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Selena encarou o vidro por mais alguns segundos.
Nada. Só a cidade, o céu nublado e seu reflexo rígido como uma sentença.
Ela odiava quando o ar ficava pesado sem motivo. Como se algo estivesse à espreita... e com fome.
Mas o verdadeiro perigo não estava no vidro. Estava no maldito jatinho particular estacionado no hangar da Valli Corp.
**
Na manhã seguinte, ela chegou à pista com óculos escuros, rabo de cavalo baixo e um vestido preto que era mais sobre domínio do que moda. Saltos finos, andar lento, bolsa presa ao ombro como uma arma.
Dante já estava lá. Óculos escuros também. Camisa social branca arregaçada nos antebraços, uma garrafinha d'água na mão e o tédio entalado na cara.
Ele a observou subir a escada da aeronave como se cada degrau fosse um desafio pessoal à paciência dele.
"Cinco minutos de atraso."
Ele não olhou para ela enquanto dizia.
"E você está com a mesma cara de ontem. Tradições devem ser respeitadas."
Ela passou por ele e sentou-se com a naturalidade de quem já se sentia dona do espaço.
"Tem medo de voar?" ele perguntou, jogando a garrafinha vazia em uma lixeira embutida.
"Só de ficar presa em lugares pequenos com homens emocionalmente disfuncionais."
"Então hoje vai ser o seu inferno particular."
Ela cruzou as pernas, tirou os óculos e apontou:
"Só se você começar a falar sobre seus sentimentos. Aí, sim, é tortura."
Um silêncio tenso se instalou entre os dois enquanto o jato taxiava.
Ele a olhou. Como sempre olhava. Como se estivesse tentando decifrar um idioma que odiava, mas não conseguia parar de estudar.
"Você se diverte me provocando, não é?"
"Eu me divirto com pouca coisa, Dante. Mas você é um parque de diversões inteiro."
Ele abriu um sorriso de lado. Quase imperceptível. Mas estava lá.
**
Durante o voo, ela revisava os contratos com uma caneta vermelha e um copo de café amargo ao lado. Ele observava. Disfarçado.
Selena sentia o olhar dele queimar a pele da nuca como se a estivesse despindo com a mente.
E estava.
"Você nunca erra um número", ele disse, finalmente. "É irritante."
"E você nunca agradece. Isso é mais irritante ainda."
"Você quer gratidão?"
Ele se inclinou na poltrona. "Isso é tudo que está atrás?"
Ela virou o rosto, encarando-o com frieza.
"Não. Mas vai ser divertido ver você rastejar quando descobrir o que eu realmente quero."
Ele a olhou como se tivesse sentido algo se mover debaixo da própria pele.
"Você é um problema."
"Você é a consequência."
**
O carro os aguardava no aeroporto. Hotel reservado. Luxuoso, discreto, com quartos separados - como se isso realmente fosse funcionar como barreira.
À noite, um jantar formal com os italianos.
Dante de terno preto. Frio, charmoso e letal.
Selena com um vestido vinho, ombros nus e expressão que dizia "sim, eu vou destruir você - e você vai gostar".
Durante o jantar, um dos italianos ousou tocá-la no braço ao falar. Dante congelou por meio segundo. Só meio. Mas ela viu.
Ela provocou. Riu mais alto da piada do idiota. Se inclinou, proposital.
Na saída, já no elevador do hotel, Dante explodiu:
"Você achou bonito aquele teatro todo?"
"Teatro? Eu só estava sendo educada. Ou está com ciúmes, Valli?"
Ele virou para ela. O elevador parou no andar deles, mas nenhum dos dois se mexeu.
"Não me testa, Reyes."
Ela encostou no espelho, desafiando:
"Por quê? Vai fazer o quê?"
Ele avançou. Devagar. A respiração mais pesada. A tensão, finalmente, quase tangível.
"Não começa um incêndio se não estiver pronta pra queimar."
Ela sorriu. Os olhos brilhando.
"Talvez eu já esteja em chamas, Dante."
**
A porta do elevador abriu.
Ambos parados. O corredor vazio.
Selena saiu primeiro.
E ele ficou ali, no limite entre o controle e a ruína.
E a noite ainda estava só começando.
Selena fechou a porta do quarto com um estalo seco.
Encostou-se à madeira por alguns segundos. Respirou fundo.
O cheiro dele ainda estava na pele dela.
Ou talvez fosse só impressão.
Ou talvez fosse maldição.
Tirou os sapatos, desfez o coque, pegou o celular e viu mensagens não lidas - todas de um número que ela deveria bloquear, mas ainda não bloqueou.
Não hoje.
Hoje, tudo estava à flor da pele.
Hoje, o inferno usava paletó Armani e a olhava como se quisesse engoli-la inteira.
Ela caminhou até a varanda do quarto. Cidade iluminada, vento morno e a sensação incômoda de estar sendo vigiada.
Olhou para o quarto ao lado. As luzes estavam acesas.
Cortinas abertas.
Dante estava ali. Camisa aberta, copo de uísque na mão, olhar perdido.
Mas ele a viu. Claro que viu.
Eles se olharam por segundos longos demais.
Nenhum dos dois desviou.
Era uma guerra muda.
Até que ele levantou o copo num brinde silencioso.
Selena ergueu a sobrancelha, pegou uma taça vazia na mesa e o imitou, com desdém debochado.
Ela ia quebrar aquele homem.
Mas o que a assustava de verdade...
Era a dúvida crescente de que talvez ele a quebrasse primeiro.
**
Horas depois, ela acordou com um estalo seco.
Um som abafado, no corredor.
Ela se levantou devagar. Foi até a porta.
Abriu.
Nada.
Mas, quando virou para entrar, uma sombra apareceu no fim do corredor.
Alta. Rígida.
Ele.
Dante caminhava como se tivesse saído de um pesadelo - mas os olhos estavam mais vivos do que nunca. Suados, despenteados, sem camisa, como se tivesse lutado com os próprios demônios e perdido por pouco.
Ela cruzou os braços, encostando-se no batente da porta.
"Problemas pra dormir, Valli?"
Ele não respondeu de imediato. Só a olhou. E havia algo ali...
Não desejo.
Fúria.
Frustração.
Confissão prestes a escapar.
"Preciso... pensar. Preciso... alguém que cale a porra da minha cabeça por cinco minutos."
Ela arqueou uma sobrancelha.
"E achou que eu sou a calmaria?"
"Você é a tempestade depois da calmaria. Melhor que silêncio."
Ela não se moveu.
Mas a porta ficou entreaberta.
E ele ficou ali, como uma escolha perigosa esperando ser feita.
Ela não disse que sim.
Ele não pediu permissão.
Mas naquela noite, entre quatro paredes que já sabiam demais, alguma coisa mudou.
E nem o diabo conseguiria desfazer o que nasceu ali.