Caio Vasques aqui. Quando estiver pronta para conversar, me avise. Sem pressa. Mas isso precisa acontecer. Estarei esperando seu retorno."
Fico encarando a tela como se ela pudesse me dar respostas.
Eu não conheço esse homem. Não sei quem é, não conheço os seus gostos, seus defeitos, suas intenções reais. Mas, estranhamente, sua mensagem soa sóbria. Sem pressão. Como se ele também estivesse lidando com isso com o mesmo desconforto. Ou frieza. Não sei o que é pior.
Será que ele está na mesma situação que eu? Digo, confuso, odiando essa proposta...?
E o que ele gostaria de falar comigo?
Penso na forma como meus pais falaram dele depois da minha explosão na casa alheia. Ele é um homem inteligente, focado, bem-sucedido. Rígido, sim. Mas confiável. Ou pelo menos, previsível.
Eu lembro de ter tropeçado em alguém enquanto ia embora, mas estava tão perturbada que nem reparei em sua fisionomia. Curiosa e com cabeça cheia, procurei sobre ele e sua família na internet, mas não encontrei muita coisa, reportagens sobre negócios, fotos antigas em que ele era pré-adolescente e seu pai era mais novo. Ele também não atualiza suas redes sociais, não tem postagens ou algum vislumbre da sua vida pessoal e gostos.
Nada do que encontrei me deu uma ideia de como ele era. Não consigo decidir se isso é bom ou ruim.
Respiro fundo, cogitando se deveria responder ou não.
Pego o celular e, sem me dar tempo para racionalizar demais, digito:
"Podemos conversar. Amanhã à tarde. Café Rossi, às 16h."
Mando antes que me arrependa e tenho sua curta resposta em sequência.
"Ok."
E, pela primeira vez desde a maldita reunião, sinto meu coração bater diferente. Um pouco mais rápido. Um pouco mais alto. Não sei se é medo ou curiosidade. Possa ser ambos.
Estou nervosa. Em pânico com nossa reunião e no que decidiremos depois dessa conversa.
Não sei como será, mas sei que, depois desse encontro, nada vai ser como antes.