O advogado em São Paulo confirmou ao telefone.
"Senhora Ana, o processo de renúncia à sua cidadania portuguesa foi iniciado. A partir de agora, para todos os efeitos legais, a senhora é exclusivamente cidadã brasileira. A sua identidade europeia será apagada."
A voz dele era profissional, distante.
"Obrigada," respondi, com a voz firme.
Desliguei a chamada e olhei para o bilhete de avião sobre a mesa. Apenas de ida. Lisboa para o Rio de Janeiro. A data estava marcada para daqui a duas semanas. O fim tinha um prazo.
Uma revista de sociedade estava aberta ao lado do bilhete. Na capa, uma foto nossa. Eu e o Diogo, a sorrir. A manchete gritava: "O Conto de Fadas Moderno: A Musa do Fado e o Barão do Vinho".
A reportagem detalhava os gestos românticos dele. O lançamento do vinho do Porto "Fado da Ana". A compra e restauro de uma casa de fados histórica em Alfama, um presente para mim.
As pessoas na rua, citadas na revista, diziam que éramos a prova de que o amor verdadeiro existia. A união da alma de Lisboa com o poder do Douro.
Lembro-me de quando ele apareceu na minha vida. Eu cantava a dor dos outros, nunca a minha. O amor era uma tempestade que eu via de longe, na vida da minha mãe, nas letras dos fados. Eu não o queria para mim.
Ele insistiu. Desafiou a sua família aristocrata para casar com uma "fadista de Alfama", uma plebeia. Ele trazia-me vinhos raros, ouvia os meus fados em silêncio, com uma intensidade que me desarmou. Acreditava que a devoção dele era real.
Acreditava.
No nosso casamento, ele prometeu-me lealdade. "A tua lealdade é a tua maior força, Ana. E eu serei sempre leal a ti. A minha vida começa e acaba contigo."
As suas palavras eram como um vinho do Porto vintage, ricas e complexas. Agora, sabiam a vinagre.
Peguei nos papéis que o meu advogado português preparara. Separação de pessoas e bens. Assinei onde era preciso, a minha mão não tremeu. Dobrei-os cuidadosamente e coloquei-os dentro de uma caixa de madeira artesanal, que tinha comprado para ele. Uma caixa para envelhecer uma garrafa de vinho especial.
Quando Diogo chegou a casa essa noite, vindo da sua "reunião de negócios em Espanha", trazia o cheiro de um perfume floral que não era o meu. Havia uma marca ténue no seu pescoço, quase invisível. Ele não reparou que eu vi. Estava demasiado ocupado a ser o marido perfeito.
"Meu amor," disse ele, beijando-me a testa. "Tive tantas saudades tuas."
Era o nosso aniversário de casamento. Dia de São Martinho.
"Também tive saudades," menti. "Tenho um presente para ti."
Entreguei-lhe a caixa de madeira. Ele sorriu, o sorriso carismático que encantava toda a gente.
"É linda, Ana. O que é?"
"É para aquela garrafa especial que guardamos. Mas promete-me uma coisa. Só a abras daqui a duas semanas."
Ele franziu a testa, curioso mas divertido. "Duas semanas? Porquê o mistério?"
"Confia em mim," pedi.
Ele beijou-me novamente. "Confio sempre. Tu és a minha bússola."
A ironia era tão pesada que me custava a respirar.