O Cheiro do Triunfo
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Capítulo 1

O cheiro de desinfetante no hospital era forte, quase me sufocava.

Eu tinha acabado de acordar da anestesia, o meu corpo parecia oco, como se algo vital tivesse sido arrancado.

Do lado de fora da janela, o sol da tarde de Lisboa brilhava, mas não trazia calor nenhum.

Liguei a televisão pequena na parede do quarto, e as notícias mostravam imagens aéreas da Ponte 25 de Abril, com uma fila de carros parados.

Um engavetamento grave.

O jornalista falava de dezenas de feridos, alguns em estado crítico.

O meu coração apertou.

O meu marido, Pedro, era um dos paramédicos destacados para o local.

Peguei no meu telemóvel com a mão a tremer.

O meu pai, ao meu lado na cama, ainda dormia, exausto pela longa cirurgia cardíaca que tinha acabado de fazer.

Eu precisava de falar com o Pedro, precisava de saber se ele estava bem.

Mas mais do que isso, eu precisava de lhe dizer que o nosso casamento tinha acabado.

O som da chamada era frio e longo.

Quando estava quase a desligar, ele atendeu. A sua voz estava cheia de irritação.

"O que foi, Sofia? Não vês que estou no meio de um inferno aqui? Estou a trabalhar sem parar, não tenho tempo para conversa!"

Antes que eu pudesse dizer uma palavra, ouvi outra voz ao fundo, uma voz feminina, suave e familiar.

"Pedro, querido, podes trazer-me um copo de água? A minha garganta está tão seca."

Era a Clara, a minha prima.

A voz do meu tio, o pai dela, soou logo a seguir, cheia de falsa gratidão.

"Pedro, meu rapaz, ainda bem que estavas aqui. Se não fosses tu a tirar a Clara daquele carro, nem quero imaginar o que teria acontecido."

Pedro respondeu imediatamente, a sua voz agora cheia de preocupação.

"Não se preocupe, tio. A Clara está bem, só uns arranhões. Eu estou aqui para cuidar dela."

Um riso amargo escapou-me.

Então ele estava a cuidar da minha prima.

Enquanto o meu pai, o seu sogro, lutava pela vida numa mesa de cirurgia a poucos metros de onde ele estava.

"Pedro," eu disse, a minha voz mais firme do que eu esperava. "Vamos divorciar-nos."

Houve um silêncio de dois segundos.

Depois, a sua raiva explodiu através do telefone.

"Divorciar-te? Estás maluca? Eu estou a salvar vidas! A Clara estava no acidente, era minha obrigação ajudá-la! Não tens um pingo de compaixão?"

"E o meu pai?" perguntei, sentindo a garganta a fechar-se. "Ele não importa? Ele estava a ter uma cirurgia de emergência no mesmo hospital onde estás."

"O teu pai tem os médicos! Eu sou paramédico, o meu lugar é na emergência! Para de ser tão egoísta, Sofia! A Clara precisa de mim agora. Pensa no que estás a dizer!"

E desligou.

Simplesmente desligou.

Tentei ligar de volta.

Ele tinha-me bloqueado.

Olhei para a porta fechada do quarto do meu pai.

Tínhamos passado os últimos dois anos a poupar cada cêntimo para esta cirurgia.

Era a nossa única esperança.

O nosso casamento já estava em ruínas, mas a doença do meu pai era a cola frágil que nos mantinha juntos.

Eu precisava do apoio dele, ou pelo menos, era o que eu pensava.

Agora, essa cola tinha-se dissolvido.

Não havia mais nada a que me agarrar.

Ele disse que era sua obrigação ajudar a Clara.

Mas o acidente foi na Ponte 25 de Abril. O hospital onde o meu pai foi operado fica em outra zona da cidade.

Ele não foi simplesmente "ajudar".

Ele escolheu estar com ela.

Quando liguei para ele esta manhã, em pânico, a caminho do hospital com o meu pai a sentir dores no peito, ele disse que estava demasiado ocupado.

Desligou-me na cara.

Várias vezes.

Ele não se importava.

Comigo, com o meu pai.

O homem que ele chamava de "pai" há cinco anos.

O telemóvel do meu pai, pousado na mesinha de cabeceira, começou a vibrar.

Era o meu tio a ligar.

O meu pai mexeu-se, abriu os olhos devagar, e atendeu a chamada antes que eu pudesse impedi-lo.

A voz zangada do meu tio encheu o silêncio do quarto.

"Afonso! Que raio de filha é que tu criaste? Ameaçar o Pedro com o divórcio num momento destes! Ela não tem vergonha? Depois de tudo o que ele fez pela Clara!"

            
            

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