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A Nova Rotina e a Segunda Imagem
Na manhã seguinte, o céu do interior parecia um quadro. Azul límpido, com pinceladas esparsas de nuvens alvas. O aroma do café fresco misturava-se ao da madeira envelhecida do casarão, e um feixe de luz atravessava as frestas da janela, banhando o chão de tábuas gastas com um dourado delicado.
Elisabeth despertou devagar, como se seu corpo ainda resistisse à ideia de que aquele era o novo mundo. Custou alguns segundos até lembrar onde estava - e por quê. Sentou-se com suavidade na cama, os cabelos desgrenhados caindo sobre os ombros, o olhar perdido na tapeçaria da parede.
Vestiu-se com simplicidade: calça jeans clara, camisa branca de algodão e um suéter azul que pertencia à mãe. Era largo nos ombros, mas trazia conforto - e memória.
Ao descer as escadas, encontrou a avó sentada na ampla sala de refeições, já com o jornal em mãos e a xícara de chá posta à frente.
- "Dormiu bem?" perguntou Margaret, sem desviar os olhos da coluna de opinião.
- "O suficiente para não ter pesadelos," respondeu Liz com honestidade contida.
A avó assentiu, sem exageros de emoção, mas com uma presença firme que dizia mais do que as palavras. Evelyn trouxe o café em silêncio. Pães caseiros, frutas frescas, mel, leite morno. Tudo simples, mas preparado com cuidado.
- "Você vai começar hoje," disse Margaret, como quem entrega uma decisão já tomada.
Liz ergueu os olhos.
- "Começar o quê, exatamente?"
- "Ajudar Evelyn com a casa. Ela está ficando sozinha há tempo demais. Já avisei que você não ficará trancada naquele quarto como se a dor te bastasse. Aqui, todos fazem sua parte."
Liz não discutiu. Sabia que, de certa forma, aquela exigência era um gesto de carinho disfarçado de disciplina. Respirou fundo e assentiu com um leve movimento de cabeça.
**
Foi Evelyn quem conduziu o primeiro tour. O casarão tinha dois andares e mais alas do que Liz imaginava. Cozinha ampla, despensa com estrutura de restaurante, lavandaria nos fundos, sala de estar com móveis que pareciam ter pertencido a outra era. Tudo ali era antigo, sólido, bem cuidado. Havia até uma biblioteca - discreta, porém surpreendentemente rica. Livros empoeirados repousavam em prateleiras altas, esperando que alguém voltasse a tocá-los.
- "Era o refúgio do senhor George, seu avô," explicou Evelyn.
- "Ele e o senhor Langford liam aqui quando pequeno. Mas há anos ninguém entra."
Ao ouvir o nome, Liz ergueu o olhar.
- "Langford?"
- "O neto da senhora Vivienne, que de tempos em tempos vem à fazenda. Mas você já o viu ontem, no pátio. É ele."
Liz sentiu o coração bater mais rápido - não por romance, ainda não - mas por confusão. O homem coberto de graxa, o mecânico que consertava carros velhos ao lado do celeiro... era um Langford?
- "Ele é... da família?"
Evelyn sorriu, sem dar margem para muitas interpretações.
- "É o dono de tudo isso, minha querida. O herdeiro. Mas gosta de se esconder na simplicidade, quando o mundo o sufoca."
Liz manteve o silêncio. Por dentro, uma centelha de inquietação crescia. O homem que ela confundira com um funcionário era, na verdade, o homem mais poderoso daquela propriedade.
**
No final da manhã, Liz pediu para ajudar na arrumação do celeiro. Queria se ocupar, distrair-se, não afundar na memória como fizera tantas vezes desde a tragédia. Evelyn a encaminhou até um dos empregados, um homem mais velho chamado Joel, responsável pelos estábulos.
- "Pode ajudar a varrer e organizar as ferramentas do canto leste," orientou ele, gentil mas objetivo.
Liz arregaçou as mangas. Era bom fazer algo com as mãos. O cheiro do feno, o som das ferraduras batendo suavemente no chão, o murmúrio distante de bois e cavalos. Tudo era novo - mas tinha algo de purificador.
Foi quando o viu novamente.
Erik havia trocado o macacão por uma camisa jeans de mangas dobradas e calça de brim escuro. Estava de costas, debruçado sobre uma pilha de madeira, organizando pranchas. Mas mesmo assim, Liz o reconheceu instantaneamente.
Ele virou-se devagar ao notar a presença dela. Os olhos azuis estavam ainda mais intensos sob a luz do meio-dia. Não sorriu desta vez, mas também não pareceu surpreso.
- "Então você decidiu explorar mais do rancho," disse, com uma voz que tinha algo de ironia sutil, mas sem arrogância.
- "Decidi ajudar," respondeu ela, firme, embora a pulsação lhe denunciasse o nervosismo.
- "Boa escolha. O celeiro costuma ser mais honesto do que muita gente na cidade."
Liz arqueou uma sobrancelha.
- "É mesmo? E você costuma filosofar entre fardos de feno?"
Ele riu. Um riso baixo, contido, mas verdadeiro.
- "Às vezes. Mas hoje só estou tentando organizar essa madeira antes que o tempo vire."
Ela hesitou por um momento.
- "Descobri que você é um Langford."
- "Aham." Ele pegou um prego, como se a informação não exigisse resposta.
- "E não acha estranho deixar que os outros pensem que você é apenas... um funcionário?"
Erik olhou diretamente para ela pela primeira vez.
- "Às vezes é exatamente isso que eu quero ser."
Silêncio.
Não um silêncio desconfortável, mas aquele tipo raro de silêncio que dois desconhecidos compartilham quando, por algum motivo, sentem que ali há mais do que o óbvio.
Liz desviou o olhar, voltando à vassoura em suas mãos. Ele também retornou ao trabalho. Mas algo, naquela troca aparentemente banal, havia se estabelecido.
Um fio invisível.
Uma tensão que ainda não era paixão - mas que já era algo além da casualidade.
E naquele celeiro antigo, sob o cheiro de madeira, terra e promessas veladas, o destino começava, com delicadeza, a traçar um novo roteiro.