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A jornada começou ao amanhecer, quando os primeiros raios de sol iluminaram a silhueta dos guardiões negros na colina. Asha, com as mãos presas por finas correntes de cobre, caminhava descalça atrás da carruagem do tribuno imperial. Cada passo na terra ressequida parecia exigir sua decisão. Atrás dela, as cinzas da lareira ainda flutuavam ao vento como pó sagrado sem altar.
O silêncio reinava entre os outros tributos. Eram cinco: dois homens, uma idosa, uma criança e Asha. Ninguém falava. Ninguém chorava. No Império Ezen, até o desespero precisava ser silenciado.
A paisagem se transformava à medida que avançavam: de colinas baixas e ruínas de adobe para terrenos baldios e, mais à frente, o som de uma grande estrutura de obsidiana erguendo-se no horizonte como uma adaga enterrada na pele do mundo.
"É aquela a Fortaleza?", perguntou o rapaz suavemente.
Um guarda respondeu-lhe com o dorso da lança, atingindo a grade da carroça.
"Escravos não pedem. Apenas obedecem."
Asha não olhou para ele, mas ouviu seu gemido baixo. Ele não era seu irmão, mas algo dentro dela se rompeu como se fosse.
Horas depois, eles atravessaram os portões do Império.
Eram feitos de ossos carbonizados, entrelaçados com fios de ferro negro. Não era uma estrutura ornamental: eram reais. Guardiões Antigos, inimigos derrotados, traidores e profetas esquecidos. Estavam todos lá. Seus nomes gravados em línguas mortas que queimavam ao toque de um olhar.
Eles foram levados para o pátio de manobras, onde as Marcas aguardavam. A escravidão não começava com algemas, mas com o fogo que selava a identidade.
Uma figura se aproximou. Ele estava vestido com uma capa cinza, sem rosto, e carregava uma barra de ferro com o símbolo do Olho Cinzento.
"Nome", disse ele.
"Asha de Kareth", respondeu o Guardião sem hesitar.
"Ela não é mais 'de' lugar nenhum. Aqui, será o que a chama decidir."
O homem mergulhou o cajado no braseiro em chamas até que a marca brilhasse em laranja. Asha engoliu em seco. Ninguém a preparou para este momento, embora toda a sua vida a puxasse para ele.
"Joelho."
Ela se ajoelhou. Estendeu o braço esquerdo sem que lhe pedissem.
O metal em chamas tocou sua clavícula, com um chiado que não era apenas de carne queimada, mas algo mais profundo: como se cinzas respondessem ao toque.
Ela gritou, mas não de dor. Era da visão.
Por um segundo, sua mente desapareceu. Ela viu um campo em chamas. Pessoas correndo. Uma figura alada com olhos como brasas estendeu a mão... em sua direção.
Quando a marca recuou, ela tremia.
"Você viu?" perguntou o homem encapuzado, seus olhos brilhando sob o capuz.
"O quê?" disse o outro.
"A chama não mente. Você tocou uma memória."
Mas Asha não respondeu. Seus olhos estavam fixos no símbolo ardente que agora marcava sua pele: três linhas entrelaçadas, como raízes queimadas. Ela não era mais uma filha. Não era mais livre.
Agora era escrava da memória.
Dias depois, Asha foi designada para o Templo da Pedra Silenciosa, um dos locais mais antigos do Império. Seu papel: guardar os corredores de cinzas, limpar os altares e memorizar os nomes dos mortos inscritos no mármore.
A escravidão no Império nem sempre era brutal para o corpo. Às vezes, era brutal para o espírito. Todos os dias, ela era obrigada a recitar mil nomes em voz baixa enquanto as brasas apagadas a ouviam.
"Memorizar é lembrar, e lembrar é servir", disse a Matriarca do Templo, uma mulher que parecia feita de pó e fumaça.
Asha obedeceu. Mas não esqueceu.
Durante as noites, ela sonhava com a figura alada. Às vezes, ela o via derramando cinzas. Outras vezes, parecia chamá-la pelo nome. Kael. Às vezes, ela ouvia esse nome sussurrado através do fogo.
Uma noite, quando estava sozinha limpando o corredor sul, a pedra sob seus pés se iluminou. Não com luz, mas com memória.
Uma imagem emergiu das cinzas: uma batalha. Guerreiros de fogo. Um Guardião arrastando uma lança feita de palavras antigas. E, de repente, um rosto. Um homem. Ou um jovem. Ou uma chama.
"Kael", ela sussurrou, sem saber por quê.
A imagem se dissipou. Mas ela permaneceu paralisada. Não por medo, mas por uma certeza.
As cinzas a haviam escolhido.
Uma semana depois, a Matriarca a enviou aos poços ressonantes: câmaras circulares onde fragmentos de memórias antigas eram armazenados, capturados em rochas negras suspensas sobre brasas incandescentes. A tarefa era simples: limpar a obsidiana com óleo de resina, sem olhar muito de perto.
Mas Asha olhou.
E quando o fez, viu um campo diferente. Ela viu uma escrava semelhante a ela, séculos antes, se levantando contra seus senhores. Viu chamas dançando no céu. Viu o nome de uma rebelião escrito em fumaça.
Sentiu as cinzas penetrarem em sua pele.
"Você não é como os outros", disse uma voz vinda da porta.
Era ele.
Alto, vestindo a armadura cerimonial de um Guardião Inferior, embora sem símbolos. Seu rosto era jovem, mas seus olhos eram antigos. Uma cicatriz cruzava sua bochecha direita, como se o fogo o tivesse tocado, mas não o consumido.
"Quem é você?", perguntou Asha. Sem falar, apenas com sinais.
"Sou apenas uma lembrança... ainda vivo", disse ele.
E desapareceu.
Naquela noite, ela não dormiu.
Sentiu a marca em sua clavícula vibrar, como se algo dentro dela estivesse despertando. Soube então que sua escravidão não era total. Que em algum lugar dentro dela, a liberdade ainda ardia.
Lembrou-se de sua mãe. De sua voz. De seus olhos. Do sussurro antes de partir: "Nunca queime completamente."
Agora ela entendia.
No Império Ezen, as chamas não consumiam apenas corpos. Elas consumiam a história. A memória. A alma. Mas algo havia mudado.
As cinzas começaram a falar com ela.
E Asha, filha das cinzas, não estava disposta a permanecer em silêncio.