"Não é por isso," menti. "Preciso de uma pausa. Assuntos de família."
Ele suspirou. "Ok, Tiago. As portas estarão sempre abertas."
Desliguei. Mais uma ponte queimada. Mais um passo em direção à liberdade.
Naquela noite, Sofia chegou a casa, radiante.
"Querido, veste o teu melhor fato," disse ela, cantarolando. "Temos uma festa para ir."
Eu não queria ir a lado nenhum com ela, mas recusar só levantaria suspeitas. Vesti um fato cinzento, sentindo-me como um condenado a caminho da forca.
A "festa" era num dos hotéis mais luxuosos de Lisboa, propriedade do Grupo Oliveira, claro. O salão de baile estava decorado de forma extravagante. No centro, um enorme cartaz dizia: "Feliz Aniversário, Lucas!"
O meu sangue gelou. Ela tinha organizado uma festa de aniversário sumptuosa para ele. E eu era o acompanhante.
Enquanto caminhávamos pela sala, ouvi os sussurros.
"Olha, é o marido da Sofia... Coitado, parece um cãozinho perdido."
"Ouvi dizer que o artista brasileiro mora com eles agora. Que humilhação."
"Ela nem sequer tenta esconder. Pelo menos podia ter alguma decência."
Cada palavra era uma bofetada. Sofia, no entanto, parecia não ouvir, ou não se importar. Ela cumprimentava os convidados com um sorriso brilhante, a rainha no seu elemento.
Lucas era o centro das atenções, a receber presentes e elogios. Quando nos viu, abriu um sorriso largo.
Sofia virou-se para mim, a sua voz um sussurro gelado. "Agora vais ao palco, pegas no microfone e desejas um feliz aniversário ao Lucas. E vais dizer que lamentas o teu comportamento."
Era a humilhação final. Forçar-me a pedir desculpa publicamente ao homem que me estava a destruir.
"Sofia, não posso fazer isso," disse eu, a minha voz a falhar.
"Podes e vais," sibilou ela. "Ou queres que eu faça outra chamada para a Suíça? Lembras-te do pânico na voz do Pedro?"
A ameaça pairava sempre sobre mim. A saúde do meu irmão era a minha coleira.
Subi ao palco, o meu corpo a mover-se por vontade própria. Peguei no microfone. Todas as cabeças se viraram para mim.
A minha mente ficou em branco. As palavras não saíam. Então, comecei a cantar. Era um fado antigo, um que o meu avô costumava cantar. Falava de perda, de saudade, de um amor que se tornou uma prisão.
Era a mesma canção que eu tinha cantado para Sofia na noite em que a conheci. Ela disse que se apaixonou pela minha voz, pela minha alma.
Enquanto cantava, os meus olhos encontraram os dela. Por um momento, vi algo no seu olhar. Um vislumbre da mulher por quem me apaixonei. Uma sombra de dor, de arrependimento.
Quando terminei, a sala estava em silêncio. Depois, aplausos hesitantes.
Desci do palco. Sofia aproximou-se.
"Isso foi... lindo," disse ela, a sua voz suave. Ela estendeu a mão para tocar no meu rosto.
Afastei-me. "Não me toques."
A sua mão ficou suspensa no ar. A máscara de frieza voltou a cair sobre o seu rosto.
"Como queiras."
Mais tarde, a festa estava a terminar. Lucas, bêbado de champanhe e de atenção, aproximou-se de mim.
"Bela performance, Tiago. Muito... sentida."
Ele deu-me um empurrão "amigável" no ombro. "Fica mais um pouco. A Sofia quer mostrar-nos uma coisa na adega de vinhos."
O seu sorriso era malicioso. Senti um arrepio. Era uma armadilha.
Segui-os até à adega privada do hotel. Era um corredor longo e escuro, com prateleiras de vinhos do chão ao teto.
De repente, as luzes apagaram-se. Ouvi um som metálico, como se uma prateleira estivesse a ceder.
"Cuidado, Lucas!" gritou Sofia.
Ouvi um baque e o som de vidro a partir-se. As luzes de emergência acenderam-se, lançando um brilho fantasmagórico.
Uma enorme prateleira de metal tinha caído. Sofia estava a abraçar Lucas, protegendo-o. A prateleira tinha-os falhado por pouco.
Mas não a mim.
Uma das prateleiras atingiu-me na perna. A dor foi aguda, cegante. Caí no chão, a minha perna presa debaixo do metal.
Sofia nem olhou na minha direção. "Lucas, estás bem? Estás ferido?"
"Estou bem, graças a ti," disse ele, ofegante.
Ela beijou-o, ali mesmo, em frente a mim, enquanto eu sangrava no chão.