/0/14564/coverbig.jpg?v=1de594abbd58aeb85546571741c27eef)
Capítulo 3
Enquanto isso, na fazenda Fonseca, o silêncio reinava ao redor do casarão. Alexandre havia saído por alguns minutos para pensar. Caminhava entre as árvores que cercavam o terreiro, os passos firmes pisando na terra vermelha enquanto a cabeça fervilhava de perguntas.
Por que a colocou no próprio quarto?
Por que não a levou ao hospital mais próximo e a deixou lá?
Por que aquela mulher, completamente desconhecida, mexeu tanto com ele?
Suspirou pesado, levando o chapéu à testa, tentando se proteger do sol que já subia forte. Voltou para casa e foi direto para a cozinha. Elza o esperava com um pano nas mãos, o olhar preocupado.
- Senhor Alexandre... terminei de limpá-la. Ela ainda está inconsciente. Cuidei dos machucados. O vestido da minha sobrinha caiu bem nela.
- Obrigado, Elza. Você é de confiança - disse Alexandre, fazendo um leve aceno de cabeça. - Quando ela acordar, me avise.
- Claro, senhor. Permita-me dizer uma coisa... - Elza hesitou, mas continuou ao ver o olhar receptivo do patrão. - A moça tem calos nas mãos. As unhas estão quebradas, a pele, maltratada... não parece alguém acostumada ao descanso.
Alexandre assentiu lentamente, caminhando até o fogão a lenha. Pegou a chaleira de ferro com cuidado e serviu o café fumegante na caneca de barro que sempre usava nas manhãs. Levou a bebida até os lábios, mas não bebeu. Ficou ali, pensativo, com o olhar perdido no vapor que subia da caneca.
- Eu percebi - murmurou, finalmente. - Mesmo desacordada, ela carrega no rosto as marcas de quem já sofreu demais. É como se a dor estivesse entranhada nela... como uma sombra que não se apaga.
Elza cruzou os braços, ouvindo em silêncio.
- Desde que a trouxe para cá... - ele continuou, virando-se - fico me perguntando: será que alguém está procurando por ela? Será que tem alguém que sente sua falta? Ou será que, ao vir parar aqui, ela finalmente se salvou?
Elza suspirou baixinho, com os olhos marejados.
- Talvez o destino tenha trazido ela ao lugar certo, senhor.
Alexandre não respondeu. Apenas tomou um gole do café quente, deixando o silêncio dizer o que ainda não sabia colocar em palavras.
- Elza, vou levar o carro no mecânico. Não devo demorar. Se ela acordar, me avise imediatamente - disse Alexandre, pegando as chaves do carro penduradas no gancho ao lado da porta.
- Pode deixar, senhor. Vá tranquilo.
Alexandre saiu e encontrou Hugo perto do celeiro, encostado na moto.
- Hugo, me faz um favor? Me acompanha de moto até a oficina. Vou deixar o carro lá e volto com você.
- Claro, patrão. Vamos nessa.
Pouco depois, os dois chegaram à oficina. Alexandre estacionou o carro ao lado de uma caminhonete enferrujada, desceu e acenou com a cabeça para os funcionários que trabalhavam sob o sol forte, com camisas suadas e ferramentas nas mãos.
- Bom dia, pessoal.
- Dia, seu Alexandre! - responderam em coro, com respeito evidente na voz.
Enquanto Hugo encostava a moto na sombra e esperava, Alexandre seguiu para os fundos da oficina, onde o som dos martelos e o cheiro de graxa dominavam o ambiente. Lá, encontrou Mauro, um homem baixote de boné surrado e sorriso fácil.
- Alexandre! - disse Mauro, limpando as mãos num pano encardido. - Como vai?
- Melhor agora que cheguei aqui. O carro tá fazendo um barulho estranho no motor, e a embreagem tá com vontade própria.
- Vixe... vamos ver isso.
Mauro o guiou por entre carros desmontados até um dos boxes. Foi quando um sujeito saiu debaixo de um carro engatinhando, com a camiseta encharcada de suor e o rosto brilhando de óleo. Era Geraldo. O cheiro que exalava dele era tão forte que fez Mauro recuar um passo, franzindo o nariz.
- Geraldo, esse aqui é o carro do seu Alexandre. Dá uma olhada pra gente.
Geraldo se levantou lentamente, limpando a testa com o braço imundo. Quando se virou, o rosto sujo de graxa revelou olheiras profundas e uma barba por fazer. O odor que o cercava era azedo e marcante, como se ele tivesse se esquecido do banho há dias.
- Pode deixar, patrão... - disse, tentando forçar um sorriso, que só deixou ainda mais claro o estado deplorável em que estava com os dentes amarelos e cheios de sujeira.
Mauro fez uma careta discreta, e Alexandre disfarçou o incômodo, educado demais para comentar.
- Vejo você mais tarde, Mauro. Hugo me espera lá fora.
- Beleza, Alexandre. Assim que tiver um diagnóstico, te ligo.
Alexandre assentiu e saiu, respirando aliviado assim que cruzou o portão da oficina.
- Bora, Hugo - disse, montando na garupa da moto. - Preciso de um banho e de ar puro depois dessa.
Hugo soltou uma risada contida e deu partida na moto, levando o patrão de volta para a fazenda.
Alexandre chegou à fazenda com o vento ainda batendo no rosto. Desceu da moto e agradeceu a Hugo com um aceno.
- Pode verificar os bebedouros dos pastos de cima. E manda o Zezinho arrumar a cerca do lote três, tem bezerro escapando por ali.
- Deixa comigo, patrão - respondeu Hugo, acelerando a moto e sumindo na estrada de terra.
Alexandre caminhou com passos firmes pelo terreiro. Cumprimentou alguns funcionários e distribuiu ordens rápidas, o olhar atento como de costume. Quando entrou na casa grande, o cheiro do fogão a lenha ainda pairava no ar, misturado com o aroma de café fresco.
- Elza? - chamou.
A cozinheira surgiu no corredor, enxugando as mãos num pano limpo.
- Senhor?
- Ela acordou?
- Ainda não, senhor. Pedi pra minha sobrinha dar uma olhada nela enquanto eu terminava as coisas na cozinha. Continua desacordada.
Alexandre assentiu em silêncio e caminhou até o quarto onde havia deixado a mulher desconhecida. A luz suave da tarde entrava pelas frestas da janela, iluminando o quarto.
Ao se aproximar da cama, parou por um instante. A pele dela agora estava limpa, sem os rastros de poeira e sangue seco. O rosto, antes escondido pela sujeira e cabelos desalinhados, agora se mostrava mais claramente.
Ela parecia ter pouco mais de trinta anos. A beleza dela não era daquelas artificiais, era natural, mesmo marcada pelo sofrimento. Os traços finos, os lábios levemente entreabertos, e os cabelos castanhos espalhados sobre o travesseiro davam a ela um ar vulnerável, quase etéreo.
Alexandre franziu a testa, intrigado.
"Quem é você?", pensou.
Foi então que notou as pálpebras dela se moverem. Primeiro um leve tremor, depois uma contração sutil. O peito dele se contraiu em expectativa.
Os olhos dela se abriram devagar, como se lutassem contra o peso do mundo. Quando finalmente revelaram sua cor, Alexandre prendeu a respiração por um instante.
Eram olhos cor de mel. Intensos. Doloridos. Belos.
Eles se encontraram, ainda que por breves segundos, e foi como se o tempo parasse.