Capítulo 3 Entre Facas e Beijos

As noites na Ceilândia carregavam segredos. Era ali, no escuro entre vielas e o som distante de tiros e funk, que os monstros saíam para caçar. Enzo conhecia esse mundo como a palma da mão. Sabia quem devia, quem matava, quem traía. E, mais do que isso, sabia que sair daquele trono de ferro e sangue não seria fácil.

Naquela madrugada, ele se encontrava com Bira numa quadra abandonada, longe dos olhares curiosos. O clima estava tenso, o ar, pesado. Bira tragava um cigarro com calma, enquanto Enzo mantinha as mãos nos bolsos da jaqueta.

- Tá mesmo decidido, irmão? - Bira perguntou, quebrando o silêncio.

- Tô. Já dei minha palavra. E tu vai ficar no meu lugar.

- Eu assumo. Mas tu sabe que tem gente que não vai gostar. O Cebola, por exemplo... já tá se mexendo.

Enzo soltou um sorriso de canto.

- Cebola que se cuide. Quem tentar atrapalhar minha saída vai cair antes de me ver partir.

- E a mina? A doutora?

- É por ela. Se fosse por mim, eu morria aqui. Mas com ela... eu quero viver.

Bira assentiu, respeitoso. A favela via Enzo como rei, mas ali, entre os dois, ele era só um homem tentando ser digno do amor da mulher que nunca deixou de amar.

Enquanto isso, Ketlyn estudava o processo que Enzo havia mandado. Um rapaz de 19 anos, pego com cocaína no porta-luvas do carro. Mas havia inconsistências, e ela sabia reconhecer um flagrante forjado. O garoto era inocente. E Enzo, ao confiar a ela aquele caso, mostrava que estava tentando mudar seu legado.

No entanto, naquela mesma noite, Ketlyn não dormiu. Não por causa do processo, mas porque algo dentro dela dizia que o perigo estava mais próximo do que imaginava.

Dois dias depois, enquanto voltava do fórum, ela foi surpreendida por um homem encapuzado. O susto foi tão rápido que ela só conseguiu gritar quando ele puxou seu braço e encostou algo frio em sua cintura.

- Fica quietinha, doutora... ou vai voar sangue bonito nesse terninho caro.

Ela congelou. Sentiu o cheiro de álcool no hálito dele e o som abafado de passos ao redor.

- O recado tá dado. Se continuar se metendo com o Enzo... a próxima vez não vai ser só ameaça.

Ele soltou o braço dela e correu. Ketlyn ficou ali, trêmula, o coração batendo como um tambor.

Ela sabia que isso poderia acontecer.

Mais tarde, na mansão de Enzo, ela entrou furiosa. Ele estava no escritório, sem camisa, contando dinheiro. Ao vê-la, levantou na mesma hora.

- Ket? Que cara é essa?

- Fui ameaçada! - ela gritou. - Um desgraçado encapuzado me segurou na rua e disse que era por sua causa!

- QUÊ?! - ele avançou, os olhos pegando fogo. - Quem foi?

- Eu não vi o rosto, Enzo! Mas eu sei que tem dedo do seu mundo podre nisso!

Ele chutou a cadeira com força, jogando tudo longe.

- Eu devia ter matado aquele filho da puta do Cebola quando tive chance...

- Como você sabe que foi ele?

- Porque ontem à noite o Bira me disse que ele tava se mexendo, questionando minha saída. E hoje você aparece ameaçada? Isso tem dedo dele. Eu conheço o jeito do Cebola. Ele é covarde assim.

- E eu? E se ele tivesse feito algo comigo? Você ia me vingar? Isso não ia me trazer de volta!

Ele respirava fundo, tentando não perder o controle. Mas os olhos diziam tudo: ele estava enlouquecido de preocupação.

- Eu juro por tudo que é sagrado, Ket... se encostarem um dedo em você de novo, eu acabo com cada um.

- Eu não quero promessas de morte, Enzo! Eu quero você vivo. Longe dessa merda toda!

Ela se aproximou, batendo no peito dele com força, lágrimas escorrendo.

- Eu tô com medo, porra! Medo de te amar e te perder! Medo de me perder nesse amor...

Ele a segurou com firmeza e, com a voz baixa, disse:

- Olha pra mim... tem certeza do que você quer? Porque se eu começar, eu não vou conseguir parar.

Ela assentiu, o olhar úmido, mas decidido.

- Então se prepare, porque agora você é minha. Toda minha.

O beijo veio quente, urgente, selvagem. Ela tentou resistir, mas o desejo venceu. As mãos dele exploravam seu corpo como quem já sabia o caminho. Ela gemeu entre os beijos, jogando a bolsa no chão. As roupas foram saindo, peça por peça, até ela estar sentada no colo dele, no sofá do escritório, a respiração entrecortada.

- Me promete... - ela sussurrou, com os olhos cravados nos dele - Me promete que vai sair dessa vida?

- Eu já saí, Ket... só falta avisar o mundo.

E naquele momento, entre beijos e promessas, entre facas e perigo, o amor deles começava a se tornar mais forte que o medo.

🪁

No matagal aos fundos da cidade, onde o breu era mais espesso que a noite, dois homens arrastavam o corpo desacordado de Cebola. Bira e outro comparsa obedeciam a ordem de Enzo: sumir com ele. Sem piedade, jogaram-no entre os arbustos, como se fosse mais um corpo descartado pelo sistema que jamais notaria sua ausência.

- Aqui é longe o suficiente - murmurou Bira, limpando o suor da testa.

- E se ele acordar? - perguntou o outro, olhando por cima do ombro.

- Não vai. Mas se acordar... que o mato acabe o serviço.

Os dois viraram as costas, deixando o homem à própria sorte. Mas o que eles não viram foi o leve movimento nos dedos de Cebola, o franzir fraco do rosto. Ainda respirava. Fraco, mas vivo. E quando a primeira gota de chuva caiu sobre seu rosto, ele soube: a guerra ainda não tinha acabado. Ele escaparia. E voltaria. Nem que fosse a última coisa que fizesse.

🪁

Enquanto isso, em um apartamento simples mas aconchegante, Ketlyn dormia serena nos braços de Enzo. Pela primeira vez em anos, ele sentia paz. Mas também medo. O medo de que aquela calmaria fosse a última antes da tempestade.

- Acha que vão deixar você sair fácil assim?

- ela sussurrou, olhos ainda fechados.

Enzo afagou seus cabelos com delicadeza.

- Ninguém me deixa sair. Eu é que vou sair quebrando tudo, se for preciso. Mas eu vou.

Ela o fitou, séria.

- Promete que não vai mais trazer mulher nenhuma aqui? Nem meias, nem perfume barato, nem mensagem escondida?

Ele sorriu, encostando a testa na dela.

- Eu já tirei até tua foto da gaveta pra colocar na estante. Aqui só vai ter você. Só você, doutora.

Ela riu baixinho, mas as palavras ficaram cravadas em sua alma. Aquele homem era fogo. Mas com ela... ele parecia querer ser brasa e lar.

🪁

Na favela, entretanto, o clima era outro. Um rádio chiava em volume baixo numa barbearia de esquina, onde homens trocavam informações como quem joga xadrez em silêncio. O nome de Enzo corria solto, e as bocas miúdas espalhavam a notícia como pólvora.

- Dizem que ele vai sair mesmo... largar tudo pela advogada.

- Isso é burrice. Ninguém sai de um trono sem pagar o preço.

Mas alguém ouvia com mais atenção. O verdadeiro chefe por trás de Cebola - conhecido apenas como Tigre - já estava ciente da movimentação. Não era homem de aparecer. Preferia agir pelas sombras. E já havia mandado o recado:

- Se Enzo sair, alguém assume. Mas não vai ser o tal do Bira.

No fundo da sala onde Tigre comandava, cercado de drogas e armas, ele acendeu um charuto e encarou um dos seus soldados:

- Descubra onde tá o Cebola. Se tiver vivo... manda trazer. Eu tenho um plano.

O soldado assentiu, saindo às pressas.

Tigre tragou fundo e sorriu com os dentes amarelados:

- Amor é bonito... mas também é a fraqueza mais fácil de explorar.

🪁

Dias depois, Ketlyn voltava do trabalho quando sentiu algo estranho. Um carro a seguia. Ela apertou o passo, o coração acelerado. Entrou no prédio e trancou a porta com mais força do que o normal.

Ligou imediatamente para Enzo.

- Tem certeza que tá tudo sob controle? - perguntou, nervosa.

Do outro lado da linha, Enzo já estava em alerta.

- Aconteceu alguma coisa?

- Um carro preto me seguiu. Não consegui ver a placa.

Ele fechou os olhos com raiva contida.

- Ket, escuta. A partir de agora, você não anda mais sozinha. Vou mandar o Darlan te buscar todo dia. E fica ligada. Tá me ouvindo?

- Você prometeu que ia sair disso.

- E eu vou. Mas antes, preciso apagar umas pontas soltas. Por nós.

Ketlyn sentia o medo voltar a crescer. Porque quando Enzo dizia que ia apagar algo, significava sangue. E ela sabia: o amor deles estava nascendo no meio de um campo minado.

No final daquela semana, a cidade parecia respirar tensão. A Ceilândia estava em silêncio - o tipo de silêncio que precede tempestades. E no coração do caos, dois amantes tentavam construir algo com base em promessas e esperanças.

Mas o inimigo se reerguia. E dessa vez, vinha com sede de vingança.

                         

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