Capítulo 4 A conversa das amigas

Capítulo 4

Conversa das Amigas

O sol estava a pino sobre Balneário Camboriú, o brilho intenso refletia nas fachadas espelhadas dos arranha-céus como milhares de diamantes cintilantes. O céu, de um azul quase irreal, estendia-se sem uma única nuvem, prometendo mais um dia de calor escaldante na cidade litorânea que nunca parecia desacelerar.

No vigésimo andar do edifício Infinity Coast, o Terraza Rooftop Bar fervilhava com a energia típica da hora do almoço. Executivos de ternos caros, turistas abastados e a elite local misturavam-se em um balé social cuidadosamente coreografado. A música ambiente, uma mistura sofisticada de bossa nova e jazz contemporâneo, criava uma atmosfera elegante sem impedir as conversas que fluíam entre as mesas estrategicamente posicionadas para oferecer a melhor vista possível.

Garçons em uniformes impecáveis deslizavam entre os clientes com bandejas de drinques coloridos e pratos artisticamente montados. O aroma de frutos do mar frescos e ervas finas pairava no ar, misturando-se com o perfume caro das mulheres e a brisa marinha que ocasionalmente soprava, oferecendo um alívio momentâneo do calor.

Ana Bezerra ajeitou-se na cadeira de design moderno, sentindo o vento suave da brisa marinha que soprava do oceano. Seus dedos tamborilavam nervosamente na mesa, um hábito que surgiu durante seus anos de faculdade e que nunca conseguiu abandonar completamente. Dali, a vista era de tirar o fôlego: o mar se estendia até o horizonte em um degradê de azuis profundos, enquanto a orla da praia central formava uma curva perfeita, pontilhada por guarda-sóis coloridos e corpos bronzeados que pareciam minúsculos daquela altura.

Vestindo um blazer branco impecável sobre uma blusa de seda azul-marinho, Ana parecia cansada, mas mantinha a postura ereta, quase defensiva – uma postura que havia aperfeiçoado ao longo dos anos para esconder qualquer sinal de vulnerabilidade. O tecido fino do blazer, escolhido cuidadosamente naquela manhã, agora parecia pesado demais para o calor do meio-dia, mas Ana jamais admitiria o desconforto. Aparências eram importantes, especialmente em lugares como este, onde olhares avaliadores pareciam estar por toda parte.

Seus cabelos castanhos, normalmente presos em um coque profissional, estavam soltos hoje, caindo em ondas suaves sobre os ombros – uma pequena rebeldia, uma concessão rara à informalidade. Seus olhos, de um castanho intenso que podia parecer quase dourado sob a luz certa, refletiam uma mistura de orgulho, preocupação e algo mais – uma inquietação que ela tentava disfarçar com pequenos goles do vinho tinto que girava distraidamente na taça de cristal.

O líquido rubi dançava hipnoticamente contra o vidro, capturando e refratando a luz do sol. Ana observava o movimento, como se pudesse encontrar respostas nas profundezas carmesins da bebida. O vinho era caro, um Merlot premiado que custava mais do que ela normalmente gastaria, mas hoje parecia necessário, um pequeno luxo para amortecer a conversa difícil que sabia estar por vir.

- Ele podia ter morrido, Bi - disse ela, quebrando um breve silêncio que havia se instalado entre as duas, sua voz carregando um tremor quase imperceptível. - Você tinha que ver o estado dele. Assim que ele me contou do ocorrido fui tomar conta dele. As mãos todas cortadas, cheirando a fumaça...

Ela fez uma pausa, revivendo a memória: assim que Ana chegou no apartamento, Rafael estava sentado em seu sofá, o rosto manchado de fuligem, os olhos ainda arregalados pela adrenalina, as mãos tremendo levemente – não de medo, mas de excitação. Como uma criança que acabara de fazer algo proibido e emocionante.

Bianca Becker, sentada à sua frente, observava a amiga com atenção, seus olhos perscrutadores não perdendo nenhum detalhe da linguagem corporal de Ana. Diferente de Ana, Bianca tinha uma presença mais relaxada, mais aberta, como se estivesse perfeitamente confortável em sua própria pele. Não havia nela aquela necessidade constante de provar algo, aquela fome de reconhecimento que Ana carregava como uma segunda sombra.

Seus cabelos lisos, de um castanho bem claro com mechas douradas estrategicamente posicionadas, emolduravam um rosto de traços delicados e olhos expressivos que raramente escondiam o que ela estava pensando – uma transparência que tanto fascinava quanto irritava Ana. Também usava um blazer sobre uma blusa verde-água, as mangas dobradas revelando alguns braceletes coloridos, com um ar bem fashion, misturando uma postura de mulher com um toque de menina. Era o tipo de estilo que parecia casual, mas que Ana sabia exigir um esforço considerável para ser alcançado – Bianca tomou um pequeno gole de sua taça - tanto ela como Ana estariam de plantão mais tarde e, ao contrário de Ana, era muito raro que ela bebesse qualquer bebida alcoólica antes do trabalho, mas hoje ela abriria um precedente.

- E mesmo assim você não parece exatamente orgulhosa dele - observou Bianca, inclinando-se ligeiramente para frente, os cotovelos apoiados na mesa de madeira escura, os braceletes tilintando suavemente com o movimento. Sua voz carregava uma nota de desaprovação que não passou despercebida por Ana, um julgamento velado que fez o estômago de Ana se contrair defensivamente.

Ana suspirou, girando a taça entre os dedos, observando o movimento hipnótico do vinho. A luz do sol atravessava o líquido, projetando sombras avermelhadas na toalha branca da mesa.

- Claro que estou orgulhosa. Quem não estaria? - Ela fez uma pausa, mordendo levemente o lábio inferior, um gesto que traía sua insegurança. - Mas também estou preocupada. Rafael sempre foi impulsivo. Ele nem pensou nas consequências. E se o carro tivesse explodido com ele dentro?

As palavras saíram mais amargas do que pretendia, carregadas de uma emoção que ela não conseguia nomear completamente. Era medo, sim, mas havia algo mais – algo que se recusava a examinar muito de perto.

Bianca tomou outro gole de sua taça, dessa vez mais demorado, um sauvignon blanc gelado que contrastava com o merlot de Ana – assim como suas personalidades frequentemente contrastavam, complementando-se. O gelo tilintou contra o vidro, uma nota musical cristalina que se perdeu no burburinho do restaurante.

- Isso se chama coragem, Ana - respondeu ela, colocando a taça de volta na mesa com um movimento decidido, o vidro encontrando a madeira com um som suave mas definitivo. - Não é impulsividade. É fazer o que é certo, mesmo quando é difícil ou perigoso.

Havia uma convicção em sua voz, uma certeza moral que Ana simultaneamente invejava e ressentia. Para Bianca, o mundo parecia dividido em categorias claras: certo e errado, bom e mau, verdadeiro e falso. Ana, por outro lado, vivia nas nuances, nos tons de cinza, nas complexidades que tornavam cada decisão um labirinto de possibilidades e consequências.

Ana desviou o olhar para a vista panorâmica. Havia algo naquela paisagem que sempre a fazia sentir-se pequena e, ao mesmo tempo, cheia de possibilidades não realizadas. Os arranha-céus, imponentes e majestosos, pareciam simbolizar tudo o que ela ainda não havia conquistado, tudo o que temia nunca alcançar.

- Agora ele é o metidão a super-herói, Bi! - exclamou Ana, voltando a encarar a amiga, uma nota de frustração escapando em sua voz, mais alta do que pretendia. Algumas cabeças nas mesas próximas viraram-se momentaneamente em sua direção, fazendo-a encolher-se internamente. - O carro explodiu, por pouco ele não morre. Se ele pelo menos conhecesse o cara... Era um ricaço, o carro que ele estava era aqueles que as portas quando abrem sobem...

Ela fez um gesto vago com as mãos, tentando ilustrar as portas tipo tesoura de um carro esportivo de luxo, sentindo-se imediatamente tola pela demonstração. Havia algo em seu tom que ia além da preocupação – uma espécie de ressentimento, talvez até inveja, que ela mesma não parecia totalmente consciente, mas que pairava entre suas palavras como um perfume sutil mas inconfundível.

Bianca estreitou os olhos, estudando o rosto da amiga com uma intensidade que fez Ana se remexer desconfortavelmente na cadeira. Era aquele olhar – o olhar que dizia que Bianca estava vendo além das palavras, além da fachada cuidadosamente construída, direto para o coração da questão. O barulho das conversas ao redor parecia aumentar, preenchendo o silêncio momentâneo entre elas, risadas ocasionais e o tilintar de talheres formando uma tapeçaria sonora que contrastava com a tensão crescente na mesa.

- Amiga, desculpa, mas tu não conhece o Rafael - disse Bianca finalmente, sua voz mais baixa, mas carregada de uma firmeza incomum. Normalmente, Bianca era a primeira a concordar com Ana, a oferecer apoio incondicional, a ser o eco que Ana frequentemente precisava. Mas hoje havia algo diferente em seus olhos, uma determinação que surpreendeu Ana, como se uma linha invisível tivesse sido cruzada. - Isso faz parte dos ideais dele. Acho que é implicância sua com ele.

As palavras atingiram Ana como pequenas flechas, precisas e dolorosas. Ela sentiu o calor subir pelo pescoço, colorindo suas bochechas com um rubor que esperava poder atribuir ao vinho, caso Bianca notasse.

Ana abriu a boca para protestar, para defender-se, para negar a acusação, mas Bianca ergueu uma mão, silenciando-a com um gesto que, em qualquer outro momento, Ana teria considerado condescendente e irritante. Hoje, porém, havia algo na expressão de Bianca – uma mistura de preocupação genuína e determinação – que a fez engolir as palavras de protesto.

- O Rafael é esforçado, te trata bem - continuou Bianca, contando nos dedos como se enumerasse virtudes que Ana estava deliberadamente ignorando, cada dedo erguido como uma acusação silenciosa. - E agora, vai que esse empresário ricaço dê uma chance pra ele ser o que sempre quis ser? Vai que isso seja o universo conspirando em favor dele?

A menção ao "universo conspirando" quase arrancou um sorriso irônico de Ana. Era tão típico de Bianca, com sua crença em energia positiva, manifestações e destino. Ana, pragmática até a medula, sempre teve dificuldade em compreender essa faceta da amiga. Mas hoje, as palavras carregavam um peso diferente, uma verdade incômoda que ela não estava pronta para enfrentar.

Um garçom passou por elas, alto e elegante em seu uniforme preto e branco, perguntando se desejavam mais alguma coisa. Ana pediu outra taça de vinho quase automaticamente, ignorando o olhar brevemente preocupado de Bianca. Ela precisava do álcool agora, precisava da névoa reconfortante que ele proporcionava, do leve entorpecimento que tornava conversas como esta um pouco mais suportáveis.

Bianca recusou com um aceno de cabeça, seus olhos nunca deixando o rosto de Ana, como se tentasse decifrar um quebra-cabeça particularmente complexo. Quando ficaram sozinhas novamente, o silêncio entre elas parecia mais pesado, carregado de verdades não ditas, de perguntas não formuladas, de respostas que ambas temiam.

Ana abaixou os olhos para a mesa, traçando padrões invisíveis na madeira com a ponta do dedo, sentindo a textura suave sob a pele. Havia orgulho ali, certamente – orgulho ferido, orgulho defensivo. Mas também havia algo mais profundo – um medo que ela mal conseguia admitir para si mesma, quanto mais para Bianca. O medo de que talvez, apenas talvez, ela não fosse suficiente. Não para Rafael, não para si mesma, não para os sonhos que havia nutrido desde a infância.

- Bi, acho que estou cansada do Rafael - confessou ela finalmente, sua voz quase um sussurro, como se as palavras fossem perigosas demais para serem ditas em voz alta. Ela não olhou para Bianca enquanto falava, não podia enfrentar o julgamento que sabia que encontraria. - Sei lá, acho que posso conseguir coisa melhor. Sei que ele é bom comigo, que me trata bem, mas o tempo está passando, e fica tudo na mesma...

As luzes do bar pareceram diminuir por um momento, ou talvez fosse apenas a expressão de Bianca que escureceu, uma sombra passando por seu rosto como uma nuvem passageira em um dia ensolarado. O garçom voltou com a segunda taça de vinho, colocando-a silenciosamente na frente de Ana antes de se afastar, sentindo intuitivamente a tensão na mesa e optando por não interromper mais do que o necessário.

Ana observou o vinho recém-servido, o líquido ainda agitado pelo movimento, formando pequenas ondas contra o cristal. Como sua vida – aparentemente calma na superfície, mas turbulenta logo abaixo, prestes a transbordar a qualquer momento.

- Coisa melhor? - repetiu Bianca, a incredulidade evidente em sua voz, cada sílaba carregada de uma mistura de surpresa e desaprovação que fez Ana se encolher internamente. - O que seria "coisa melhor", Ana? Um cara mais rico? Mais bonito? Com um carro melhor?

Havia uma dureza nas palavras de Bianca que Ana raramente ouvia. Bianca, sempre a pacificadora, a que via o melhor nas pessoas, a que oferecia segundas chances e benefícios da dúvida. Vê-la assim, os olhos brilhando com uma mistura de decepção e algo próximo à raiva, era desconcertante.

Ana sentiu o rosto esquentar, parte pela vergonha, parte pela irritação de ter seus pensamentos mais íntimos expostos tão cruamente, como se fossem algo sujo, algo indigno. Ela tomou um gole grande do vinho, buscando coragem líquida.

- Não é isso - defendeu-se ela, embora sua voz faltasse convicção, soando fraca até para seus próprios ouvidos. As palavras pareciam ocas, ensaiadas, como linhas de um roteiro que ela não acreditava realmente. - É só que... eu também tenho sonhos, sabe? Quero viajar, conhecer lugares, ter uma vida confortável. O Rafael... ele sempre fala em grandes planos, mas continua no mesmo emprego medíocre há anos.

Ela sabia, mesmo enquanto as palavras saíam de sua boca, que estava sendo injusta. Rafael trabalhava duro, economizava, planejava. Não era culpa dele que o mundo não oferecesse as mesmas oportunidades para todos, que algumas portas permanecessem fechadas para pessoas sem as conexões certas, sem o sobrenome certo, sem o histórico familiar certo.

Bianca recostou-se na cadeira, cruzando os braços sobre o peito em um gesto que Ana conhecia bem – era a postura que Bianca assumia quando estava prestes a dizer algo que sabia que o interlocutor não queria ouvir. Seus olhos, normalmente calorosos como chocolate derretido, agora pareciam avaliar Ana como se a visse sob uma nova luz, como se estivesse recalibrando anos de amizade com base nesta única conversa.

- Você trabalha no mesmo hospital que eu, Ana - lembrou Bianca, sua voz calma, mas firme, cada palavra cuidadosamente escolhida e entregue com precisão cirúrgica. - Ganhamos praticamente o mesmo. E o Rafael no seu trabalho que pra você é bem mais ou menos, se brincar ganha mais que nós duas juntas. Ele economiza, planeja, sonha. A hora dele vai chegar, e quando finalmente aparecer uma oportunidade real para ele, você estará aqui, duvidando dele ou apoiando-o?

A pergunta pairou no ar entre elas, pesada e inescapável. Ana tomou outro gole do vinho, sentindo o líquido descer quente por sua garganta, espalhando um calor momentâneo que não chegava a tocar o frio que se instalara em seu peito. Lá fora, o Sol começava a descer, apontando que a tarde se passava tranquila, indiferente aos dramas humanos que se desenrolavam sob sua luz dourada.

Através das janelas panorâmicas, Ana podia ver a cidade se estendendo em todas as direções – os edifícios luxuosos à beira-mar, as montanhas verdejantes ao fundo, o azul infinito do oceano. Era uma vista de tirar o fôlego, o tipo de paisagem que aparecia em cartões postais e revistas de viagem. E ainda assim, naquele momento, tudo parecia distante, como se ela estivesse observando através de um vidro embaçado.

- Rafael sempre foi... sonhador - disse Ana após um momento, sua voz mais suave agora, quase nostálgica, carregada de memórias dos primeiros dias juntos, quando os sonhos dele pareciam encantadores, inspiradores, possíveis. - Mas eu nunca achei que ele fosse pra frente. Ele é bom, mas parece preso no mesmo lugar.

Ela se lembrou de quando o conheceu, três anos atrás, em uma festa de aniversário de um amigo em comum. Rafael, com seu sorriso fácil e olhos que pareciam ver além da superfície, falando com paixão sobre seus planos, sobre como queria construir algo significativo, deixar uma marca no mundo. Na época, aquele entusiasmo a havia cativado, feito seu coração acelerar. Quando foi que começou a vê-lo como ingenuidade, como fantasia irrealizável?

Bianca inclinou-se para frente novamente, seus olhos fixos nos de Ana, sua expressão uma mistura de compaixão e desafio que fez Ana querer simultaneamente abraçá-la e afastá-la.

- Talvez o problema nunca tenha sido ele - disse Bianca, cada palavra cuidadosamente escolhida, como se estivesse pisando em um campo minado, testando o terreno antes de cada passo. Havia uma gentileza em sua voz agora, mas também uma firmeza inabalável que Ana conhecia bem demais. - Talvez o problema seja você, que é muito exigente. Já parou pra imaginar? Você vai deixar ele e não consegue coisa melhor?

As palavras pairaram no ar entre elas, pesadas como chumbo, carregadas de uma verdade que Ana não estava pronta para enfrentar. Era como se Bianca tivesse alcançado dentro de seu peito e exposto seus medos mais profundos, suas inseguranças mais bem guardadas, colocando-os sobre a mesa para que ambas pudessem ver.

Ana sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Sua respiração ficou presa por um momento, e ela percebeu que suas mãos tremiam levemente, fazendo o vinho oscilar na taça como um pequeno mar turbulento. Ela colocou a taça na mesa com cuidado excessivo, temendo derramá-la, temendo que este pequeno desastre fosse apenas o prenúncio de algo maior, mais devastador.

Ao redor delas, o bar continuava em seu ritmo normal – risos, conversas, o tilintar de copos e talheres, a música suave ao fundo. Um casal na mesa ao lado comemorava algo, as taças de champanhe erguidas em um brinde, os sorrisos brilhantes sob a luz dourada da tarde. Um grupo de executivos discutia animadamente um negócio, pastas abertas sobre a mesa, números sendo trocados com entusiasmo. A vida seguia, indiferente ao pequeno drama que se desenrolava em um canto do terraço.

Mas para Ana, tudo parecia ter sido reduzido a um zumbido distante, como se alguém tivesse diminuído o volume do mundo. As palavras de Bianca ecoavam em sua mente, despertando dúvidas e inseguranças que ela vinha tentando ignorar há meses, talvez anos. Eram como pequenas sementes plantadas em solo fértil, prontas para germinar e crescer em algo que ela não estava certa se poderia controlar.

Sem dizer uma palavra, Ana se levantou. Seus movimentos eram mecânicos, como se seu corpo estivesse operando no piloto automático, seguindo um roteiro pré-determinado enquanto sua mente ainda tentava processar a conversa, as implicações, as verdades incômodas que haviam sido expostas.

Pegou sua bolsa, uma peça cara que havia comprado em prestações e que agora parecia um símbolo de tudo o que estava errado em sua vida – a busca por status, a necessidade de aprovação externa, a sensação constante de que nada era suficiente. Deixou algumas notas sobre a mesa para cobrir sua parte da conta, notas cuidadosamente contadas naquela manhã para garantir que pudesse pagar por este pequeno luxo sem comprometer o orçamento do mês.

E então, sem olhar para trás, sem se despedir, sem oferecer explicações ou desculpas, ela saiu do bar, sentindo o peso do olhar de Bianca em suas costas como uma acusação silenciosa.

O ar da tarde a atingiu como uma onda refrescante quando ela saiu para o terraço externo do bar. Respirou fundo, tentando acalmar o turbilhão de emoções que a consumia – raiva, vergonha, confusão, medo. Lá embaixo, a cidade pulsava com vida – carros, pessoas, luzes. Vidas sendo vividas, decisões sendo tomadas, futuros sendo construídos ou destruídos a cada momento.

Ana caminhou até o elevador, pressionando o botão com mais força do que o necessário, como se pudesse canalizar toda sua frustração para aquele simples ato. O painel digital mostrou que o elevador estava no térreo, subindo lentamente. Ela teria que esperar, presa neste limbo entre a confrontação que acabara de deixar e o mundo exterior que a aguardava.

Enquanto esperava, seu celular vibrou no bolso do blazer, o zumbido suave quase imperceptível em meio ao ruído de seus próprios pensamentos tumultuados. Por um momento, ela considerou ignorá-lo – provavelmente era Bianca, tentando consertar as coisas, oferecendo desculpas ou, pior, insistindo em sua posição.

Mas a curiosidade venceu, e ela pegou o aparelho, deslizando o dedo pela tela para desbloquear. Não era Bianca. Era uma mensagem de Rafael:

"Amor, preciso te contar uma coisa incrível que aconteceu hoje. Mal posso esperar pra te contar tudo. Te amo."

Ela encarou a tela por um longo momento, um nó se formando em sua garganta, uma pressão crescente atrás dos olhos que ela se recusava a reconhecer como lágrimas iminentes. As palavras de Rafael, tão cheias de entusiasmo, de esperança, de amor, pareciam quase cruéis em sua sinceridade, em seu timing perfeito e terrível.

Por que não conseguia sentir a alegria que deveria? Por que, em vez de orgulho e excitação, sentia apenas um vago desconforto, uma sensação inquietante de que algo estava prestes a mudar de forma irreversível? Era isso que Bianca via, o que a fazia olhar para Ana com aquela mistura de decepção e pena?

O elevador chegou com um suave "ding", as portas metálicas deslizando para revelar um interior vazio, espelhado, que refletia sua imagem de volta para ela – o blazer branco agora ligeiramente amassado, o rosto corado pelo vinho e pela emoção, os olhos brilhantes com o que ela ainda se recusava a admitir serem lágrimas.

Ana entrou, pressionando o botão para o térreo com um dedo que ainda tremia ligeiramente. Enquanto as portas se fechavam, ela vislumbrou Bianca ainda sentada à mesa, observando-a com uma expressão que misturava preocupação e decepção, como se estivesse testemunhando algo triste mas inevitável, como o fim de um relacionamento ou o desmoronamento de uma ilusão longamente mantida.

As portas se fecharam completamente, cortando a conexão visual, deixando Ana sozinha com seu reflexo multiplicado infinitamente nos espelhos que revestiam o elevador. Tantas versões de si mesma, todas parecendo igualmente perdidas, igualmente confusas.

No térreo, Ana saiu rapidamente do edifício, passando pelo saguão elegante sem realmente vê-lo, sem notar os detalhes luxuosos que normalmente a fariam parar e admirar – o piso de mármore italiano, os arranjos florais elaborados, a iluminação cuidadosamente projetada para criar uma atmosfera de exclusividade e sofisticação.

Do lado de fora, o calor da tarde a envolveu novamente, menos intenso agora que o sol começava sua descida para o horizonte, mas ainda assim presente, persistente. Ela pegou seu celular novamente, abrindo o aplicativo de transporte com dedos que haviam recuperado parte de sua firmeza. Precisava ir para casa. Precisava pensar. Precisava entender por que se sentia assim, por que as palavras de Bianca a haviam atingido com tanta força, por que a mensagem entusiasmada de Rafael a deixava com um gosto amargo na boca.

Enquanto esperava pelo carro, as palavras de Bianca continuavam a ecoar em sua mente, como um mantra indesejado que se recusava a ser silenciado: "Talvez o problema nunca tenha sido ele. Talvez o problema seja você."

Era possível? Era ela o problema? Ela, que sempre se esforçara tanto, que sempre fizera tudo certo – a faculdade concluída com distinção, o emprego estável, a aparência cuidadosamente mantida, as conexões sociais cultivadas? Como poderia ser ela o problema quando passara a vida inteira tentando ser a solução, tentando ser perfeita, tentando ser suficiente?

O tempo estava passando, a vida estava passando. "O que será do meu futuro?" pensou Ana, uma sensação de pânico crescendo em seu peito, espalhando-se como tinta em água, colorindo cada pensamento com tons de ansiedade e medo. "Preciso de um homem bem-sucedido, não aguento mais essa vida mais ou menos."

Mas mesmo enquanto formulava esse pensamento, uma parte dela – pequena, quase inaudível, mas persistente – questionava: era isso mesmo que ela precisava? Ou era o que achava que deveria querer, o que havia sido condicionada a buscar, o que via celebrado em revistas e filmes e nas redes sociais que consumia vorazmente?

O Uber chegou, um modelo compacto e discreto que parecia quase humilde em meio aos carros de luxo que circulavam pela área. Ana entrou no veículo automaticamente, murmurando seu endereço para o motorista, um homem de meia-idade com olhos gentis que pareceu sentir sua perturbação e, sabiamente, optou pelo silêncio.

Precisava descansar um pouco antes do plantão vespertino no hospital – o mesmo hospital onde Bianca também trabalhava, onde teriam que fingir que esta conversa nunca aconteceu, onde teriam que manter a fachada de amizade perfeita que haviam cultivado por anos. A ideia parecia simultaneamente exaustiva e impossível.

Enquanto o carro se afastava, serpenteando pelo tráfego da tarde, Ana olhou pela janela para a cidade iluminada pelo sol poente. Os edifícios brilhavam como ouro, as janelas refletindo a luz em milhares de pontos cintilantes. Era bonito, de uma forma quase dolorosa – toda aquela beleza, todo aquele potencial, toda aquela vida acontecendo ao seu redor.

Em algum lugar lá fora, Rafael estava provavelmente celebrando o que considerava a oportunidade de sua vida. Talvez estivesse ligando para amigos, compartilhando a notícia, seu rosto iluminado por aquele sorriso que ela costumava achar tão encantador. E ela estava aqui, questionando tudo – o relacionamento deles, seus próprios desejos, o futuro que havia imaginado para si mesma.

O motorista ligou o rádio, uma música suave preenchendo o silêncio, notas melancólicas de um piano acompanhadas por uma voz feminina que cantava sobre amor perdido e segundas chances. Ana fechou os olhos, deixando que a melodia a embalasse, tentando não pensar no olhar magoado de Bianca, na mensagem entusiasmada de Rafael, nas escolhas que teria que fazer muito em breve.

O destino havia começado a mover suas peças, entrelaçando vidas de formas que ninguém poderia prever. E no centro dessa teia de conexões e possibilidades, três pessoas – Rafael, Ana e Bianca – estavam prestes a descobrir que algumas escolhas, uma vez feitas, não podem ser desfeitas. Que alguns caminhos, uma vez tomados, levam a lugares que nunca poderíamos ter imaginado. Que às vezes, é preciso perder algo – ou alguém – para entender seu verdadeiro valor.

O carro parou em um semáforo, e Ana abriu os olhos, observando um casal que caminhava de mãos dadas na calçada. Pareciam felizes, despreocupados, conectados de uma forma que ela não conseguia lembrar de ter sentido com Rafael há muito tempo. Seria possível recuperar isso? Ou era tarde demais, o dano já estava feito, as sementes da dúvida já plantadas profundamente demais para serem arrancadas?

Enquanto o carro voltava a se mover, levando-a para casa, para a solidão do seu apartamento, para as horas de reflexão antes do plantão, Ana não tinha respostas. Apenas perguntas, dúvidas, e a sensação crescente de que estava à beira de algo – um precipício, uma revelação, uma transformação. Para melhor ou pior, apenas o tempo diria.

            
            

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