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O sol já havia subido, pintando a vila com tons quentes e dourados. As casas, as roupas estendidas nos varais, os barcos ancorados - tudo parecia acordar lentamente, como se o dia ainda não tivesse coragem de começar de verdade.
Joaquim lavava o rosto num balde com água de poço atrás do bar. O toque da água fria servia mais para espantar os pensamentos do que para limpar o corpo. Seu reflexo tremia na superfície, fragmentado. Era ele, mas também não era. Um homem dividido entre o que sente e o que aprendeu a esconder.
"O que estão pensando agora? Se soubessem... se vissem."
O peso do medo não vinha só do que os outros diriam. Vinha do que ele mesmo pensava ao se ver naquele espelho d'água. O marinheiro forte, respeitado pela tripulação, pelas garotas do cais, pelos amigos de bebida. Quem era ele agora? Quem era esse homem que se permitiu adormecer no peito de outro?
Mas havia uma outra voz - mais tênue, mais sincera - que sussurrava por dentro:
"Foi a primeira vez que alguém me tocou sem querer me dominar. A primeira vez que um toque me fez sentir inteiro."
Esses pensamentos o acompanhavam enquanto atravessava a vila em silêncio. Os olhares que cruzava pareciam mais demorados que o normal, ou talvez fosse apenas a culpa tentando se disfarçar de vigilância. Era como se cada pessoa carregasse um espelho, e ele visse neles o reflexo do que não queria admitir em si.
Do outro lado da vila, André também estava desperto. Sentado na beirada do píer, com os pés tocando a água, ele encarava o horizonte. Seus pensamentos não eram menos inquietos, mas vinham de um lugar diferente.
Ele já sabia quem era. Sabia desde os quinze, quando o filho do padeiro lhe roubou um beijo no meio do mato e depois fingiu que nada havia acontecido. Sabia quando o pai lhe deu uma surra por ter cortado o cabelo "feito artista", e quando teve que aprender a silenciar o próprio riso. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis.
Amar, para ele, era como caminhar sobre conchas afiadas: cada passo trazia beleza e dor.
"Será que fiz certo em deixá-lo ficar?" - pensava, enquanto tocava o cordão de madeira que trazia no pescoço, presente da mãe antes de partir. - "Será que ele vai voltar... ou fugir de tudo isso?"
O medo de amar um homem não estava apenas no ato em si, mas na história que a sociedade escrevera sobre esse amor: de que ele deveria ser escondido, punido, esquecido. E mesmo assim, mesmo com tudo isso... André queria tentar.
No coração dos dois, o mesmo mar revolto. E a mesma pergunta, sussurrada entre as ondas da mente:
"Existe espaço no mundo para um amor como o nosso?"
A noite caiu com uma brisa mais fria do que o habitual, fazendo as palhas do telhado sussurrarem segredos antigos. O bar estava quase vazio, salvo por dois pescadores jogando dominó num canto e uma mulher de vestido lilás arrumando as cadeiras para o dia seguinte.
Joaquim e André estavam sentados do lado de fora, num banco de madeira encostado na parede. Tinham uma garrafa de cachaça pela metade entre eles e dois copos que já não contavam as doses. Mas não era embriaguez. Era coragem líquida, na medida certa para amaciar a garganta e desamarrar as palavras.
- Você sempre soube? - perguntou Joaquim, olhando para o vazio da rua.
André demorou a responder. Encarava a mão, girando o copo entre os dedos.
- Sempre, acho. Mesmo quando me disseram que era errado. Eu só... nunca consegui deixar de sentir.
Joaquim assentiu com um movimento leve de cabeça. Ficou em silêncio por um instante, até que, com a voz baixa, falou:
- Quando eu tinha dezessete... me apaixonei pelo filho do sapateiro. Manuel. A gente trocava bilhetes escondidos. Uma vez, ele me beijou atrás da oficina. Eu achei que o mundo inteiro ia desabar, mas ao mesmo tempo... era como respirar pela primeira vez.
André o observava em silêncio. Não com pena, mas com aquele tipo de escuta que acolhe sem julgar.
- Alguém viu. No outro dia, ele sumiu. Meu pai me mandou pro navio na semana seguinte. Disse que precisava virar homem. Que aquilo não era coisa de macho.
- E você virou? - André perguntou com suavidade, mas com firmeza nos olhos.
Joaquim deu um meio sorriso, amargo.
- Virei marinheiro. Nunca mais me permiti sentir nada parecido com aquilo. Até chegar aqui.
O silêncio se instalou por um momento. Não era desconfortável. Era cheio de coisas não ditas, mas compreendidas.
Então André falou, quase como quem reza:
- A primeira vez que beijei alguém... eu também era novo. Meu primo. Ele sorriu, depois fingiu que nunca aconteceu. E minha avó me bateu quando desconfiei de mim mesmo em voz alta. Passei anos tentando apagar aquilo de mim.
Os dois olhavam para a frente, mas estavam mergulhados dentro. O banco, a garrafa, a vila - tudo sumia diante das lembranças que voltavam, como se o passado fosse um mar profundo e silencioso.
- Eu tenho medo - disse Joaquim, quase num sussurro.
- Eu também - respondeu André, com a franqueza de quem já se cansou de fingir que não sente.
E então, sem pressa, como se o tempo tivesse parado, André encostou sua mão na de Joaquim. Apenas isso. Um gesto simples. Mas ali, naquele toque silencioso, estava tudo: o passado, o desejo, o medo, a coragem, a esperança de que talvez, só talvez, o mundo lá fora não precise mais ser o inimigo.
Joaquim olhou para a mão de André. A pele morena, marcada de calos discretos, um traço de vida simples e trabalho duro. Aquele toque, por mais leve que fosse, parecia acender algo antigo dentro dele - um fogo que não era só desejo, mas também ternura.
Mas, por dentro, a chama lutava contra uma tempestade.
- Sabe o que mais me assusta? - disse Joaquim, com a voz embargada. - Não é o que vão dizer. É o que eu fui ensinado a pensar de mim mesmo. Como se houvesse algo sujo em mim só por sentir.
André não respondeu de imediato. Apenas virou-se para ele, os olhos calmos, profundos.
- Eu passei muito tempo me odiando. Não por fazer algo errado... mas por existir de um jeito que os outros diziam ser errado. Até hoje, às vezes, ainda ouço aquela voz. Dura. Seca. Dizendo que Deus não ama gente como a gente.
Joaquim mordeu os lábios. O silêncio voltou, mas não estava vazio. Estava cheio de lembranças: um pai com o punho cerrado, um padre com olhos de condenação, colegas de tripulação contando piadas com escárnio.
André respirou fundo e continuou:
- Mas sabe o que é pior? É quando a gente começa a acreditar que merece viver escondido. Que o amor que sente não pode ser chamado de amor. Só que... eu não quero mais viver assim, Joaquim. Mesmo que doa. Mesmo que demore.
As palavras caíam como gotas em terra seca. Joaquim não sabia o que dizer. Sua garganta apertava, como se mil vozes dentro dele brigassem para sair. Mas nenhuma era tão honesta quanto o silêncio que veio a seguir.
Ele fechou os olhos por um instante. E, pela primeira vez em muito tempo, não tentou afastar a lembrança de Manuel. Em vez disso, deixou que ela se misturasse com o presente - e se transformasse em algo novo.
Quando abriu os olhos, os dedos de André ainda estavam ali. A mão ainda oferecida. O gesto ainda possível.
E então, quase como num pedido de desculpa ao próprio passado, Joaquim entrelaçou seus dedos nos dele.
Ficaram assim por um tempo que o relógio não saberia contar. Nem era necessário. Ali, entre os estalos das ondas e o farfalhar das folhas, havia um entendimento antigo - um pacto silencioso entre dois homens marcados, mas ainda capazes de amar.
Naquela mesma noite, depois que o bar fechou e as estrelas cobriram o céu como um véu silencioso, Joaquim voltou para a pequena casa onde dormia com parte da tripulação. Os outros marinheiros roncavam ou cochichavam baixinho, deitados em redes apertadas, exalando cheiro de sal e álcool.
Joaquim se deitou sem sono. Fechou os olhos e deixou o cansaço dissolver os pensamentos - mas eles não foram embora. Vieram de outro jeito. Em forma de sonho.
No devaneio, ele caminhava pela praia, os pés afundando levemente na areia molhada. Estava nu, mas não sentia vergonha. O vento batia no seu corpo com suavidade, como se o mar respirasse junto com ele. Lá adiante, André o esperava, de costas, vestido com uma camisa branca esvoaçante, segurando uma concha.
Quando Joaquim se aproximou, André entregou-lhe a concha, e ela vibrava em sua mão, quente, viva. Joaquim a levou ao ouvido, e dela não veio o som do mar - mas risadas. Risadas de escárnio, zombarias abafadas. A concha começou a se tornar pesada, quente demais, quase queimando.
Ao olhar para trás, uma multidão estava surgindo das ondas: rostos conhecidos da vila, seus companheiros de navio, o pai com o rosto de pedra, o padre que sussurrava latim e ódio. Todos vinham andando na sua direção. Os pés não afundavam na areia - pareciam deslizar.
Joaquim tentava correr, mas o corpo pesava. A concha agora era uma rocha. André desaparecia lentamente, levado pelo vento. E ele gritava o nome - mas o som não saía. Acordou com um solavanco, o peito ofegante, a concha imaginária ainda ardendo em sua mão.
Na manhã seguinte, o dia parecia comum. Mas Joaquim sabia - algo havia mudado.
Na taberna, notou olhares mais demorados. Um grupo de pescadores cochichava ao fundo, e, quando ele passou, os risos cessaram abruptamente. Um dos homens, um sujeito com cicatriz na sobrancelha, murmurou algo com os olhos fixos em Joaquim:
- Homem que fala doce demais... é sempre cobra escondida.
Joaquim fingiu não ouvir. Mas sentiu. Como uma navalha encostando de leve na pele.
Mais tarde, quando caminhava com André até a beira do rio, uma mulher que vendia milho na esquina lançou um olhar de soslaio, e sussurrou para a vizinha:
- Esse não é o que vive com o forasteiro? Anda junto demais... isso nunca dá em coisa boa.
André percebeu também. Seu corpo ficou mais rígido. Os dois trocaram um olhar breve, cúmplice - e inquieto.
- Eles estão começando a notar - disse André, mais tarde, em voz baixa, enquanto lavava copos no bar.
- Notar o quê? - Joaquim perguntou, com a boca seca, já sabendo a resposta.
- Que somos mais do que conversa.
Joaquim assentiu. E, pela primeira vez, sentiu o medo não como um vulto interno, mas como uma sombra se formando em torno deles. Sabia como essas histórias terminavam. Já vira antes. Em outros portos. Em outros rostos.
Mas também sabia que dessa vez não queria correr. Não sem lutar.
E, ao lembrar do toque de André, da mão entrelaçada na noite anterior, encontrou ali um fragmento de coragem.
Mesmo que o mundo cochiche, ria ou julgue... havia algo naquele gesto que valia a pena proteger.
Mais tarde naquela mesma noite, depois que os cochichos se calaram e a vila mergulhou no escuro, Joaquim caminhou até o trapiche onde os barcos dormiam. André já o esperava, sentado com os pés balançando sobre a água escura, fumando um cigarro que brilhava como um olho atento.
- Achei que não viria - disse André, apagando a ponta com os dedos.
- Eu também - respondeu Joaquim, sentando-se ao lado.
Por alguns minutos, disseram nada. O silêncio era confortável, como um cobertor leve sobre feridas expostas. Só o som da água lambendo as madeiras e um grilo perdido no mato ao longe.
- Já se sentiu dividido? - perguntou Joaquim de repente. - Como se existissem dois de você... um que quer correr, e outro que quer ficar?
André sorriu de leve.
- Todo dia. Um me protege. O outro me trai. Mas, às vezes... eu acho que é o segundo que me salva.
Joaquim baixou os olhos. A brisa da noite tocava seu rosto com cuidado. André o olhava agora, com uma firmeza suave. Como quem enxerga, e não só observa.
- Ninguém nunca me olhou assim - sussurrou Joaquim, quase sem querer.
André se aproximou um pouco. Não invadiu. Apenas ofereceu espaço. Entre os dois, uma tensão silenciosa, feita de respeito e desejo.
- Posso te tocar? - perguntou André, num sussurro.
Joaquim assentiu. A mão de André pousou sobre sua nuca, com lentidão. O toque não era urgente. Era reverente. Como se dissesse: Você está seguro aqui.
Os lábios se encontraram devagar, como quem teme quebrar algo precioso. O beijo foi breve, mas cheio - como uma promessa sussurrada contra o tempo.
Depois disso, ficaram ali, encostados, dividindo o silêncio. Joaquim apoiou a cabeça no ombro de André. A camisa dele tinha cheiro de sal, tabaco e alguma coisa quente, como terra após a chuva.
- Quando tudo começar a pesar - disse André, com os olhos no céu -, vem pra cá. Ninguém precisa saber. Só o mar.
Joaquim fechou os olhos. Pela primeira vez em muitos anos, sentiu o corpo inteiro se permitir existir. Sem explicação. Sem desculpa.
Na escuridão daquele cais esquecido, dois homens aprenderam que resistir podia ser tão simples quanto deitar a cabeça no ombro do outro. Que ternura era uma forma de coragem.
E que amar - mesmo às escondidas - era uma forma de se manter inteiro.
O sol ainda não tinha rompido o horizonte quando Joaquim abriu os olhos. Dormira pouco, e mal, mas com uma calma nova no peito. Ainda sentia o toque da mão de André em sua nuca como se tivesse deixado uma marca invisível - não de posse, mas de presença. Como um lembrete de que, por uma noite, ele foi inteiro.
Levantou-se em silêncio, passou pela tripulação adormecida e foi lavar o rosto no poço da vila. A água estava fria, cortante, como o dia que amanhecia. Enquanto se enxugava com um pano gasto, ouviu passos se aproximando. Era o cozinheiro do navio, um homem velho e cismado, que sempre acordava antes de todos.
- E aí, Joaquim... Dormiu fora essa noite?
A pergunta veio arrastada, casual demais para ser inocente.
- Fui ver o mar. Precisava pensar.
O velho soltou um grunhido, e Joaquim não soube se era escárnio ou simples tédio matinal. Preferiu não responder.
Mais tarde, ao entrar no bar onde André servia café e pão, os olhares voltaram a recair sobre ele. Não diretos. Não acusadores. Mas longos demais, silenciosos demais. Um menino riu sem razão quando o viu se aproximar, e a mãe logo o puxou pelo braço, sussurrando algo que Joaquim não entendeu - ou não quis entender.
André fingia normalidade. Era bom nisso. Atendia a todos com o mesmo sorriso polido de sempre, mas quando Joaquim se sentou no canto, o rapaz apenas olhou rápido, sem falar. Um acordo silencioso entre os dois: a noite foi deles. O dia era do mundo.
Quando o bar esvaziou por um momento, André se aproximou, limpando a mesa próxima com movimentos metódicos. E num sussurro, quase sem mover os lábios, disse:
- Encontrei um lugar. Antiga casa de pescador, perto do manguezal. Ninguém vai até lá. É longe o bastante.
Joaquim o encarou com uma mistura de surpresa e gratidão. Não precisava dizer nada. Só assentiu.
André deixou um bilhete rabiscado entre os dedos de Joaquim quando se afastou. Nada comprometedor - apenas um desenho tosco de um peixe com uma linha curva. Um código entre eles.
E ali, naquele gesto simples, havia mais amor do que em muitas declarações.
O resto do dia passou como um teatro ensaiado: cumprimentos, obrigações, olhares medidos. Mas por dentro, Joaquim carregava a chama da noite anterior como quem protege uma brasa entre as mãos, temendo o vento, mas recusando-se a deixá-la apagar.
Na solidão que se escondia atrás dos gestos, nas palavras ditas com cuidado, e nas pausas carregadas de intenção, ele entendeu: amar André seria caminhar sobre espinhos... mas ele já estava descalço há muito tempo.
O entardecer caiu como um véu de bronze sobre a vila. O céu ardia em tons de ferrugem e lilás, e o cheiro de mar misturado ao calor da terra criava uma atmosfera adormecida, quase sagrada.
Joaquim caminhava com passos firmes, mas atentos. Levava apenas uma pequena sacola, como quem não deseja parecer diferente demais. Pegou o caminho do manguezal, seguindo os contornos do desenho que André deixara. As árvores ali pareciam mais densas, e o barulho do mundo ia se dissolvendo a cada passo. O ar ficava mais úmido, mais íntimo.
A antiga casa de pescador surgia escondida entre as árvores, meio coberta por folhas secas e musgo. Um casebre de madeira torta, janelas fechadas com trapos, como olhos dormindo. Joaquim parou diante da porta, hesitou por um instante - e então bateu, duas vezes.
André abriu. Estava com a camisa solta, os pés descalços. O rosto tinha traços de cansaço, mas os olhos... ali, havia calor. Havia espera.
- Achei que talvez você não viesse - disse, simples.
- Eu pensei em não vir - respondeu Joaquim, entrando devagar. - Mas o corpo veio por conta própria.
A casa era simples: um colchonete no chão, um fogareiro apagado, duas canecas, e no canto uma rede armada. Mas havia algo ali que nenhuma casa antes tivera: a sensação de poder ser inteiro, mesmo que por pouco tempo.
André pegou uma manta fina e estendeu no chão. Sentaram-se ali, frente a frente, em silêncio. O tempo parecia parado. Não havia relógio. Não havia vila. Só a respiração de um acompanhando a do outro, como uma prece muda.
Joaquim pegou a mão de André. Não com desejo, mas com fome de afeto. Passou os dedos pelos nós dos dedos dele, como se estivesse tentando aprender de cor a textura daquele gesto.
- Aqui... - disse André, baixinho, encostando a testa na de Joaquim - aqui você pode sentir. Não precisa esconder. Nem correr.
Joaquim fechou os olhos. E o mundo, com seus ruídos e pesos, ficou do lado de fora por um instante.
Ficaram deitados depois, os corpos entrelaçados, não por desejo urgente, mas por necessidade de ternura. A noite chegou devagar. Lá fora, os grilos cantavam e o vento passava pelas folhas como dedos abrindo caminhos.
Antes de adormecer, Joaquim pensou que talvez não fosse o bastante. Talvez o mundo ainda batesse mais forte que aquele abrigo. Mas, por ora, aquilo bastava. A chama resistia. O toque existia. E o silêncio, finalmente, não era ausência - era abrigo.