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A manhã despertava lenta na vila, banhada pela luz dourada que escorria pelas frestas das janelas de madeira, espalhando reflexos quentes sobre as paredes gastas pelo tempo. O ar estava impregnado do aroma doce e amargo do café recém passado, misturado com a brisa salgada que vinha do mar, criando uma fragrância familiar que parecia envolver cada canto daquele pequeno refúgio à beira da enseada.
André saiu cedo do quarto apertado atrás do bar, seus pés descalços tocando o chão de tábuas rangentes com a naturalidade de quem conhece cada detalhe daquela construção. Nas mãos, carregava seu violão, companheiro fiel que traduzia seus pensamentos quando as palavras faltavam.
Sentou-se no velho banco de madeira da varanda, onde a pintura já descascava e as marcas do tempo contavam histórias que ninguém mais se lembrava. Dedilhou as primeiras cordas com cuidado, produzindo uma melodia suave, quase um sussurro, que parecia flutuar no ar, buscando dialogar com o som das ondas quebrando ao longe.
O pensamento de Joaquim - o marinheiro que havia chegado com a maré da noite anterior - não lhe dava trégua. Havia algo nele, além dos músculos firmes e da cicatriz discreta que cruzava a sobrancelha esquerda. Era um mistério envolto em silêncio, uma presença que André desejava desvendar, mas com a cautela de quem sabe que nem todo segredo deve ser forçado a revelar-se.
Enquanto os dedos corriam pelas cordas, ele ouviu passos se aproximando, firmes e hesitantes. Virou o rosto para o lado e viu Joaquim caminhando pelo cais, com a farda ainda um pouco amassada e o cabelo desgrenhado pelo vento do mar. Seus olhos, embora fixos no chão, carregavam uma inquietação que contrastava com a calma do ambiente.
- Bom dia - disse André, a voz baixa, mas cheia de uma suavidade inesperada.
- Bom dia - respondeu Joaquim, sentando-se ao lado dele no banco, o corpo ainda tenso como uma corda esticada prestes a romper.
Por alguns segundos, o silêncio entre os dois era preenchido apenas pelo som das ondas e pelo canto distante de uma gaivota.
- Você toca bem - comentou Joaquim, finalmente quebrando o silêncio, a voz rouca como se tivesse guardado palavras por muito tempo.
- É meu jeito de conversar com o mundo quando tudo parece complicado demais - respondeu André, soltando um suspiro profundo. - O mar me ensinou a esperar, a aceitar a tempestade sem perder a calma.
Joaquim virou o rosto, tentando encontrar refúgio no horizonte, mas os olhos dele não conseguiam evitar a atração pelo lado de André, onde havia uma tranquilidade que ele jamais ousara buscar.
- Você tem medo? - perguntou Joaquim, a voz baixa, quase um sussurro, como se temesse que a resposta pudesse quebrar a delicada conexão entre eles.
- Medo de quê? - André sorriu, um sorriso triste, mas sincero.
- De sentir. De se deixar ser quem realmente é.
André largou o violão ao lado e virou-se para encarar Joaquim, seus olhos refletindo a coragem e a dor que compartilhavam.
- O que mais me assusta é perder quem eu sou por medo do que os outros vão pensar. Mas fugir não é resposta - disse ele, a voz firme, embora o coração acelerado denunciasse a vulnerabilidade.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de tudo o que não podia ser dito em palavras. Apenas o mar continuava seu ritmo constante, como um lembrete de que a vida seguia, mesmo diante das incertezas.
- Talvez a gente precise se permitir mais - sugeriu Joaquim, um pouco hesitante, como quem lança uma pedra num lago calmo para ver até onde as ondas vão se espalhar.
- Talvez - concordou André, sorrindo, e naquele sorriso havia uma promessa - promessa de coragem, de luta, de esperança.
Mas, naquela vila onde o vento carregava não só o sal do mar, mas também o peso do preconceito, a paz dos dois homens era frágil como vidro.
No dia seguinte, as sombras começaram a se aproximar. Joaquim sentiu o olhar pesado dos moradores, sussurros que viravam ondas pequenas, mas incômodas, que ameaçavam se tornar tempestades. Um dos seus companheiros de tripulação, Rodrigo, homem robusto e de voz grossa, o puxou para um canto do cais.
- Ei, Joaquim - disse baixinho, o sorriso estranho -. Parece que o moço do bar não é só amigo seu, né? Melhor tomar cuidado. Gente daqui não gosta dessas histórias.
Joaquim sentiu o frio subir pela espinha. Não era só o medo de ser descoberto, mas o medo pelo que poderia acontecer a André.
Ao anoitecer, André esperava no bar, o olhar perdido no mar escuro que engolia as últimas luzes do dia. Quando Joaquim chegou, foi puxado para um abraço apertado, silencioso, onde palavras eram desnecessárias.
- Não importa o que digam - murmurou Joaquim contra os cabelos do outro -, eu estou aqui. E vou ficar.
Naquele instante, entre o som do mar, o cheiro do sal e o calor dos corpos, nasceu uma resistência silenciosa, a promessa de enfrentar juntos o que viesse, mesmo que as tempestades fossem fortes demais.
Os dias que se seguiram foram marcados por um silêncio tenso, como o mar que esconde correntes perigosas sob sua superfície calma. Joaquim e André se viam com olhares que diziam mais do que palavras poderiam expressar - uma mistura de medo, desejo e esperança.
André continuava a tocar seu violão na varanda do bar, às vezes com melodias mais alegres, outras vezes com canções melancólicas que pareciam contar a história que os dois ainda não tinham coragem de dizer em voz alta. Joaquim, sempre que podia, se aproximava para ouvir, encontrando naquele som um refúgio para sua alma cansada.
Mas a vila não era feita para segredos. As portas rangiam com o vento das fofocas, e os olhares se tornavam lâminas invisíveis que perfuravam a pele. Joaquim sentia o peso dessas armas silenciosas a cada passo pelas ruas de paralelepípedos.
Certa tarde, enquanto ajudava na descarga do navio, Rodrigo se aproximou de novo, desta vez com um tom menos disfarçado.
- Vai se cuidar, marinheiro - disse, olhando fixamente para ele -. Aqui as coisas são simples: ou você segue as regras, ou some.
Joaquim engoliu em seco, sabendo que o aviso era mais do que uma ameaça. Era uma sentença.
Naquela noite, no bar, André o esperava com o rosto iluminado pela luz trêmula das velas. Quando Joaquim entrou, o ambiente pareceu se fechar em torno deles, criando um espaço onde só existia a respiração compartilhada.
- Não vamos deixar que eles ganhem - disse André, segurando sua mão com força.
- Eu quero acreditar nisso - respondeu Joaquim, os olhos marejados -, mas o medo aperta o peito.
André se aproximou, e seus lábios tocaram os de Joaquim num beijo suave, que tinha o gosto do sal e da promessa.
- O amor é o que vai nos proteger - sussurrou.
E assim, entre o som do mar e o silêncio da noite, eles encontraram um refúgio um no outro, um porto seguro para enfrentar a tempestade que se aproximava.
A noite caía devagar sobre a vila, tingindo o céu de tons rosados e púrpuras que se misturavam ao cheiro forte do sal e da madeira molhada. No pequeno quarto nos fundos do bar, André acendeu uma vela, o tremor da chama projetando sombras dançantes nas paredes gastas.
Sentado na beirada da cama, ele passou os dedos pelo violão, um gesto que era quase um ritual de acalmar a ansiedade que se acumulava dentro dele. A lembrança de Joaquim vinha como um vento morno, espalhando um misto de conforto e inquietação.
As palavras trocadas naquela manhã ainda ecoavam em sua mente - o medo, a coragem, a promessa implícita que pairava entre eles. André sabia que estava se entregando a algo maior do que ele mesmo, mas também sentia a fragilidade dessa entrega, como se a qualquer instante o mundo pudesse desabar sobre eles.
Na mesma noite, Joaquim caminhava pelo cais, os olhos fixos no mar escuro que parecia engolir as estrelas. Ele sentia o corpo pesado, como se cada passo fosse uma luta contra a correnteza invisível que tentava puxá-lo para longe de quem ele queria ser.
Lembrou-se do toque de André, da maneira como os dedos dele tinham se entrelaçado aos seus, firmes e delicados ao mesmo tempo. A sensação daquela pele contra a sua era um lembrete de que havia algo além do medo - algo que pulsava forte dentro dele, como o ritmo das ondas.
Quando entrou no quarto, encontrou André esperando, o rosto iluminado pela luz suave da vela. Sem dizer nada, Joaquim se aproximou e deixou que os dedos de André percorressem seu rosto, traçando mapas invisíveis sobre a pele.
- Às vezes, eu não sei se estou pronto para isso - confessou Joaquim, a voz carregada de dúvida.
- Nem eu - respondeu André, segurando o queixo dele para que seus olhos se encontrassem -, mas acho que não podemos fugir do que sentimos.
Eles se aproximaram lentamente, como se cada movimento fosse um teste, um pacto silencioso entre dois corações à deriva. O beijo foi suave no começo, uma confirmação delicada de que estavam ali, presentes um para o outro.
Depois, no calor do abraço, André sussurrou:
- Eu quero te conhecer. Cada medo, cada sonho, cada silêncio.
Joaquim fechou os olhos, deixando que as palavras penetrassem, uma âncora no mar revolto que era sua alma.
- E eu quero aprender a me permitir ser - murmurou.
Por um instante, o mundo lá fora desapareceu, e só restaram eles, a respiração compartilhada, o toque que acalmava as tempestades internas.
O corpo de Joaquim ainda trazia o cheiro do mar - sal, suor e a madeira úmida do navio -, e André o recebeu como se acolhesse uma parte do oceano que sempre chamava por ele. As mãos se encontraram de novo, dessa vez com mais firmeza, como se um pacto silencioso estivesse sendo selado pela pele, pelo calor compartilhado, pelos corações batendo num compasso cauteloso, mas irrefreável.
A luz da vela projetava suas sombras na parede como se quisesse registrar o instante - dois homens, dois mundos, dois corpos se descobrindo em meio ao medo.
André encostou a testa na de Joaquim e falou num sussurro que quase se confundia com o som da brisa entrando pela janela:
- Não precisa ser agora... nem tudo. Só o que você puder me dar.
Joaquim fechou os olhos. Ele não sabia o que mais o assustava: o desejo que sentia, ou a paz que vinha ao lado de André. Era como se, pela primeira vez em muito tempo, ele pudesse parar de lutar contra si mesmo. A armadura que vestira por anos, feita de silêncios, recuos e negações, começava a ceder com cada gesto gentil daquele rapaz da vila.
- Fica comigo essa noite - disse ele, quase como um pedido. - Só... fica.
André assentiu, e deitou-se ao lado dele, o braço repousando sobre seu peito. O silêncio entre os dois era cheio - de respiração, de sensação, de um cuidado mútuo que nascia como coisa rara, preciosa demais pra ser apressada.
Lá fora, a vila dormia, mas não completamente.
Vizinhos conversavam em sussurros ao redor de fogareiros. Alguns comentavam sobre o comportamento de Joaquim, outros se perguntavam por que André andava mais calado que o costume. As pequenas antenas sociais da vila estavam se erguendo, farejando algo que não sabiam nomear - apenas pressentiam. E o que não se nomeia, costuma se temer.
No bar, ainda acordado, Silvino - o dono do estabelecimento e velho conhecido da família de André - limpava copos atrás do balcão, o ouvido atento aos rumores. Era um homem de fala seca e convicções firmes, mas também de um olhar atento. Já notara as trocas de olhares. Não dizia nada, ainda. Mas sabia. E por dentro, o conflito se formava: entre proteger o jovem a quem tinha carinho e manter a ordem num lugar onde todos se vigiavam.
Na madrugada, com a vela já derretida até quase o fim, André e Joaquim permaneciam ali, juntos, sem pressa. Joaquim dormia com a cabeça no ombro de André, e este acariciava seus cabelos em silêncio, como se acalentasse um segredo recém-nascido, algo que precisava de calor para sobreviver.
"Talvez amar, pra gente, seja sempre se esconder um pouco", pensou André. "Mas talvez esconder também seja uma forma de proteger. Pelo menos por enquanto."
E com esse pensamento, os olhos dele também se fecharam.
Do lado de fora, o mar continuava a bater contra as pedras, paciente, constante - como o desejo deles, como o risco que se avizinhava.
O dia ainda não havia nascido, mas o céu já clareava em tons de cinza e azul desbotado, como se o mundo respirasse devagar antes de acordar. Dentro do quarto, o ar tinha o cheiro morno da vela que se apagou sozinha, e da pele de dois homens que se permitiram existir juntos, mesmo que apenas por algumas horas.
Joaquim acordou primeiro. Por um instante, sentiu o peso da realidade espreitando pela fresta da janela, mas não quis deixá-la entrar. O braço de André repousava sobre sua cintura, e o calor daquele toque o ancorava. Ele observou o rosto adormecido do rapaz - os cílios longos, a boca entreaberta, o traço firme do maxilar que se suavizava no sono. Havia algo de puro e corajoso ali. Algo que Joaquim temia, mas também invejava: a entrega sem máscaras.
Ele estendeu a mão e, com os dedos, traçou devagar a curva da clavícula de André, como quem escreve em silêncio uma carta que jamais seria lida. Era um gesto tímido, mas carregado de uma ternura que nem ele sabia que era capaz de oferecer.
André abriu os olhos lentamente, sonolento, mas com um pequeno sorriso no canto da boca, como se já soubesse quem estava ali - como se, de algum modo, nunca tivesse dormido por completo.
- Ainda está escuro... - murmurou.
- Eu sei - respondeu Joaquim. - Mas aqui dentro... parece claro.
Eles ficaram ali em silêncio, ouvindo o som dos próprios corações, o eco distante do mar e, ao longe, o canto dos primeiros pássaros anunciando o amanhecer. Era um momento simples, mas eterno. Um daqueles instantes que ficam guardados entre as costelas e voltam em forma de lembrança quando o mundo parece desabar.
André encostou o rosto no pescoço de Joaquim e sussurrou:
- Quando você for embora... me promete que vai lembrar disso?
Joaquim hesitou. Ainda não sabia se partiria, nem quando. Mas sabia, no fundo, que o tempo com André era como a maré: precioso, inevitavelmente passageiro, mas capaz de mudar a paisagem por onde passava.
- Prometo - disse ele, apertando os dedos de André com delicadeza.
E assim, deitados um ao lado do outro, partilhando um silêncio cheio de significados, os dois homens descansaram. Do lado de fora, o sol começava a tingir o céu de dourado, e com ele, nascia um novo dia - não mais leve, não menos ameaçador, mas agora, ao menos, vivido com mais verdade.
O som do sal e do desejo ainda pairava no ar, como uma promessa sussurrada entre dois corpos que, por um instante raro e verdadeiro, ousaram amar.