Um dia, enquanto eu estava sentada na varanda, olhando para o céu permanentemente cinzento do Abismo, Kael apareceu. Ele não se aproximou, apenas ficou parado a alguns metros de distância, observando-me. Era a primeira vez que ele realmente olhava para mim em dias.
"Você está pálida", ele comentou, sua voz neutra.
Eu não respondi, nem me virei para encará-lo. Continuei a fitar o horizonte.
"Lira está se sentindo melhor", ele continuou, como se isso fosse uma boa notícia para mim. "Ela agradece pelo seu sacrifício."
"Eu não fiz por ela", respondi, minha voz soando oca aos meus próprios ouvidos. "Eu fiz porque você ordenou."
Ele franziu a testa, um sinal de irritação cruzando seu rosto. "Elara, não seja infantil. Era necessário. Eu sou um deus, tenho responsabilidades que você não entende. Meu casamento com Lira garantirá a paz por milênios."
Casamento. A palavra me atingiu, mas eu não demonstrei. O vazio dentro de mim era tão grande que não havia mais espaço para a dor. Então era isso. Ele não estava apenas a ajudando, estava planejando substituí-la. Ele acreditava que estava fazendo o que era certo, que seus motivos grandiosos justificavam a crueldade de seus atos. Ele se via como um mártir, sacrificando nosso amor pelo bem maior, quando na verdade, ele estava apenas sendo egoísta.
"Eu entendo perfeitamente", eu disse calmamente. "Você precisa do poder dela. E eu sou um obstáculo."
"Não é um obstáculo", ele disse, impaciente. "É um sacrifício necessário. E você deveria se sentir honrada por fazer parte disso."
Honrada. A ironia quase me fez rir. Eu me levantei, sentindo minhas pernas fracas. Cada passo era um esforço. No Jardim Lunar, a Flor da Alma, que antes brilhava com uma luz intensa, agora estava quase apagada. Faltavam apenas três pétalas. O curandeiro havia dito que Lira precisaria de toda a energia da flor para se curar completamente. Kael me seguiu até lá.
"Ela precisa do resto", ele disse, sua voz não mais fingindo preocupação, mas sim soando como uma ordem direta.
Eu olhei para ele, depois para a flor moribunda. Eu sabia que, se arrancasse as últimas pétalas, minha força vital se esgotaria completamente. Eu morreria ali mesmo, no jardim que criei com tanto amor.
"Faça isso, Elara", ele ordenou, sua paciência se esgotando.
Lágrimas silenciosas escorreram pelo meu rosto enquanto eu me ajoelhava. Não eram lágrimas de tristeza, mas de resignação. Com a mão trêmula, arranquei a primeira das três últimas pétalas. Uma tontura me atingiu. Arranquei a segunda. Minha visão escureceu. Quando minha mão tocou a última pétala, hesitei. Este era o fim.
Nesse momento, Lira entrou no jardim, apoiada em Kael. Ela usava um vestido de seda branca e parecia radiante, a doença completamente desaparecida. Kael nem olhou para mim, caído no chão. Ele sorriu para Lira, um sorriso genuíno e cheio de carinho, o mesmo sorriso que ele costumava me dar.
"Veja, meu amor", ele disse a ela, sua voz suave. "Está quase pronto. Logo você estará completamente recuperada."
Ele a ajudou a se sentar em um banco de pedra, ajeitando uma mecha de cabelo que caía sobre o rosto dela com uma ternura que me partiu em pedaços. Ele me ignorou completamente, como se eu fosse apenas parte da paisagem, um servo cumprindo uma tarefa desagradável. A indiferença dele era mais cruel do que qualquer golpe.
Depois de dar a última pétala para Lira, Kael se virou para mim. Ele estendeu a mão, oferecendo-me um pequeno frasco com um líquido brilhante.
"Tome isso", disse ele. "Vai aliviar a dor."
Eu olhei para o frasco, depois para o rosto dele. Era um bálsamo de cura, um dos mais raros do reino. Uma compensação. Uma esmola. Recusei com um aceno de cabeça.
"Não preciso da sua piedade."
Minha recusa o irritou. Ele agarrou meu braço, tentando me forçar a tomar a poção. "Pare de ser teimosa, Elara! Eu estou tentando ajudar!"
"Me ajudar?", eu ri, um som seco e sem alegria. "Você está me matando, Kael. E chama isso de ajuda?"
Nesse exato momento, Lira se levantou e se aproximou, seu rosto uma máscara de falsa preocupação. "Oh, Elara, por favor, não fale assim com ele. Ele só quer o seu bem."
Ela estendeu a mão para tocar meu ombro, mas eu me afastei bruscamente.
"Não me toque", eu sibilei.
Lira recuou, os olhos se enchendo de lágrimas. Ela tropeçou para trás, caindo deliberadamente no chão e soltando um pequeno grito de dor.
"Ai! Meu tornozelo!"
Kael se virou para ela instantaneamente, o rosto cheio de pânico. Ele a pegou no colo, fuzilando-me com o olhar.
"Veja o que você fez!", ele gritou. "Ela ainda está fraca por sua causa!"
A acusação era tão absurda, tão injusta, que eu só consegui encará-lo, o último vestígio de esperança se transformando em cinzas dentro de mim. O conflito não era mais apenas sobre a cura de Lira. Era sobre a minha completa aniquilação.