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Amizade não morre com a morte.
Ela apodrece antes.
Júlia sorriu quando me viu chegar na cafeteria onde costumávamos fingir que a vida era leve. A mesma esquina, mesma mesa externa, mesmos olhos puxados por bisturi. Mas agora, eu via.
Vi o teatro todo.
Ela usava um vestido verde justo, daqueles que ela dizia não usar por "não combinar com o tom de pele". Usava porque sabia que Leandro gostava de verde.
Usava porque naquela manhã, ela já havia estado com ele.
E ainda assim, me abraçou.
- Bia! Que saudade de você, amiga! - disse, perfumada demais, alto demais, falsa demais.
Eu sorri.
- Que bom te ver, Jú.
Me sentei de frente. Ela puxou o celular. Virou a tela pra mim.
- Olha esse vestido novo que comprei! Tava pensando em usar no jantar de gala que o Leandro vai dar semana que vem. Ele te contou?
Eu encostei o corpo na cadeira e cruzei as pernas.
- Contou, sim.
Mentira.
Mas agora eu sabia onde o veneno seria servido.
Ela se inclinou, olhos piscando, sorriso armado:
- Tá tudo bem entre vocês, né?
- Tudo ótimo.
E nesse "ótimo", minha garganta queimou de ódio.
Ela queria saber se já podia ocupar meu lugar oficialmente.
Se eu já estava fraca, distraída, vulnerável.
Não. Eu estava grávida. E acordada.
Quando voltamos para a mansão, Leandro estava no jardim. Camisa de linho aberta, charuto aceso, falando ao telefone com algum figurão sujo.
Júlia passou direto, indo ao banheiro. Como fazia sempre.
Ela dizia que não gostava de usar banheiro público.
A verdade? Usava o espelho da suíte pra retocar o batom que ele borrava com a boca.
Acompanhei com os olhos. Não falei nada.
Ainda não era hora.
Mas me deu um gosto ver que o batom dela estava torto na saída.
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À noite, sozinha, sentei no chão do closet com a agenda aberta.
Anotei:
> Júlia.
Amiga desde os 15.
Primeiro beijo aos 17 (meu). Ela soube. Riu. Espalhou.
Faculdade. Emprego. Entrou na minha vida como sombra e cresceu.
Um dia ela me disse: "Você tem tudo que eu queria. Parece injusto, né?"
Parece.
Eu fechei o caderno, coloquei a mão sobre a barriga e fechei os olhos.
- Essa é a parte que ninguém te contou, filho... O monstro não é o que grita. É o que sorri enquanto te apunhala. Mas eu te prometo: nenhuma dessas cobras vai chegar perto de você.
E quando abri os olhos, vi a notificação no celular:
> Júlia: "Avisa quando o Leandro estiver livre. Esqueci de agradecer o convite pro evento. ;)"
Convite.
Evento.
Ela estava armando o figurino da amante oficial.
Mas ainda achava que eu era a rainha burra do tabuleiro.
Deixei o celular de lado.
Apenas sorri.
A festa viria.
E com ela, o começo da caça.
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A notificação ainda brilhava na tela:
> Júlia: "Avisa quando o Leandro estiver livre. Esqueci de agradecer o convite pro evento. ;)"
O emoji foi a parte mais nojenta. Aquela piscadinha maliciosa que só mulher baixa usa pra disfarçar ameaça como charme.
Mas tudo bem. Eu estava estudando. Observando.
Ainda era cedo para arrancar cabeças. Mas tarde demais pra perdão.
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Na manhã seguinte, Leandro estava com o humor típico de quando transava escondido e se achava intocável.
Assoviava no corredor. Abriu o jornal como se soubesse ler futuro.
Pediu café da manhã com pão sem glúten e ovos orgânicos - o combo perfeito de um assassino gourmet.
- Dormiu bem, amor? - ele perguntou, com aquele tom doce que só precedia manipulação.
- Dormi leve - respondi, mexendo meu chá. - Sonhei com uma cobra.
Ele riu. Achou graça.
- Medo?
- Curiosidade.
- E o que a cobra fazia?
- Sorria com os dentes de alguém que eu amo.
Ele parou. Por um segundo. Um milésimo.
Mas o suficiente pra confirmar: ele sabia. Ele sabia que eu sabia.
- Estranho - disse ele, voltando ao jornal. - Eu sonhei com um ninho em chamas.
Dois canibais na mesa de café.
Casal perfeito.
Fui até o ateliê de uma das estilistas mais caras da cidade. Leandro havia marcado o horário pra mim, como sempre fazia antes dos eventos importantes.
- Quer que eu selecione os vestidos com base no seu tom de pele ou no tema da festa, senhora Bianca? - perguntou a atendente.
- Não. Quero escolher baseada na cor do sangue da mulher que vai tentar me imitar.
Ela parou, sem entender. Sorri.
Não era pra entender.
Escolhi vermelho.
Vermelho escuro, justo, sem alças.
Como uma sentença.
Mais tarde, sentei sozinha na sacada do quarto. O sol começava a cair e o vento trazia cheiro de coisa antiga.
Segurei meu diário.
Escrevi uma única frase:
> "A amizade dela foi minha primeira traição. O tiro foi só a última."
Eu não chorava mais.
Leandro me matou com uma bala.
Mas Júlia me matou primeiro com segredos e sorrisos.
Ela sabia. Sempre soube.
E agora eu também sabia. Sabia como ela pensa, o que ela veste, o que ela bebe.
Sabia que ela prefere prosecco a champanhe e que se acha elegante por isso.
Sabia que ela odiava me ver ganhar flores e dizia que "flores morrem rápido demais".
Sabia que ela me invejava tanto que uma parte dela gozava só de imaginar meu lugar ao lado dele.
Mas o que ela não sabia era que, nesta vida, eu não ia morrer.
Ela é que ia aprender a rastejar.
E o baile?
Ah...
O baile seria lindo.
E vermelho.