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Thiago chegou numa manhã ensolarada, o tipo de dia que costumava me trazer uma falsa sensação de paz.
Isabela o apresentou como um protegido, um garoto novo, talvez com alguma dificuldade, que ela queria ajudar.
Ele tinha um sorriso fácil e olhos que pareciam não conhecer maldade.
Eu o olhei, olhei para Isabela, e soube.
Soube que meu tempo estava acabando.
Dez anos. Dez anos ao lado dela, como seu braço direito, seu amante, seu cão de guarda.
E agora, um garoto com cara de anjo vinha tomar meu lugar.
Senti o gosto amargo na boca, o mesmo gosto de quando acendi o último cigarro do maço.
Fim.
Naquela noite, Isabela me chamou ao seu quarto.
Ela estava deitada na cama, vestindo apenas uma camisola de seda que eu mesmo havia escolhido.
Seu perfume, o mesmo que usava há anos, enchia o ar.
Mas seus olhos estavam frios, distantes.
"Léo," ela disse, a voz suave, quase um sussurro. "Você sabe que eu gosto de coisas novas."
Eu não disse nada. Apenas a observei.
Ela se levantou, caminhou até mim, seus dedos roçando meu peito.
"Thiago é... diferente. Ele é leve, Léo. Ele não carrega o peso do mundo nas costas como você."
Ela parou na minha frente, o olhar fixo no meu.
"Ele não tem seu cheiro de rua, de sangue. Ele cheira a... inocência."
Senti uma pontada no peito, mas mantive a expressão neutra.
"Então é isso?" perguntei, a voz rouca. "Dez anos jogados fora por causa de um cheiro?"
Um sorriso cruel brincou em seus lábios.
"Não seja dramático, Léo. Você sempre soube como as coisas funcionam. Você foi útil. Muito útil."
Ela se afastou, caminhou até a janela, observando a cidade abaixo.
"Mas eu cansei da sua escuridão. Thiago me traz luz."
"Luz?" Ri sem humor. "Você acha que ele é luz? Bela, você o pegou na rua, assim como me pegou."
Lembrei do dia. Eu tinha quinze anos, o sangue de um desgraçado ainda quente nas minhas mãos.
Ele tentou me machucar, eu me defendi.
Isabela apareceu, viu a faca, viu o corpo, viu o medo nos meus olhos.
Ela não chamou a polícia. Ela me ofereceu uma mão, um caminho.
"Eu te dei uma vida, Léo," ela disse, virando-se para mim. "Uma vida que você nunca teria."
"E eu te dei lealdade," respondi, a voz subindo. "Eu matei por você. Eu sangrei por você. Eu quase morri por você, lembra? Aquela emboscada no Alemão? Quem te tirou de lá?"
Seus olhos brilharam, um lampejo da antiga Bela, a mulher por quem eu faria qualquer coisa.
Mas desapareceu tão rápido quanto surgiu.
"E eu sou grata," ela disse, a frieza voltando. "Mas gratidão tem limite. E o meu chegou."
Ela voltou para a cama, pegou um envelope.
"Aqui tem dinheiro. O suficiente para você sumir, recomeçar em outro lugar."
Senti o sangue ferver. Dinheiro? Ela achava que podia me comprar, me descartar como um objeto velho?
"Eu não quero seu dinheiro, Bela."
"Então o que você quer, Léo? Implorar? Não combina com você."
Uma risada seca escapou dos meus lábios, uma risada que beirava a loucura.
"Eu não quero nada de você. Absolutamente nada."
Virei as costas, caminhei até a porta.
"Léo," ela chamou.
Parei, mas não me virei.
"A porta dos fundos, por favor. Não quero que Thiago te veja saindo do meu quarto."
Aquilo foi o golpe final.
Senti meu corpo tremer, mas me forcei a continuar andando.
Saí do quarto, bati a porta com força.
O som ecoou pelo corredor silencioso.
Desci as escadas, cada degrau um peso no meu peito.
Não chorei. Assassinos não choram.
Mas a dor era física, uma faca invisível girando nas minhas entranhas.
Decidi ali mesmo. Eu ia sumir. Desaparecer.
Mas não como ela queria.
No dia seguinte, Thiago já estava instalado.
Isabela o tratava como um príncipe.
Comprou roupas caras, sapatos importados.
Mandou reformar um dos quartos de hóspedes, transformando-o numa suíte luxuosa para ele.
Eu via tudo, de longe, relegado a um canto escuro.
Ela sorria para ele, um sorriso genuíno, um sorriso que eu não via há anos.
Tocava seus cabelos, ajeitava sua gola.
Pequenos gestos de carinho que ela nunca me deu.
Nem mesmo no começo, quando éramos apenas nós dois contra o mundo.
Eu era uma ferramenta, um soldado. Ele era... um bibelô.
Meus homens me olhavam com pena, com desprezo.
Eu sentia seus olhares, mas não me importava.
Eu tinha uma dívida com Isabela. Uma dívida de vida.
Ela me salvou quando eu não tinha mais ninguém.
Eu tinha quinze anos, sujo, faminto, com o sangue de um homem nas mãos.
Um homem que tentou abusar de mim na favela.
Eu o matei. Legítima defesa, mas quem acreditaria?
Isabela acreditou. Ou fingiu acreditar.
Ela me limpou, me alimentou, me treinou.
Me deu uma figa de azeviche. "Proteção" , estava gravado nela.
"Você é meu agora, Léo," ela disse naquele dia, a voz firme, mas com um toque de algo que eu confundi com carinho. "Eu te protejo, você me protege."
E eu a protegi.
Uma vez, levei três tiros por ela.
Lembro da dor, do sangue escorrendo.
Lembro do pânico nos olhos dela quando me viu cair.
Depois, lembro da frieza com que ela mandou matar os responsáveis.
Sem piedade. Sem hesitação.
Aquela era a Isabela que eu conhecia. A Isabela que eu respeitava.
Às vezes, ela brincava comigo.
Me chamava para o quarto dela, me fazia ajoelhar.
"Quem manda aqui, Léo?" ela perguntava, a voz rouca de desejo.
"Você, Bela. Sempre você."
E então ela me tomava, com uma ferocidade que me deixava sem fôlego.
Poder. Era disso que se tratava.
Agora, o poder dela tinha um novo foco.
Ouvi dois dos meus homens conversando na cozinha.
"O moleque é fraco," um disse. "Não dura uma semana na rua."
"Mas a patroa gosta dele," o outro respondeu. "E o que a patroa quer..."
Senti a raiva subir, mas a engoli.
Não valia a pena.
Isabela apareceu na porta da cozinha.
O silêncio foi imediato.
Ela olhou para os dois homens, depois para mim.
Seus olhos pararam em mim por um instante, frios, calculistas.
Depois, ela sorriu para Thiago, que vinha logo atrás dela.
"Vamos, querido. Preparei seu café da manhã."
Ela o levou pela mão, como se fosse uma criança.
Uma noite, eu estava na varanda, fumando.
Uma tempestade tropical se formava no horizonte. Raios cortavam o céu escuro.
Eu odiava tempestades.
Me lembravam da noite em que Isabela me encontrou. Chovia forte naquele dia também.
Thiago passou por mim, parou ao meu lado.
"A patroa não gosta que fumem aqui," ele disse, a voz surpreendentemente firme para alguém tão... ingênuo.
Ignorei-o.
"Ela me pediu para te dizer," ele insistiu.
"Diga a ela para vir me dizer pessoalmente," retruquei, sem olhá-lo.
Ele ficou em silêncio por um momento.
"Você não gosta de mim, não é?"
Finalmente o encarei. Seus olhos, antes inocentes, agora tinham um brilho estranho.
"Não tenho motivos para gostar ou não gostar de você."
"Acho que tem sim," ele disse, um pequeno sorriso surgindo. "Eu sou o novo favorito."
Senti vontade de quebrar aquele sorriso com um soco.
Mas me contive.
"Aproveite enquanto dura, garoto. O favoritismo dela é como essa tempestade. Forte, mas passageira."
Ele riu, uma risada fina, irritante.
"Veremos."
No dia seguinte, Isabela me chamou ao seu escritório.
Ela estava sentada atrás de sua enorme mesa de mogno, Thiago ao seu lado, numa cadeira que antes era minha.
"Léo," ela começou, a voz gelada. "Fiquei sabendo que você desrespeitou o Thiago."
"Eu apenas disse a verdade."
"A verdade?" ela arqueou uma sobrancelha. "E qual é a sua verdade, Léo?"
"Que ele é um oportunista. Que está te usando."
Thiago fez uma expressão de ofendido. Isabela colocou a mão sobre a dele, num gesto de consolo.
"Você está com ciúmes, Léo. É isso?"
"Ciúmes? De quê? De um garoto que não sabe nem amarrar os próprios sapatos?"
O rosto de Isabela endureceu.
"Já chega. Você passou dos limites."
Ela se levantou, caminhou até a janela. A tempestade da noite anterior tinha voltado com força total.
A chuva batia forte contra o vidro.
"Você vai ficar de joelhos lá fora, Léo. Na chuva. Até eu mandar você entrar."
Senti um arrepio. Ela sabia do meu medo de tempestades.
Ela sabia que aquilo era uma tortura para mim.
"Bela, por favor..."
"Agora!" ela gritou, a voz ecoando pela sala.
Olhei para Thiago. Ele sorria, um sorriso vitorioso.
Engoli em seco.
Saí da sala, desci as escadas, abri a porta da frente.
A chuva me atingiu com força, gelada, implacável.
Ajoelhei-me na grama encharcada, a cabeça baixa.
Lembrei de outra tempestade, anos atrás.
Eu tinha sido ferido numa troca de tiros. Isabela me carregou nos braços, debaixo de uma chuva torrencial, até um lugar seguro.
Ela cuidou de mim, limpou minhas feridas, me manteve aquecido.
"Eu te protejo, Léo," ela sussurrou naquele dia, os lábios perto do meu ouvido.
Agora, ela me punia com a mesma chuva que um dia simbolizou sua proteção.
O tempo passava lentamente.
Eu tremia de frio, meus dentes batiam.
A água escorria pelo meu rosto, misturando-se com algo que eu me recusava a chamar de lágrimas.
Vi Isabela na janela, observando-me. Thiago estava ao seu lado, abraçando-a por trás.
Ela ria de algo que ele dizia.
Depois de horas, que pareceram uma eternidade, a porta se abriu.
Jair, um dos meus antigos subordinados, apareceu.
"A patroa mandou você entrar."
Levantei-me com dificuldade, minhas pernas dormentes.
Entrei na casa, pingando água por todo o chão caro.
Isabela estava na sala de estar, sentada no sofá, com Thiago aninhado ao seu lado.
Ela me olhou de cima a baixo, uma expressão de desprezo no rosto.
"Espero que tenha aprendido a lição, Léo."
"Que lição, Bela? Que você é cruel?"
Ela sorriu, um sorriso que não alcançou seus olhos.
"Que eu sempre consigo o que quero. E que ninguém, absolutamente ninguém, me desrespeita ou desrespeita quem está sob minha proteção."
Ela acariciou os cabelos de Thiago.
"Thiago é especial para mim. E você faria bem em lembrar disso."
Eu queria gritar, queria dizer a ela o quão cega ela estava.
Mas eu estava cansado. Cansado da chuva, cansado da humilhação, cansado dela.
Apenas assenti.
"Posso ir agora?"
"Pode."
Subi para o meu quarto, o antigo quarto de hóspedes nos fundos da casa.
Tirei a roupa molhada, entrei no chuveiro.
A água quente não conseguia lavar o frio que eu sentia por dentro.
Quando saí do banho, vi algo na gola da camisa de Thiago, jogada sobre uma cadeira no corredor.
Uma marca de batom. O batom vermelho que Isabela sempre usava.
Senti o estômago revirar.
Então era assim.
Ela não apenas o protegia. Ela dormia com ele.
Aquele garoto. Aquele verme.
A raiva me consumiu, uma onda quente e sufocante.
Mas, por baixo da raiva, havia outra coisa.
Uma dor profunda, lancinante.
A dor da traição final.