Na manhã seguinte, acordei na cama de infância da minha avó. A luz do sol entrava pela janela, mas não trazia calor, apenas uma clareza fria.
A minha avó tinha preparado o pequeno-almoço. Comemos em silêncio. Ela não fez perguntas, e eu estava-lhe grata por isso. O seu apoio silencioso era a única coisa que me mantinha de pé.
"Vou tratar dos papéis da mãe hoje," disse eu, quebrando o silêncio. "O testamento, as contas... tudo."
"Queres que eu vá contigo?"
"Não, avó. Eu preciso de fazer isto sozinha."
Passei o dia no escritório do advogado da minha mãe, um homem simpático e de cabelos grisalhos chamado Sr. Almeida. Ele conhecia a minha mãe há anos.
"A sua mãe era uma mulher muito inteligente, Ana," disse ele, enquanto me entregava uma pasta grossa. "Ela deixou tudo em ordem."
Abri a pasta. O testamento era simples. A minha mãe deixou-me a casa onde cresci, as suas poupanças e um pequeno portfólio de ações.
Mas havia outro envelope dentro da pasta, com o meu nome escrito com a caligrafia elegante da minha mãe.
"Ela pediu-me para lhe entregar isto pessoalmente," disse o Sr. Almeida, com gentileza.
Abri o envelope com os dedos a tremer. Dentro, havia uma carta e uma chave.
Comecei a ler.
"Minha querida Ana,
Se estás a ler isto, significa que eu já não estou contigo. Lamento muito, minha filha. Lamento por toda a dor que te causei e por não poder estar aí para te ver casar e construir a tua própria família.
Mas há algo que precisas de saber sobre a família em que estás prestes a entrar. Eu cometi um erro terrível há muitos anos, um erro nascido do desespero e da solidão.
Quando conheci o Rui, eu estava vulnerável. O teu pai tinha-nos deixado, e eu estava a lutar para te criar sozinha. O Rui ofereceu-me estabilidade, segurança. Eu pensei que estava a fazer o que era melhor para nós.
Mas eu estava cega. Cega para a sua natureza controladora, para o seu favoritismo descarado pela Joana. E cega para um segredo que ele guardava.
Pedro não é sobrinho do Rui. Ele é filho dele."
Parei de ler. O meu coração parou. Reli a frase.
"Pedro não é sobrinho do Rui. Ele é filho dele."
As peças do puzzle começaram a encaixar-se na minha cabeça com uma clareza horrível. A forma como o Rui defendia o Pedro. A forma como o Pedro estava sempre na casa deles. A forma como a Joana e o Pedro eram tão próximos, não como primos, mas como... irmãos.
Continuei a ler, as mãos a tremer tanto que mal conseguia segurar o papel.
"O Rui teve um caso antes de conhecer a sua primeira mulher. O Pedro é o resultado desse caso. A mãe dele morreu no parto, e a família do Rui, para evitar o escândalo, criou-o como sobrinho. Ninguém fora do círculo familiar mais íntimo sabe a verdade.
Eu descobri por acidente, pouco depois de nos casarmos. O Rui ameaçou-me, disse que se eu contasse a alguém, ele faria da nossa vida um inferno. Eu tive medo, Ana. Por ti. Então, guardei o segredo dele.
Este segredo envenenou tudo. Envenenou o meu casamento, a minha relação com a Joana, e temo que tenha envenenado a tua relação com o Pedro. Eles são uma teia de mentiras, minha querida. E eu arrastei-te para ela.
Perdoa-me.
A chave é para um cofre no banco. Lá dentro, encontrarás provas de tudo o que te estou a dizer, bem como outros documentos que o Rui não sabe que eu tenho. Usa-os. Liberta-te deles. Não deixes que eles te destruam como quase me destruíram a mim.
Vive a tua vida, Ana. Sê feliz. É tudo o que eu sempre quis para ti.
Com todo o meu amor,
Mãe."
Fechei a carta. As lágrimas que eu tinha segurado por tanto tempo finalmente vieram, silenciosas e quentes.
Não eram lágrimas de tristeza. Eram lágrimas de raiva.
Eles tinham mentido. Todos eles. Tinham construído a minha vida, o meu futuro, sobre uma fundação de enganos.
O meu noivado não era uma união de amor. Era um arranjo conveniente para manter o segredo de família seguro, para me manter sob o seu controlo.
O Sr. Almeida olhou para mim com preocupação. "Está tudo bem, Ana?"
"Sim," disse eu, a minha voz firme apesar das lágrimas. "Está tudo perfeitamente claro agora."