Capítulo 2 Promessas ao Entardecer

O céu alaranjado tingia os prédios baixos da Ceilândia com tons dourados e melancólicos. Era fim de tarde, aquele momento em que o silêncio parece carregar histórias antigas, sussurradas pelos becos e esquinas. Ketlyn saía do estágio, blazer jogado no braço, salto nos pés cansados e a cabeça cheia de processos e emoções mal resolvidas.

Desde aquele encontro com Enzo, há três semanas, ela andava inquieta. Dormia pouco, sonhava muito. Às vezes, acordava com o nome dele nos lábios e se odiava por isso. Tentava se convencer de que não passava de nostalgia, de lembranças da infância... mas no fundo, sabia que era muito mais.

Enzo era presença. Mesmo quando ausente, ele invadia. O cheiro, o olhar, a voz grave dizendo "você é meu ponto fraco"... tudo nela se estremecia só de lembrar.

Mas ela era racional. Lutava contra aquele sentimento como se fosse um vício - e, de certa forma, era.

Ketlyn tinha combinado de encontrar Victor, o cara da faculdade com quem estava tentando engatar algo. Bonito, educado, filho de juiz. Era o tipo de homem que sua mãe sonhava que ela namorasse. O tipo de homem que combinava com uma futura advogada criminal.

Mas não era o tipo que fazia seu coração disparar.

- Oi, Ket! - Victor acenou ao vê-la chegando no barzinho sofisticado do centro de Taguatinga. Ele se levantou, puxou a cadeira, beijou seu rosto. Tudo certinho demais.

- Oi, Vi. Desculpe o atraso, o trânsito estava infernal - ela disse, sentando-se e forçando um sorriso.

- Tá linda. Como sempre.

Ela sorriu de leve. Era simpático, era gentil. Mas não era Enzo.

Conversaram sobre faculdade, sobre o estágio, sobre um possível concurso. Victor falava bastante, como se tivesse ensaiado um roteiro. Ketlyn tentava se manter interessada, mas os olhos sempre escapavam pro celular. E o coração parecia querer estar em outro lugar.

No meio da conversa, Victor ficou sério de repente.

- Ket, eu... preciso te falar uma coisa.

Ela o encarou, surpresa.

- Aconteceu algo?

Ele respirou fundo, ajeitando a manga da camisa social.

- A gente precisa parar de se ver.

Ketlyn piscou, confusa.

- Como assim?

- É que... olha, você é incrível. Mas... esse cara, Enzo... ele me procurou. Disse que se eu continuasse me aproximando de você, ia me arrepender.

Ela gelou.

- Ele fez o quê?

- Disse com todas as letras que você é "problema dele". Que não vai aceitar outro homem do seu lado.

Ketlyn sentiu o sangue ferver. Apertou os punhos sobre a mesa, tentando conter a raiva.

- E você... simplesmente obedeceu?

Victor baixou o olhar.

- Ket, o cara é perigoso. Você sabe disso. Eu não sou covarde, mas também não sou idiota. Ele não é só um cara qualquer. Ele é o Enzo da Ceilândia. Eu não vou me meter com isso.

Ela se levantou bruscamente, pegando a bolsa.

- Você tá certo numa coisa, Victor: eu sou incrível. E não preciso de homem frouxo que se assusta com sombra.

Virou as costas e saiu, o salto batendo no asfalto como martelo de justiça.

Ela chegou em casa bufando, jogou a bolsa no sofá e foi direto pro quarto. Trocou a roupa, tirou a maquiagem no espelho, e encarou o próprio reflexo. As mãos tremiam de raiva. Raiva dele.

- Filho da puta... - sussurrou.

Pegou o celular. Sabia que tinha o número dele - nunca tinha apagado. Com o coração acelerado, mandou a mensagem:

"A gente precisa conversar. Amanhã. 18h. No telhado de casa."

Não esperou resposta. Jogou o celular na cama e se trancou no banheiro, onde a água quente disfarçou as lágrimas que insistiam em cair.

No outro dia, pontualmente às 18h, Enzo já estava lá. Sentado no telhado, cigarro apagado no canto da boca, camisa branca dobrada nos cotovelos, cabelo milimetricamente arrumado. O céu estava rosado, e o vento soprava as lembranças da infância.

Ketlyn subiu com passos firmes. O mesmo telhado. O mesmo lugar onde fizeram promessas de criança. Agora, dois adultos marcados pela vida e por escolhas diferentes.

- Tô aqui - ela disse, séria.

Ele se levantou devagar, como se cada movimento fosse ensaiado.

- Achei que não viesse.

- Você mandou o Victor terminar comigo?

Ele a encarou. Silêncio por um segundo. Então respondeu, sem desviar:

- Mandei.

Ela se aproximou, olhos faiscando.

- Você acha que tem o direito de controlar minha vida?

- Não. Mas acho que ninguém mais vai te amar como eu.

- Amor? Isso não é amor, Enzo. Isso é posse. É controle.

- Eu só... não quero ver outro homem tocando o que é meu sonho desde moleque.

- Eu não sou tua.

- Ainda não.

Ela bufou, se afastando, olhando pro céu, como se estivesse buscando paciência.

- Por que, Enzo? Por que você não muda? Por que não sai dessa vida? Você é inteligente, tem dinheiro. Dá pra começar de novo!

Ele se aproximou pelas costas, com a voz baixa e rouca:

- Porque sair não é simples. Eu carrego o nome do meu pai. Tenho gente que depende de mim. E sair pode me matar.

Ela se virou pra ele, agora com lágrimas nos olhos.

- E eu? Não conta? Eu também tô morrendo... cada vez que lembro do que você se tornou. Eu te amo, Enzo. Mas eu odeio o mundo que te abraça. Eu não consigo te amar ali dentro.

Ele tocou o rosto dela com delicadeza, polegar limpando a lágrima.

- Eu vou sair.

Ela congelou.

- O quê?

- Eu vou sair. Não agora. Mas vou. Por você. Por nós. E se eu tiver que morrer tentando... que seja.

Ela o abraçou. Forte. Como se aquele momento pudesse salvá-los.

E talvez... pudesse mesmo.

O abraço no telhado parecia segurar anos de mágoas, desejos e promessas caladas. Enzo enlaçou Ketlyn com firmeza, como se, finalmente, estivesse onde sempre quis. Ela encostou o rosto no peito dele, sentindo o coração bater forte. Forte como o dela. Como se dissessem um ao outro, sem palavras: ainda estamos aqui.

- Você fala sério? - ela sussurrou. - Sair do comando... de verdade?

Ele passou a mão nos cabelos dela, lentamente.

- Pela primeira vez na vida, Ket... eu tô com medo. Mas é de te perder. E isso, pra mim, é mais perigoso do que qualquer guerra de facção.

Ela se afastou um pouco, encarando-o. Os olhos estavam marejados, mas firmes.

- Você sabe o que vai enfrentar, né?

- Sei. Vai ser como descer do trono e virar alvo. Mas eu tenho planos. Já tô preparando terreno. Tenho um amigo leal, o Bira. Ele é cria da favela, mas pensa grande. Vai assumir o comando quando eu sair. Já deixei claro: sem usar, sem matar à toa. Ele é bruto, mas tem honra.

- E você?

- Eu já comecei a comprar imóveis. Uns apartamentos pequenos, casas de aluguel. Tudo no nome de laranja por enquanto. Mas depois vou legalizar tudo. Quero abrir uma empresa de aluguel de luxo. Tô estudando sozinho, no meu tempo. Ninguém sabe. Só você agora.

Ketlyn sorriu de leve. Era um sorriso sofrido, cheio de dúvida... mas com uma centelha de esperança.

- Você me surpreende.

- Ainda bem. Tô tentando deixar de ser o pesadelo... pra ser teu sonho.

Ela baixou os olhos, riu sem querer.

- Brega.

- Mas te molha, né?

- Idiota! - ela bateu no peito dele com a mão aberta, mas não resistiu: o beijo veio.

E então ele a beijou.

Não foi um beijo leve. Não foi um beijo de despedida.

Foi um beijo de quem ama até doer.

A boca dele tomou a dela com fome, com sede, com uma urgência crua. As línguas se encontraram com raiva e ternura ao mesmo tempo. Ele mordeu o lábio inferior dela, como se quisesse marcar, deixar sua presença ali. Os dedos se embrenharam nos fios ruivos de Ketlyn enquanto ela gemia contra a boca dele.

Ketlyn agarrou a camisa dele com força, os olhos fechados, o corpo todo em chamas. O beijo era uma promessa. Uma rendição. Um grito calado.

Quando ele se afastou, ofegante, os lábios dela estavam inchados, vermelhos e trêmulos. Os olhos marejados.

- Você tem noção do quanto me deixa louco? - ele sussurrou contra a boca dela, entre beijos.

- Não mais do que você me tira do sério - ela respondeu, arfando, com as pernas trêmulas.

Ele a encostou na parede do tanque velho do telhado, as mãos subindo por dentro da blusa dela. Os beijos agora eram mais famintos, como se o tempo inteiro estivessem esperando por isso. Mas Ketlyn puxou o ar de repente, empurrando-o com suavidade.

- Ainda não.

Enzo respirou fundo, tentando controlar o desejo que o dominava.

- Tá bom. Eu espero. Mas quando for acontecer... eu não vou ter piedade.

Ela mordeu o lábio, desviando o olhar com um sorriso envergonhado.

- Você ainda vai me deixar maluca.

- Já deixou, doutora.

Nos dias que se seguiram, algo mudou. Ketlyn sentia mais leveza, apesar do caos da rotina. Ela ainda não contava a ninguém sobre Enzo - aquilo era só deles, um segredo perigoso guardado entre beijos e promessas.

Enquanto isso, Enzo começava a preparar sua saída. Reuniões discretas com Bira, fechamento de contas, recuos estratégicos. O mundo do crime não perdoava a fraqueza, e ele sabia disso. Mas o coração dele, tinha uma dona - e ele não permitiria que o amor que o salvava também o matasse.

Numa tarde chuvosa, Ketlyn recebeu uma ligação inesperada.

- Doutora Ketlyn? Aqui é o delegado Paulo Rios. Precisamos da senhora pra defender um rapaz que está sendo acusado de tráfico. Diz que é inocente. E... foi o Enzo que indicou seu nome.

- O quê?

- Ele falou que a senhora é a única que pode livrar o menino. Disse que confia na sua justiça.

Ketlyn ficou muda por alguns segundos. O coração disparado.

- Eu aceito o caso - disse, enfim. - Manda o processo pra mim.

Quando desligou, olhou pela janela e sussurrou:

- Você tá mesmo tentando... né?

E o coração dela, pela primeira vez, quis acreditar.

            
            

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