Seu primeiro ato como uma mulher livre não foi procurar um abrigo ou comida, mas sim entrar em um prédio de vidro espelhado com uma placa discreta: "Instituto de Pesquisa Médica Avançada". Lá dentro, o cheiro de antisséptico era forte, e uma recepcionista de olhar cansado a observou com desinteresse. Sofia não hesitou, sua voz saiu rouca, mas firme.
"Eu quero assinar o termo de doação de corpo para a ciência."
O homem que a atendeu, um médico de meia-idade com olhos gentis chamado Dr. Lucas, a levou para uma sala silenciosa. Ele a examinou com uma expressão de preocupação, notando sua palidez e a forma como suas mãos tremiam sutilmente.
"Você tem certeza disso, senhorita?", ele perguntou, sua voz calma. "Este é um novo programa experimental, usamos um reagente químico para acelerar a pesquisa. O processo... é irreversível e completo. Seu corpo será dissolvido."
Sofia apenas assentiu, um sorriso fraco e melancólico em seus lábios. "Eu sei, é por isso que estou aqui."
Dr. Lucas suspirou, empurrando uns papéis sobre a mesa. "Há uma compensação financeira significativa. Cinquenta mil reais. Precisamos que você nos diga para quem o dinheiro deve ser enviado após... o procedimento."
"Para o Orfanato Santa Clara", ela disse sem pensar duas vezes. Aquele lugar era a única lembrança boa de sua infância, antes de tudo desmoronar.
Enquanto ela assinava os papéis, sua mão direita falhou por um instante, um espasmo violento a fez borrar a assinatura. Dr. Lucas notou, sua expressão se tornando mais séria. Ele a guiou para uma sala de exames, insistindo em fazer alguns testes rápidos. A verdade veio logo depois, fria e clínica como o ambiente ao redor.
"Sofia", ele começou, com uma delicadeza que ela não ouvia há anos, "seus sintomas... são consistentes com Esclerose Lateral Amiotrófica. ELA. É uma doença degenerativa, e está em um estágio avançado. Você tem pouco tempo. Talvez alguns meses."
A notícia não a chocou, era apenas a confirmação do que seu corpo já lhe dizia aos gritos. Ela se sentiu estranhamente calma, como se uma jornada longa e dolorosa estivesse finalmente chegando ao seu destino. A morte não era mais um monstro no escuro, era uma certeza, uma espécie de libertação.
Com o cheque da compensação em mãos, ela saiu do instituto. O plano era simples: depositar o dinheiro e depois visitar o túmulo de sua família uma última vez. Mas ao virar a esquina, seu coração gelou. Dois homens de terno, com rostos familiares e cruéis, estavam parados ao lado de um carro preto. Eram os homens de Pedro, o diretor do centro de reabilitação.
"Sofia, sua ladra de merda!", um deles gritou, apontando para ela. "Onde você pensa que vai com o dinheiro que roubou?"
O pânico a dominou. Sofia se virou e correu, o corpo protestando a cada movimento. Ela não olhava para onde ia, apenas fugia dos demônios de seu passado recente. Em sua pressa desesperada, ela trombou com força em alguém, o impacto a jogando no chão frio e molhado.
"Olha por onde anda, sua...", a voz masculina parou abruptamente.
Sofia ergueu os olhos, e seu mundo, que já estava em ruínas, se partiu em mais um milhão de pedaços. Aquele cheiro, uma mistura de sândalo e tabaco caro, ela o reconheceria em qualquer lugar. Gabriel. Seu Gabriel. Ele a olhava de cima, a chuva escorrendo por seu rosto perfeitamente esculpido, mas seus olhos, aqueles olhos que um dia a olharam com tanto amor, agora estavam cheios de um desprezo cortante.
"Sofia?", ele cuspiu o nome dela como se fosse veneno.
Os homens de Pedro a alcançaram, a agarrando pelos braços. "Aí está ela, senhor Gabriel! Essa vadia roubou o centro de reabilitação!"
Gabriel não se moveu, seu olhar fixo nela, frio como gelo. Ele a analisou no chão, suja, magra, patética. "Então é isso que você se tornou? Uma ladra?"
Antes que Sofia pudesse dizer qualquer coisa, uma voz feminina e doce soou ao lado de Gabriel. "Gabi, o que está acontecendo? Quem é essa... mulher?"
Isabella. Sua inimiga de infância, a garota que sempre a atormentou, agora estava ali, agarrada ao braço de Gabriel, usando um vestido caro e um anel de diamante que brilhava mesmo na luz fraca do dia chuvoso. Ela olhou para Sofia com um misto de pena e triunfo.
Gabriel passou o braço ao redor de Isabella de forma protetora. "Não é ninguém, meu amor. Apenas lixo."
A humilhação a atingiu com a força de um soco. Gabriel, o mesmo garoto que a defendia dos insultos de Isabella na escola, agora estava ao lado dela, a chamando de lixo. Uma memória rápida a assaltou: o pátio da escola, Isabella a empurrando na lama, e um jovem Gabriel correndo para ajudá-la, limpando seu rosto e dizendo que sempre a protegeria.
Outra memória, mais forte, mais dolorosa, veio em seguida. Eles, mais velhos, deitados na grama, olhando as estrelas. Ele prometendo a ela um futuro, uma vida inteira juntos. "Eu te amo, Sofia. Para sempre." O "para sempre" dele havia sido destruído por um incêndio, por uma mentira. Um incêndio onde a irmã dele morreu, e Sofia, por um juramento feito à beira da morte, assumiu uma culpa que não era sua. E Gabriel, em sua dor, a odiou. Um ódio que Isabella alimentou com prazer, até tomar o lugar que um dia foi de Sofia.
"Levem-na", a voz de Gabriel a trouxe de volta à realidade brutal. Ele se virou, abraçando Isabella e a guiando para longe da cena, como se a simples presença de Sofia fosse uma contaminação.
Enquanto os homens a arrastavam, Sofia não lutou, seu corpo doente e seu coração partido não tinham mais forças, ela apenas observava as costas de Gabriel se afastarem, levando com ele os destroços do que um dia foi o amor de sua vida.