Capítulo 2 Cicatrizes de Um Magnata

Cicatrizes de Um Magnata

A luz fria e impessoal do quarto de hospital infiltrava-se pelas pálpebras semicerradas de Gabriel Montenegro, forçando-o a despertar para uma realidade que parecia distante e nebulosa. O branco imaculado do teto, as paredes assépticas, o bipe rítmico e monótono dos equipamentos médicos – tudo conspirava para criar uma atmosfera de isolamento clínico que contrastava drasticamente com o mundo de luxo e poder ao qual estava acostumado.

Apesar de seu porte imponente e do nome que fazia tremer concorrentes no mercado financeiro, Gabriel Montenegro carregava mais rachaduras do que deixava transparecer. Atrás da elegância do terno sob medida e da frieza estratégica com que lidava nos negócios, havia um homem marcado por decepções profundas, traições dolorosas e uma solidão que se tornara quase uma companheira constante.

Seus olhos percorreram lentamente o quarto particular – o melhor do Hospital Costa Atlântica, naturalmente. Equipamentos médicos de última geração, mobiliário discretamente luxuoso, uma vista privilegiada da cidade através da ampla janela. Tudo o que o dinheiro podia comprar estava ali. Tudo, exceto a única coisa que, naquele momento, realmente importava: a presença de alguém que se importasse genuinamente com ele, não com sua fortuna ou com o que ele poderia oferecer.

Gabriel tentou se mover e sentiu uma pontada aguda nas costelas. O médico havia mencionado contusões, possíveis fraturas, além dos pontos na testa onde um corte profundo havia sido suturado com precisão cirúrgica. Fisicamente, ele sobreviveria. Os danos eram superficiais, nada que o tempo e os melhores cuidados médicos que o dinheiro pudesse comprar não resolveriam. Mas havia feridas mais profundas, invisíveis aos olhos dos médicos, que nenhum bisturi poderia alcançar.

Depois do acidente, ao despertar no hospital, sozinho em um quarto branco e asséptico, Gabriel encarou o teto por longos minutos. Mais do que a dor física ou os pontos na testa, o que mais o incomodava era a ausência de alguém ao seu lado. Ninguém apareceu. Nenhum parente. Nenhum amigo verdadeiro. Só advogados e assessores, que perguntavam quando ele voltaria ao trabalho, como se sua recuperação fosse apenas um inconveniente no cronograma corporativo.

O telefone ao lado da cama havia tocado incessantemente nas primeiras horas. Chamadas de executivos preocupados com projetos em andamento, de sócios ansiosos sobre o impacto do acidente nas ações da empresa, de assistentes querendo saber como reorganizar sua agenda. Ninguém perguntou como ele realmente estava se sentindo. Ninguém ofereceu simplesmente estar ali, em silêncio, como uma presença reconfortante.

Uma enfermeira entrou no quarto, verificou seus sinais vitais e ajustou o soro com eficiência profissional. Gabriel observou seus movimentos mecânicos, precisos, impessoais.

- Este é o Hospital Costa Atlântica, não é? - perguntou, sua voz mais rouca do que esperava.

A enfermeira assentiu, sem interromper sua rotina.

- Sim, senhor. O melhor da região.

Gabriel hesitou por um momento antes de fazer a pergunta que o incomodava desde que reconheceu o nome do hospital.

- A Dra. Amanda Monte... - nesse momento ele percebe o erro e corrige - Amanda Lins, ela ainda trabalha aqui?

A enfermeira parou brevemente, olhando-o com curiosidade renovada.

- A Dra. Amanda? Sim, ela é uma das nossas melhores plantonistas de clínica médica. - Houve uma pausa. - Mas ela está de férias agora. Viajando pela Europa, pelo que sei.

Gabriel assentiu, tentando manter a expressão neutra, embora sentisse um aperto no peito que nada tinha a ver com suas costelas contundidas. Amanda estava na Europa. Provavelmente nem sabia que ele estava ali, internado no hospital onde ela trabalhava. Ou sabia? Teriam informado a ela? Teria ela se importado?

- Obrigado - murmurou, virando o rosto para a janela, sinalizando o fim da conversa.

A enfermeira terminou seus procedimentos e saiu silenciosamente, deixando Gabriel novamente sozinho com seus pensamentos. Ele se perguntou se Amanda voltaria antes de sua alta, se eles se encontrariam nos corredores do hospital, que tipo de expressão ela teria ao vê-lo assim, vulnerável, ferido. Parte dele queria que ela soubesse, que viesse vê-lo, mesmo que apenas por obrigação profissional. Outra parte, talvez a mais honesta, temia esse encontro mais do que qualquer reunião de negócios, mais do que qualquer confronto corporativo.

O que ele diria a ela depois de tanto tempo? O que ela diria a ele? Haveria acusações silenciosas em seus olhos, ou apenas a indiferença profissional de um médico diante de mais um paciente?

Gabriel não sabia que, a milhares de quilômetros dali, em um café parisiense, Amanda havia recebido uma mensagem de uma colega do hospital. "Seu ex-marido sofreu um acidente. Está internado aqui. Nada grave, mas achei que deveria saber." E que, após um momento de hesitação, ela havia respondido: "Dê a ele a melhor assistência possível. Não mencione que fui informada."

Seu divórcio com Amanda, a mulher com quem compartilhou oito anos de vida, ainda latejava como uma ferida mal cicatrizada. Eles haviam se conhecido durante a inauguração de uma nova ala do hospital, financiada em parte por uma das empresas de Gabriel – ela, uma jovem médica dedicada com olhos que pareciam enxergar além das aparências; ele, já um empresário em ascensão, impressionado por encontrar alguém que parecia imune ao seu charme calculado e à sua fortuna crescente.

O início fora como um conto de fadas moderno: jantares em restaurantes estrelados, viagens de fim de semana para destinos exóticos, conversas que se estendiam até o amanhecer. Amanda o desafiava intelectualmente, o fazia rir genuinamente, o fazia sentir-se visto como homem, não apenas como um patrimônio líquido ambulante. Ela tinha uma paixão pela medicina que rivalizava com a obsessão de Gabriel pelos negócios – ambos eram dedicados, perfeccionistas, comprometidos com a excelência em seus campos.

O casamento veio naturalmente, uma cerimônia elegante mas íntima na costa italiana. Por alguns anos, Gabriel acreditou ter encontrado o equilíbrio perfeito: sucesso profissional e felicidade pessoal. Mas então, quase imperceptivelmente, algo começou a mudar.

Eles haviam se afastado lentamente, corroídos por silêncios e agendas lotadas. As noites de conversa foram substituídas por jantares silenciosos, cada um absorto em seu próprio mundo. Os fins de semana juntos tornaram-se cada vez mais raros, sacrificados no altar do sucesso profissional. Amanda queria filhos; Gabriel também, até mais que Amanda, mas parece que a infertilidade barrava o sonho dos dois. Enquanto isso ela se dedicava cada vez mais ao hospital, a pacientes que precisavam dela; ele mergulhava mais fundo no mundo dos negócios, expandindo seu império, acumulando poder e influência.

Quando a separação finalmente veio, foi limpa, quase sem brigas, até o último encontro dois dois – e talvez por isso mais dolorosa. As acusações só vieram realmente no final do relacionamento, houve apenas uma briga, após isso houve o reconhecimento mútuo e silencioso de que haviam se tornado estranhos que dividiam o mesmo teto. Amanda levou pouco mais do que lembranças e uma frustração silenciosa. Nenhum dos dois teve filhos. Ambos estavam ocupados demais construindo impérios – ela, salvando vidas em plantões exaustivos; ele, erguendo arranha-céus e dominando mercados.

Gabriel ainda se lembrava vividamente do dia em que Amanda saiu de sua vida. Ela não chorou, não implorou, simplesmente o olhou com uma mistura de tristeza e resignação e disse: "Espero que você encontre o que está procurando, Gabriel. Eu desisti de tentar adivinhar o que é."

Aquelas palavras o perseguiam até hoje, ecoando em sua mente nos momentos de solidão. O que ele estava procurando? Teria sacrificado a única chance real de felicidade em nome de... o quê, exatamente?

Houve, é verdade, aquela última cena lamentável entre eles. Um momento de fraqueza, de vulnerabilidade exposta, que nenhum dos dois gostava de lembrar. Mas isso era algo que Gabriel preferia não revisitar agora, deitado naquela cama de hospital, sentindo-se mais sozinho do que nunca.

Mas nem tudo havia ficado limpo após o divórcio. Outras feridas, talvez ainda mais profundas, haviam se formado nos anos seguintes. Um ex-funcionário próximo, alguém que Gabriel tratava como irmão, roubou milhões desviando recursos por anos em silêncio. Marcos Albuquerque, seu diretor financeiro e amigo de faculdade, o homem que havia sido seu padrinho de casamento, que conhecia todos os seus segredos, que tinha acesso irrestrito não apenas às contas da empresa, mas à sua própria vida.

A descoberta veio por acaso, durante uma auditoria de rotina. Pequenas discrepâncias que, somadas ao longo dos anos, revelaram um esquema sofisticado de desvio de recursos. Gabriel se lembrava do momento exato em que confrontou Marcos em seu escritório, esperando – talvez ingenuamente – uma negação veemente, uma explicação plausível, qualquer coisa exceto o que recebeu: um sorriso frio e as palavras que ficariam gravadas em sua memória.

"Você tornou isso tão fácil, Gabriel. Tão confiante, tão seguro de si, tão certo de que todos te admiravam... Nunca percebeu que alguns de nós apenas toleravam sua arrogância enquanto esperávamos nossa chance."

Gabriel engoliu o prejuízo e abafou o escândalo, não por Marcos, mas para proteger a reputação da empresa e evitar o impacto nas ações. Pagou para que tudo fosse silenciado, usou suas conexões para garantir que Marcos nunca mais trabalhasse no setor, mas não conseguiu comprar de volta a capacidade de confiar plenamente em alguém. A ferida permaneceu aberta, pulsante, uma lembrança constante de sua própria falibilidade.

Desde então, confiar se tornou uma escolha quase impossível. Gabriel construiu muros ao seu redor, fortalezas emocionais impenetráveis. Contratou equipes de segurança, implementou sistemas de verificação de antecedentes rigorosos para todos os funcionários, instalou câmeras e dispositivos de monitoramento em todos os seus escritórios e residências. O mundo exterior via isso como os caprichos de um homem poderoso e paranoico; poucos sabiam que era o reflexo de um coração profundamente ferido.

Nos meses seguintes, mais traições vieram, como se o universo estivesse determinado a provar que sua desconfiança era justificada. Um sócio vendeu sua parte da empresa para um grupo rival sem aviso prévio, após meses garantindo sua lealdade. Carlos Mendonça, com quem Gabriel havia construído a divisão internacional do grupo, simplesmente apareceu um dia com os papéis já assinados e um sorriso que não alcançava os olhos.

"Negócios são negócios, Gabriel. Você mais do que ninguém deveria entender isso."

Um assessor vazou documentos confidenciais para a concorrência, comprometendo uma aquisição estratégica que Gabriel planejava há anos. Renato Vieira, seu conselheiro jurídico, o homem que redigia seus contratos mais sensíveis, vendeu informações privilegiadas por uma quantia que, para Gabriel, era insignificante, mas que para Renato representava a liberdade financeira que sempre desejou.

"Você nunca entenderia, Montenegro. Você nasceu no topo. Alguns de nós precisamos criar nossas próprias oportunidades."

Um motorista, pago generosamente, foi flagrado repassando informações à imprensa sobre sua vida pessoal, seus hábitos, suas fraquezas. José Pereira, que o transportava há mais de cinco anos, que conhecia suas rotinas, seus gostos, que testemunhava seus momentos de vulnerabilidade nos trajetos solitários entre reuniões, vendeu sua privacidade por algumas manchetes sensacionalistas.

"O senhor me desculpe, Sr. Montenegro, mas eles ofereceram muito dinheiro. Tenho família para sustentar."

A paranoia se tornou parte de sua rotina – mesmo com todas as câmeras, contratos e cláusulas de confidencialidade. Gabriel passou a analisar cada palavra, cada gesto, cada olhar de todos ao seu redor, buscando sinais de traição. Tornou-se mais frio, mais calculista, mais distante. O jovem empresário carismático e acessível deu lugar a um magnata reservado e implacável.

E agora, deitado naquela cama de hospital, Gabriel se perguntava se tudo havia valido a pena. O império que construiu, as fortunas que acumulou, o poder que exercia – tudo parecia estranhamente vazio quando confrontado com a realidade de não ter ninguém ao seu lado em um momento de vulnerabilidade.

O médico que o atendia entrou no quarto para mais uma avaliação de rotina. Dr. Henrique Mendes, um homem de meia-idade com olhos cansados mas atentos, examinou os sinais vitais no monitor, verificou as anotações da enfermagem e se aproximou da cama.

- Como está se sentindo hoje, Sr. Montenegro? - perguntou com a formalidade profissional que Gabriel conhecia bem.

- Como alguém que capotou três vezes em um carro - respondeu Gabriel, com um sarcasmo que mascarava sua vulnerabilidade. - Quando poderei sair daqui?

O médico sorriu levemente, acostumado com a impaciência dos pacientes, especialmente daqueles habituados a controlar tudo ao seu redor.

- Precisamos mantê-lo em observação por pelo menos mais 48 horas. Suas contusões são sérias, e queremos ter certeza de que não há complicações internas.

Gabriel assentiu, resignado. Não tinha forças para argumentar, e parte dele, uma parte que raramente admitia existir, estava quase grata pelo descanso forçado, pela pausa em uma vida que parecia uma corrida interminável.

- O senhor teve muita sorte - continuou o médico, verificando o curativo na testa de Gabriel. - Pelo que me contaram sobre o estado do veículo, poderia ter sido muito pior.

- Sorte... - murmurou Gabriel, a palavra soando estranha em seus lábios. Sorte era algo em que ele não acreditava há muito tempo. Em seu mundo, tudo era calculado, planejado, conquistado através de estratégia e determinação. A ideia de que sua vida havia sido salva por mero acaso, por uma coincidência feliz de circunstâncias, era quase ofensiva.

- Sim, sorte - repetiu o médico, com a segurança de quem viu muitas vidas se perderem por questão de segundos ou centímetros. - E também graças ao rapaz que o tirou do carro antes que pegasse fogo.

Gabriel franziu o cenho, fragmentos de memória tentando se organizar em sua mente confusa. Lembrava-se vagamente de braços o arrastando, de uma voz desconhecida, do calor das chamas. Mas o rosto de seu salvador permanecia um borrão indistinto.

- Quem era ele? - perguntou, mais para si mesmo do que para o médico.

- Não sei os detalhes - respondeu Dr. Henrique, terminando o exame. - Mas os paramédicos mencionaram um jovem, um civil que passava pelo local. Aparentemente, ele quebrou a janela do carro e o puxou para fora segundos antes de o veículo explodir. Um verdadeiro herói anônimo.

Gabriel ficou em silêncio, absorvendo a informação. Um estranho havia arriscado a própria vida para salvá-lo. Sem conhecê-lo, sem saber quem ele era, sem expectativa de recompensa. Era um conceito quase alienígena em seu universo de transações e interesses.

- Descanse, Sr. Montenegro - disse o médico, movendo-se em direção à porta. - Seu corpo precisa se recuperar. E se me permite um conselho não médico: talvez este seja um bom momento para refletir. Às vezes, precisamos perder o controle para encontrar clareza.

Quando o médico saiu, Gabriel voltou a encarar o teto, as palavras ecoando em sua mente. Perder o controle para encontrar clareza. Era exatamente o que ele mais temia – e talvez, secretamente, o que mais precisava.

O monitor cardíaco ao lado da cama continuava seu bipe constante e rítmico, marcando não apenas os batimentos de um coração físico, mas também, simbolicamente, o possível despertar de um coração emocional há muito adormecido. Um coração que, apesar de todas as traições e decepções, ainda era capaz de sentir, de questionar, de buscar algo além do poder e do sucesso material.

Lá fora, o sol começava a se pôr sobre Balneário Camboriú, lançando tons dourados sobre os arranha-céus espelhados. Um novo dia se aproximava – e com ele, talvez, um novo capítulo na vida de Gabriel Montenegro

            
            

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