"Maria, você tá bem?" ela perguntou, com uma falsa preocupação que me deu arrepios. "O Pedro tá muito bravo com você. Acho que você devia pedir desculpas pra ele."
Na vida passada, a inveja de Ana era uma das forças que me empurraram para o abismo. Ela queria ser a única filha, a única a receber a atenção e os mimos dos pais. Com a minha partida, ela conseguiu tudo o que queria.
Eu olhei para ela, a garota de catorze anos com tranças e um sorriso que não alcançava os olhos.
"Pedir desculpas? Pelo quê? Por não querer fugir de casa e abandonar tudo?" respondi, calmamente.
Ana piscou, surpresa com a minha resposta direta. "Não é isso... é que... ele só queria o melhor pra vocês. Ele me contou o plano todo. Vocês iam ficar ricos."
"Se o plano era tão bom, por que ele não te convidou para ir junto, Ana?"
A pergunta a pegou de surpresa. O rosto dela ficou vermelho.
"Porque... porque eu sou mais nova! E alguém tem que ficar pra cuidar dos nossos pais!" ela gaguejou, a desculpa esfarrapada saindo de sua boca.
Eu apenas a encarei em silêncio, deixando que ela se enrolasse nas próprias mentiras. Ela não aguentou meu olhar e saiu da cozinha batendo o pé.
Eu sabia o que estava acontecendo. Pedro não conseguiria me convencer, então usaria a irmã como cúmplice. Eles estavam tramando alguma coisa.
A oportunidade deles veio dois dias depois.
Dona Silva me pediu para ir ao mercado comprar algumas coisas para o almoço. Ela me deu o dinheiro e a lista. Quando eu estava saindo, vi Pedro e Ana cochichando no canto da sala. Um mau pressentimento tomou conta de mim, mas eu não podia simplesmente me recusar a ir.
No caminho de volta do mercado, um carro velho parou ao meu lado.
A janela do passageiro se abriu. Era Tia Joana. A mesma mulher com um sorriso cheio de dentes de ouro e olhos frios que, na minha vida passada, me comprou de Pedro.
Meu sangue gelou.
"Maria, querida! Que surpresa boa te encontrar por aqui," ela disse, com sua voz melosa. "Sua mãe me ligou. Ela disse que seu irmãozinho João passou mal de repente e pediu pra eu te levar pro hospital o mais rápido possível."
Meu coração parou por um segundo. João. Na vida passada, eu não tive a chance de me despedir dele. O medo me paralisou.
Mas então, a lógica chutou a porta da minha mente. Dona Silva pediria ajuda para Tia Joana, uma mulher que ela mal conhecia e de quem visivelmente não gostava? E por que ela não me ligaria, ou ligaria para um vizinho?
Era uma armadilha.
"Não, obrigada, Tia Joana. O hospital é perto, eu posso ir andando," eu disse, apertando as sacolas de compras contra o peito.
O sorriso dela vacilou por um instante. "Não seja boba, menina. É uma emergência. Entre no carro, vamos."
Ela abriu a porta. E então eu o vi.
Pedro estava no banco de trás, encolhido, tentando não ser visto.
Tudo fez sentido. Não foi só Pedro. Foi Pedro e Ana. Ana deve ter pego o contato de Tia Joana na agenda da nossa mãe e ligado para ela, inventando uma história qualquer para atraí-la e armar essa emboscada. Era um sequestro disfarçado de favor.
A raiva subiu pela minha garganta, quente e amarga.
"EU NÃO VOU!" gritei, e comecei a correr na direção oposta.
Mas Tia Joana foi mais rápida. Ela saltou do carro com uma agilidade que não condizia com sua aparência e me agarrou pelo braço. Suas unhas compridas cravaram na minha pele.
"Me solta! Socorro! Alguém me ajuda!" eu gritei, me debatendo com toda a minha força.
Pedro saiu do carro, seu rosto uma máscara de pânico e raiva. "Para de gritar, Maria! Entra logo nessa porcaria!"
Ele tentou me empurrar para dentro do carro. Eu me virei e mordi a mão dele com toda a força que consegui reunir.
"Aaaai! Sua desgraçada!" ele gritou, puxando a mão de volta, que agora sangrava.
Alguns vizinhos saíram na rua para ver o que estava acontecendo.
"O que é essa gritaria?" perguntou Dona Cida, da casa da frente.
Tia Joana mudou sua expressão instantaneamente. Ela me abraçou, forçando minha cabeça contra seu ombro para abafar meus gritos, e começou a chorar.
"Ai, minha gente, me desculpem o incômodo! É a minha sobrinha... a coitadinha não tá bem da cabeça. Ela tem essas crises, sabe? A gente tá tentando levar ela pro médico, mas ela é muito arredia."
Pedro rapidamente entrou no papel. "É verdade. Ela fica assim às vezes. A gente só quer ajudar."
Os vizinhos olharam para mim, me debatendo nos braços de Tia Joana, e depois para o rosto "preocupado" dela e para a mão sangrando de Pedro. A simpatia deles se virou contra mim.
"Ah, coitadinha. É doença, né?" disse um deles.
"Deixa eles cuidarem dela. É pro bem dela," falou outro.
Ninguém me ajudou.
Eles me viram como uma louca, um problema.
A força me abandonou. O desespero tomou conta. Com um último empurrão de Pedro, eu fui jogada para dentro do banco de trás do carro. Tia Joana entrou logo depois, me prendendo com seu corpo. A porta bateu, o motor roncou e o carro arrancou, deixando para trás a minha rua, a minha casa, a minha única chance de segurança.
Pressionada contra o estofado velho e fedorento, eu olhei pela janela traseira e vi a minha casa ficando cada vez menor.
Desta vez, eu lutei. Eu gritei. Eu tentei. E mesmo assim, eu falhei.
O desespero era mais profundo do que na vida passada. Porque desta vez, eu sabia exatamente o inferno que me esperava. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, silenciosas e amargas. Eu estava novamente no caminho para a minha destruição, e parecia que não havia nada que eu pudesse fazer para impedir.