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A Hora da Fumaça
O som de trompas ecoou pelos corredores como um aviso abafado. Três notas profundas e descendentes marcaram o início de algo que os escravos evitavam nomear. Ninguém disse "execução" em voz alta. Eles simplesmente se entreolharam brevemente, lábios selados, e correram para qualquer canto que parecesse inaudível.
Asha estava varrendo o átrio da Ala Leste quando o som a alcançou. Ela não precisou perguntar o que significava: seu corpo entendeu antes de sua mente. Um arrepio percorreu sua espinha, seus músculos se tensionaram. Ela ergueu os olhos. Uma das sacerdotisas de nível inferior, vestida com o cinza fosco que denotava obediência, aproximou-se.
"Venha. Hoje você será uma testemunha."
Não havia espaço para recusa. Nenhuma explicação. Asha largou a vassoura, limpou discretamente as cinzas das mãos e seguiu a mulher pelos corredores curvos do templo.
Eles a levaram ao Pátio da Chama Silenciosa.
Um espaço aberto e circular cercado por colunas negras esculpidas com inscrições que ninguém ousava traduzir em voz alta. No centro, uma grande placa de obsidiana polida, como um espelho escuro, refletia o céu sem nuvens.
E sobre essa placa, um homem de joelhos.
Seu torso estava nu, marcado por símbolos brancos. Seu cabelo estava raspado, seu olhar fixo à frente. Ele não estava chorando. Ele não estava gritando. Ele estava... imóvel. Como se sua alma já tivesse partido e seu corpo simplesmente aguardasse o protocolo.
Asha foi conduzida a uma posição privilegiada: uma pequena escada, onde se sentavam apenas os Guardiões em treinamento ou testemunhas designadas.
O lugar cheirava a incenso e carvão fresco.
Do limiar norte, Kael Thuros apareceu.
Ele usava uma máscara de cinzas: não pintada, mas tecida com as mesmas partículas do ritual. Suas vestes negras brilhavam levemente, como se algo pulsasse sob o tecido.
Asha prendeu a respiração.
Atrás de Kael, dois Guardiões arrastavam uma grande urna. Ela o vira nos registros: um Coletor de Essências, um artefato antigo no qual as cinzas dos executados eram despejadas. Não como punição, mas como um legado.
Esse era o dogma do Império Ezen: "A alma não se perde se se torna uma memória."
O condenado abaixou a cabeça. Ninguém falou.
Kael ergueu a mão, e as cinzas que dançavam ao redor de sua figura se organizaram com um suspiro. Um fio de luz avermelhada percorreu sua palma. Ele não carregava nenhuma arma. Não precisava de uma.
"Pela vontade do Fogo Vivo e da Lei da Memória, o portador chamado Silias Kaern entrega sua alma à guarda das cinzas. Suas memórias serão preservadas. Seu corpo, devolvido ao fluxo."
Um gesto breve.
E então aconteceu.
Kael tocou a testa do homem com dois dedos. Seu corpo se arqueou. Um som gutural, como um grito reprimido por séculos, escapou de sua garganta. De suas costas, espirais de cinzas ardentes irromperam, não queimando, mas deixando cicatrizes. Sua pele ficou cinza. Seus olhos, brancos. E então, nada.
O corpo desabou para a frente, uma frágil escultura feita de cinzas.
Nenhuma partícula se dispersou.
Os Guardiões colocaram o cadáver delicadamente no Coletor, enquanto um terceiro sacerdote murmurava um cântico em uma língua antiga. Então, uma corrente de ar levantou as cinzas do corpo e as sugou para dentro da urna.
Asha não conseguia se mover.
Não por medo, mas por algo mais profundo. Ela já havia testemunhado mortes antes. As de seu pai, as de vizinhos doentes. Mas isso era diferente. Aqui, a morte não era definitiva. Era... uma transformação. Um sacrifício que preservava algo.
E pela primeira vez, ela entendeu o que sua mãe havia sussurrado quando falou sobre "aqueles que se lembram por nós".
O Olhar por Trás da Máscara
Quando todos começaram a se dispersar, Kael desceu do altar.
Ele não se dirigiu a nenhum dos Guardiões. Caminhou direto em direção a Asha.
Ela considerou abaixar o olhar. Fingir fingir, como antes. Mas algo dentro dela - talvez um instinto ou uma ferida recém-aberta - lhe dizia para não fazer isso.
Ela se manteve ereta.
Kael parou na frente dela. Ele removeu a máscara lentamente. Seus olhos estavam mais escuros do que ela se lembrava. Não por causa da cor, mas por causa do peso.
"Você sabe por que eu te trouxe aqui?"
Asha não respondeu. Ela sabia que o silêncio era sua única defesa... e agora também sua única forma de protesto.
Kael ergueu o canto dos lábios. Um sorriso fugaz e sem humor.
"Não para te assustar. Embora o medo às vezes acenda fogo."
Ele pegou uma pequena esfera de cerâmica e a segurou no ar. Dentro dela, uma partícula de cinza flutuava, sem cair no fundo.
"Isto é o que resta dele. Silias Kaern. Traidor, ladrão de memórias. Mas também um pai. Amante. Poeta."
A esfera brilhou fracamente enquanto ele pronunciava essas palavras. Era como se reagisse à lembrança. Como se a própria essência do executado respondesse à sua história.
"Você é um escravo. Mas isso não o impede de um dia se tornar algo mais. A menos que escolha o esquecimento."
Asha sentiu que queria falar. Que deveria dizer algo. Que, se não dissesse, perderia uma parte de si mesma. Mas apertou os lábios, lutando contra a tensão no peito.
Kael abaixou a esfera. Seus olhos a encararam.
"Lembre-se disso, mesmo que não fale: nem tudo que morre desaparece. E nem tudo que vive... se lembra."
E ele foi embora.
Asha baixou o olhar para o chão. A placa de obsidiana ainda estava quente sob seus pés.
E, pela primeira vez, ela não temeu o fogo.
Ela temia esquecer.