O meu marido, Pedro, era um dos paramédicos destacados para o local.
Peguei no meu telemóvel com a mão a tremer.
O meu pai, ao meu lado na cama, ainda dormia, exausto pela longa cirurgia cardíaca que tinha acabado de fazer.
Eu precisava de falar com o Pedro, precisava de saber se ele estava bem.
Mas mais do que isso, eu precisava de lhe dizer que o nosso casamento tinha acabado.
O som da chamada era frio e longo.
Quando estava quase a desligar, ele atendeu. A sua voz estava cheia de irritação.
"O que foi, Sofia? Não vês que estou no meio de um inferno aqui? Estou a trabalhar sem parar, não tenho tempo para conversa!"
Antes que eu pudesse dizer uma palavra, ouvi outra voz ao fundo, uma voz feminina, suave e familiar.
"Pedro, querido, podes trazer-me um copo de água? A minha garganta está tão seca."
Era a Clara, a minha prima.
A voz do meu tio, o pai dela, soou logo a seguir, cheia de falsa gratidão.
"Pedro, meu rapaz, ainda bem que estavas aqui. Se não fosses tu a tirar a Clara daquele carro, nem quero imaginar o que teria acontecido."
Pedro respondeu imediatamente, a sua voz agora cheia de preocupação.
"Não se preocupe, tio. A Clara está bem, só uns arranhões. Eu estou aqui para cuidar dela."
Um riso amargo escapou-me.
Então ele estava a cuidar da minha prima.
Enquanto o meu pai, o seu sogro, lutava pela vida numa mesa de cirurgia a poucos metros de onde ele estava.
"Pedro," eu disse, a minha voz mais firme do que eu esperava. "Vamos divorciar-nos."
Houve um silêncio de dois segundos.
Depois, a sua raiva explodiu através do telefone.
"Divorciar-te? Estás maluca? Eu estou a salvar vidas! A Clara estava no acidente, era minha obrigação ajudá-la! Não tens um pingo de compaixão?"
"E o meu pai?" perguntei, sentindo a garganta a fechar-se. "Ele não importa? Ele estava a ter uma cirurgia de emergência no mesmo hospital onde estás."
"O teu pai tem os médicos! Eu sou paramédico, o meu lugar é na emergência! Para de ser tão egoísta, Sofia! A Clara precisa de mim agora. Pensa no que estás a dizer!"
E desligou.
Simplesmente desligou.
Tentei ligar de volta.
Ele tinha-me bloqueado.
Olhei para a porta fechada do quarto do meu pai.
Tínhamos passado os últimos dois anos a poupar cada cêntimo para esta cirurgia.
Era a nossa única esperança.
O nosso casamento já estava em ruínas, mas a doença do meu pai era a cola frágil que nos mantinha juntos.
Eu precisava do apoio dele, ou pelo menos, era o que eu pensava.
Agora, essa cola tinha-se dissolvido.
Não havia mais nada a que me agarrar.
Ele disse que era sua obrigação ajudar a Clara.
Mas o acidente foi na Ponte 25 de Abril. O hospital onde o meu pai foi operado fica em outra zona da cidade.
Ele não foi simplesmente "ajudar".
Ele escolheu estar com ela.
Quando liguei para ele esta manhã, em pânico, a caminho do hospital com o meu pai a sentir dores no peito, ele disse que estava demasiado ocupado.
Desligou-me na cara.
Várias vezes.
Ele não se importava.
Comigo, com o meu pai.
O homem que ele chamava de "pai" há cinco anos.
O telemóvel do meu pai, pousado na mesinha de cabeceira, começou a vibrar.
Era o meu tio a ligar.
O meu pai mexeu-se, abriu os olhos devagar, e atendeu a chamada antes que eu pudesse impedi-lo.
A voz zangada do meu tio encheu o silêncio do quarto.
"Afonso! Que raio de filha é que tu criaste? Ameaçar o Pedro com o divórcio num momento destes! Ela não tem vergonha? Depois de tudo o que ele fez pela Clara!"