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O Éter havia mudado. O céu já não parecia repousar em tranquilidade. A noite se alongava um pouco mais do que devia, e o dia chegava mais tenso, como se temesse o que encontraria. Havia algo no ar – um sussurro, uma energia oculta, como o prenúncio de uma colisão.
Nayla sentia isso no brilho das estrelas. Seus olhos se voltavam cada vez mais para o Limiar, aquele fragmento de fronteira onde tudo havia começado. Mas agora, seus passos precisavam ser mais calculados. Depois das suspeitas de sua mãe, Lunara se tornara rígida como o mármore das Montanhas do Silêncio.
- Hoje, você treinará com as Sentinelas da Aurora - anunciou Lunara certa manhã, enquanto Nayla se vestia com vestes de luz azulada.
- Mas... treino com elas só às quintas. Hoje é terça.
- Os dias mudam. As ameaças também. Você é filha de uma guardiã, Nayla. Precisa estar pronta para qualquer desvio. Até dos seus próprios impulsos.
Nayla não respondeu. Apenas assentiu, escondendo o incômodo no brilho do olhar. As Sentinelas eram exímias guerreiras lunares, e o treino com elas era tão exaustivo quanto vigiado. Não haveria oportunidade de fuga. Mas Nayla já aprendera a não depender de oportunidades: ela agora as criava.
Do outro lado do Éter, Solaris chamava Elios ao Salão de Fogo, o centro da força solar.
- Você será iniciado nas tarefas do Círculo Dourado - anunciou, solenemente.
Elios manteve o olhar firme, mas por dentro o coração batia descompassado.
- O Círculo Dourado? Mas... só os herdeiros consagrados são iniciados nesse nível.
- Exato. Chegou sua hora. Não mais voos errantes. Não mais curiosidades sobre as fronteiras. Você pertence à luz. E servirá a ela por inteiro.
Aquilo soava como uma condenação.
- Sim, pai - respondeu Elios, curvando-se. Mas a mente já corria solta, em busca de brechas. Sabia que Nayla não o deixaria sozinho naquela nova prisão disfarçada de dever.
Durante os dias seguintes, o tempo deles foi tomado por missões, treinos, reuniões e compromissos. Nayla lutava com lanças de gelo contra espectros de sombra. Elios memorizava mapas solares, decorava orações ancestrais e liderava rituais do meio-dia.
Mas, mesmo quando o corpo estava exausto, o coração continuava atento.
Eles aprenderam a se comunicar por sinais, através do céu. Nayla criava padrões com as fases da Lua, traçando mensagens nas formações de nuvens lunares. Elios respondia com pequenos pulsos solares, alterando tons no pôr do sol. Às vezes, uma simples nuvem avermelhada no canto esquerdo do céu ao entardecer era o código que diziam: "Esta noite, no penhasco de Névoa Dourada."
E assim, encontravam-se.
Naquela noite, Nayla teve que ludibriar sua treinadora, fingindo uma lesão no tornozelo. Enquanto as demais Sentinelas se dirigiam às Tendas de Cura, ela escorregou pela trilha oculta das cavernas e atravessou o véu das Constelações Silenciosas, surgindo no penhasco onde a luz dourada do pôr do sol parecia não tocar por completo.
Elios já a esperava. Seu rosto se iluminou ao vê-la, mas manteve-se em silêncio. Era uma nova regra que criaram entre eles: sem vozes até se certificarem de que estavam a sós. Nayla fez um gesto com a mão - dois toques no ombro, um no peito. "Sem cauda, sem vigia." Elios respondeu com o mesmo padrão. Estavam seguros.
- Achei que não viria - sussurrou ele, finalmente.
- Quase não vim. Minha mãe parece sentir o que estou pensando antes mesmo de eu pensar.
- Meu pai agora me acorda antes do nascer do sol. Disse que "o futuro não dorme".
- E o presente morre sufocado - respondeu ela com amargura.
Sentaram-se lado a lado. O vento ali era mais denso, como se o tempo corresse mais devagar. Nayla tirou um pequeno cristal prateado do bolso e o ofereceu a ele.
- O que é? - perguntou Elios.
- Um fragmento do primeiro eclipse que presenciei. Eu estava com medo, mas me senti viva como nunca. Quero que você o tenha.
Elios segurou o cristal com reverência.
- Então aceite isso - disse ele, retirando um medalhão com uma gota de luz líquida dentro. - É um fragmento do primeiro amanhecer que me tocou. Guardei desde criança. Achei que era só bonito. Agora sei que estava esperando você.
Trocaram os objetos como votos silenciosos.
- Não podemos continuar assim para sempre - disse Nayla. - Um dia vamos falhar. Alguém vai ver. Vai ouvir.
- Então vamos ser melhores. Mais rápidos. Mais invisíveis.
- E quando não formos?
- Então fugimos.
- Fugir do céu?
- Fugir das regras.
Ela suspirou, encostando a cabeça no ombro dele.
- Às vezes, acho que estamos brincando de ser estrelas.
- Talvez estejamos sendo apenas humanos.
Mas os olhos do céu estavam se abrindo.
Elaria, a anciã lunar, encontrou indícios de deslocamento de energia nos registros celestes. Do outro lado, Altair, o solar, notou uma oscilação incomum nos padrões de brilho de Elios. Ambos levaram seus achados aos respectivos líderes.
Lunara ouviu em silêncio. Solaris franziu o cenho.
- Então é verdade - murmurou Lunara. - O sangue da noite e do dia se misturam novamente.
- E isso precisa parar - concluiu Solaris.
- Ou se repetir.
Os dois se encararam por uma fração de segundo. Nenhum dos dois diria em voz alta, mas ambos pensavam na mesma coisa: Aetherion e Selene. A tragédia do passado que manchava seus legados. Isso não se repetiria.
O cerco apertou. Nayla começou a ser acompanhada até mesmo em seus momentos de descanso. Solaris nomeou dois guardiões para seguirem Elios de longe. Ainda assim, os dois amantes achavam formas de escapar.
Uma noite, encontraram-se dentro de uma estrela moribunda, cujo brilho oscilava como um coração falhando. Sentaram-se no centro da sala de luz morna, e Nayla passou os dedos no rosto de Elios.
- Eles estão nos cercando - disse ela, a voz trêmula.
- E ainda assim, estamos aqui.
- Por quanto tempo mais?
- Até que o céu exploda ou nos aceite.
Nayla ergueu os olhos. No teto da estrela, via-se o reflexo do Éter. E então, ela teve uma ideia.
- E se criássemos nosso próprio céu?
- Como assim?
- Um espaço só nosso, entre o dia e a noite. Um lugar onde as regras não existam. Onde possamos ser apenas... nós.
Elios sorriu.
- O Limiar não é um lugar, Nayla. É um instante.
- Então vamos estendê-lo. Vamos fazer do instante... um refúgio.
Eles selaram aquele pacto com um beijo silencioso.
Os encontros tornaram-se mais curtos. Mais arriscados. Mas também mais intensos.
Numa noite de eclipse, quando os céus estavam mais propensos a permitir confusões, eles conseguiram se ver por quase duas horas inteiras. Elios contou histórias antigas da Estirpe Solar. Nayla ensinou cânticos lunares que invocavam imagens nas águas.
- Se um dia nos descobrirem... - começou Elios, mas Nayla interrompeu.
- Não. Quando nos descobrirem.
Ele sorriu, amargo.
- Então o que fazemos?
- Fugimos. Criamos o céu novo. Ou...
- Ou enfrentamos tudo. E mostramos que não somos eles. Que nosso amor é escolha, não desafio.
O tempo se esgotava. O eclipse terminava. Eles se despediram como sempre: com a sensação de que poderia ser a última vez.
Do alto de sua torre, Lunara observava a filha, que dormia sob vigilância. Solaris olhava para o horizonte, com a expressão de quem ouvia o silêncio como grito.
E ambos sabiam: o momento se aproximava.