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O relógio marcava seis da manhã quando Elena despertou com o som das cortinas sendo abertas automaticamente. A luz suave da manhã invadia o quarto aos poucos, iluminando a imensidão do espaço que ela ocupava quase sozinha.
Nos últimos dias, Darian passara a voltar ainda mais tarde - e dormir no quarto de hóspedes com mais frequência. Às vezes, ela o ouvia chegar, o som abafado dos sapatos ecoando no corredor. Outras vezes, só percebia sua presença por rastros sutis: uma jaqueta deixada sobre uma cadeira, um copo vazio no escritório, o cheiro amadeirado de seu perfume no ar.
Eles se cruzavam como desconhecidos com obrigações comuns.
Mas havia momentos em que ele quebrava a lógica.
Na noite anterior, ao perceber que ela havia comido sozinha novamente, Darian apareceu na cozinha quando ela terminava o chá.
- Por que não pediu que jantássemos juntos? - ele perguntou, sem encará-la diretamente.
Ela ergueu os olhos, surpresa.
- Achei que estivesse ocupado. Ou evitando minha companhia.
Ele não respondeu.
Mas, por algum motivo, naquela noite, permaneceu ali com ela, em silêncio. Observando-a. Até que, por fim, murmurou um simples "boa noite" antes de desaparecer pelo corredor.
Apesar da tensão que pairava entre eles, Elena tentava manter alguma rotina.
Caminhava pelo jardim todas as manhãs. Lia romances antigos na biblioteca - herança da mãe de Darian, falecida há mais de uma década. Passava horas tentando se distrair, mesmo que as paredes parecessem mais apertadas a cada dia.
Naquela manhã, encontrou Adele no corredor.
- Há algo que precisa ver, senhora Leclerc - disse a governanta, entregando-lhe um envelope bege.
Era um convite.
Um evento beneficente promovido pela Fundação Leclerc, que ajudava crianças com doenças raras. A própria mãe de Darian fora diagnosticada tardiamente, e o CEO fazia questão de financiar os programas de tratamento desde então.
O convite vinha assinado com a letra dele.
"Comparecer a este evento é importante para a imagem de nossa união. Use algo discreto. - D"
Elena suspirou.
Mais um baile de máscaras.
Na noite do evento, optou por um vestido longo azul-escuro, sem brilhos. Cabelo preso num coque elegante, maquiagem sutil. Não queria chamar atenção. Queria apenas sobreviver à noite sem engolir mais um pedaço de si.
Darian a aguardava no carro, com a expressão neutra de sempre. Mas seus olhos hesitaram por uma fração de segundo quando a viu.
- Está... adequada - disse, seco.
Ela não respondeu. Nem agradeceu. Apenas entrou no carro em silêncio.
O caminho até o centro de convenções foi silencioso, como de costume. Mas no ar havia algo denso. Um tipo de expectativa silenciosa, como se algo estivesse prestes a romper - ainda que eles próprios não soubessem o quê.
O salão estava iluminado por lustres de cristal. Crianças de lares assistidos pela fundação recepcionavam os convidados com desenhos e flores feitas à mão. Era um evento bonito, genuíno, com um toque de esperança.
Elena sentiu algo apertar no peito ao ver uma das meninas correndo em direção a Darian, rindo.
- Senhor Leclerc! - a garotinha gritou, abraçando-o.
Ele se abaixou, sorrindo. Um sorriso verdadeiro, embora raro. Os olhos dele se suavizaram. Havia ternura. Um afeto discreto, mas real.
Elena ficou paralisada. Não pelo gesto - mas por ver uma versão de Darian que ela jamais conhecera.
- Ela é a Sofia - disse uma das coordenadoras. - Ele financia o tratamento dela desde o ano passado. Vem aqui todo mês para visitá-la.
Elena não sabia o que responder.
Durante o jantar, sentaram-se juntos, mas não falaram muito. A cada vez que ela olhava para ele, o via distante - mas menos duro. Como se o ambiente, o propósito do evento, revelasse uma camada escondida sob a armadura.
Quando os discursos começaram, Darian foi chamado ao palco.
Falou com firmeza, como sempre. Mas, ao mencionar a mãe, sua voz baixou o tom. Havia emoção contida ali.
- Minha mãe me ensinou que o sucesso não vale nada se não puder ser usado para cuidar de alguém. Este fundo existe para honrar essa memória - ele disse. - E para dar esperança a famílias que, muitas vezes, só precisam de um fio de luz.
Elena sentiu um nó na garganta.
Talvez ela estivesse errada sobre ele.
Ou talvez apenas estivesse começando a ver as rachaduras na parede que ele tanto se esforçava para manter.
Depois do evento, quando voltaram para casa, ela finalmente falou:
- Você deveria mostrar mais esse lado.
Darian franziu o cenho.
- Que lado?
- O que cuida da Sofia. O que fala da mãe com os olhos cheios d'água.
Ele virou-se para ela com um olhar penetrante.
- Não seja ingênua, Elena. Sentimentos tornam as pessoas vulneráveis. Isso não é útil em negócios. Nem em casamentos como o nosso.
Ela respirou fundo, frustrada.
- Nem tudo precisa ser útil.
Ele caminhou em direção ao bar, serviu-se de uísque, e ficou em silêncio por alguns segundos.
- Você não entende... este mundo cobra mais do que entrega. Eu aprendi cedo a manter distância.
Ela o observou.
- E acha que distância resolve alguma coisa?
Ele virou o copo em um único gole.
- Resolve. Impede que me importem demais.
Os dias seguintes foram como um campo minado.
Ora Darian era cortante, quase cruel. Outras vezes, surgia com um livro que achava que ela gostaria, deixava uma flor em sua mesa, ou perguntava sobre o dia dela - como se, por lapsos curtos, estivesse tentando se aproximar.
Mas esses gestos vinham sempre seguidos de afastamentos. Como se ele mesmo se arrependesse de se importar.
Uma tarde, ao encontrá-lo no escritório, Elena tentou romper o gelo.
- Posso te fazer uma pergunta?
Ele assentiu, sem tirar os olhos da tela.
- Por que escolheu justamente a mim para esse acordo?
Darian parou. Demorou para responder.
- Porque você era perfeita para manter tudo sob controle. Discreta. Educada. Humilde, apesar do sobrenome. E, o mais importante... porque não parecia alguém que se apaixonaria fácil.
Aquelas palavras cortaram mais do que qualquer grito.
Elena se sentiu exposta. Ferida. Mas sorriu, amarga.
- Que bom saber que sou tão previsível.
Ela saiu, deixando-o sozinho.
Naquela noite, Darian ficou no jardim por horas, fumando um charuto que não chegou a terminar. Pensava no que ela dissera. Pensava em como sua presença alterava o ar da casa. Como, desde que ela chegara, ele passara a perceber os próprios silêncios.
Ela mexia com ele. E isso o apavorava.
Elena, no quarto, sentou-se à escrivaninha e escreveu:
"Ele me escolheu porque não sou um risco.
Mal sabe ele que estou começando a desejar arriscar tudo.
Mesmo sabendo que vou me machucar."
Fechou o diário com força. Lágrimas silenciosas desceram por seu rosto. Mas ela se recusou a deixá-las vencer.
Afinal, era apenas um contrato, não era?
Então por que doía tanto?