"O que é que queres?" a voz dela no telefone era impaciente.
"A primeira coisa," disse eu, a voz rouca por causa da quimioterapia da manhã. "Vem comigo a um leilão de caridade no Rio de Janeiro esta noite."
Houve uma pausa.
"Para quê?"
"Só vem."
Quando a fui buscar, ela estava deslumbrante num vestido preto. Ela olhou para mim, dos pés à cabeça, e uma ruga de estranheza apareceu na sua testa.
"Estás mais magro."
Foi uma observação, não uma preocupação.
No carro, o silêncio era pesado. Ela estendeu a mão e agarrou a minha. Fiquei surpreendido. O toque dela era quente.
"Não te habitues," disse ela, a sua voz fria. "Só não quero que as pessoas pensem que estamos a brigar em público."
A minha esperança durou três segundos.
No leilão, o item principal era uma guitarra vintage, que pertenceu a uma lenda da Bossa Nova. Era a guitarra que eu usava para compor as minhas canções como "Orfeu". Eu queria comprá-la de volta.
Eu comecei a licitar. Isabela observava, entediada. Quando o preço subiu, eu hesitei. O dinheiro da fazenda era pouco.
De repente, a voz de Isabela cortou o ar.
"Cem mil reais."
O salão ficou em silêncio. Ninguém ousou competir com a herdeira da cachaça. O martelo bateu.
Ela tinha comprado a minha guitarra.
Ela virou-se para mim com um sorriso triunfante. Por um momento, pensei que era um presente para mim.
Então, Thiago apareceu ao lado dela.
"Querido, isto é para ti," disse Isabela, entregando-lhe a guitarra. "Sei que sempre quiseste uma destas."
Thiago beijou-a, os seus olhos a brilhar de ganância.
A dor no meu peito era pior do que a dor nos meus ossos. Tentei sair, engolir o ar que me faltava.
Isabela agarrou-me pelo braço, a sua raiva a ferver.
"O que se passa contigo? Estás doente? Estás sempre com essa cara de funeral!"
Eu não respondi. Desapareci na multidão.
Dois dias depois, o meu telemóvel tocou. Era ela.
"Onde estás? Temos mais quatro coisas para fazer. Estou a ficar sem paciência."
Eu estava no hospital, ligado a uma máquina.
"A segunda coisa," disse eu, a voz fraca. "Vem comigo a Salvador. Para o Carnaval."
Houve um longo silêncio.
"Salvador? É longe."
"Por favor, Isabela."
Ela suspirou, irritada. "Está bem. Encontra-me no aeroporto em duas horas."
Cheguei a tempo. Ela chegou atrasada. Estava ao telemóvel.
"O quê? Estás magoado? Onde? Estou a ir já para aí."
Ela desligou e olhou para mim, sem um pingo de remorso.
"O Thiago magoou-se no treino. Tenho de ir ter com ele."
Ela virou-se e deixou-me ali, sozinho no meio do aeroporto, com duas passagens para Salvador na mão.